Coluna Por Supuesto
Como fenômeno histórico-cultural o Direito inevitavelmente reproduz crenças e formas de dominação, iniciativas e resistências dos setores sociais mais vulneráveis, revoltas e rivalidades, lutas e transformações, imagens e realidades. Por isso, na sua confecção não existe um desvencilhar-se das concepções socioculturais, positivas e negativas, que ao longo da história moldam o portentoso arsenal humano. Seria esse Direito algo postiço, insustentavelmente artificial.
Desde logo, também por isso sempre podemos aspirar a um melhor Direito, a uma melhor interpretação, a uma maior efetividade dos direitos e garantias de cada pessoa. Certamente, na evolução da construção dos direitos somente avançamos esclarecendo posições e roles, situando as contradições humanas e atentos às batalhas livradas no econômico, o político e cultural, reformulando textos normativos, sistematizando, compreendendo, assimilando e superando visões, promovendo políticas públicas mais democráticas e condizentes com as necessidades atuais e construindo uma hermenêutica afinada em clave de transformação das formas mais cruéis do atraso.
A perspectiva de género é um dos avanços mais significativos nesta evolução, e indiscutivelmente é resultado de conflitos cuja síntese passa a ser traduzida juridicamente para sermos melhores seres humanos e para um melhor Direito. E essa perspectiva tem evoluído e oferece hoje a possibilidade de, no mínimo, um compromisso agressivo contra as desigualdades.
Entretanto, desenvolver uma estratégia ancorada em Constituições e leis, por mais generosas que estas sejam, como acontece no Brasil com a Carta de 1988 e documentos como a Lei Maria da Penha, pode entrar em rota de colisão com aquelas formas mais arraigadas de dominação. Especialmente quando o assunto é género e quando, até aqueles que deveriam ter o compromisso de defender valores constitucionais e detectar estas novas sensibilidades, faz tempo abdicaram deles.
Lembro que ao ler uma obra sobre o tema me impressionei com a clareza de Adriane Rich, poeta e professora feminista, quando explicava que o patriarcado consiste, de forma singela, no poder dos pais. Rich destrinchava esse poder e descortinava o que significa. Trata-se de algo muito além, expunha: “(...) um sistema familiar e social, ideológico, político, no qual os homens através da sua força, da pressão direta, dos rituais, da tradição, da lei, da linguagem, dos costumes e as normas de etiqueta, da educação e a divisão do trabalho, determinam qual o papel e qual não é o papel que as mulheres podem cumprir numa sociedade, qual podem e qual devem interpretar (...)”.
Se uma mulher como Simone de Beauvoir denunciou o patriarcado como sistema de dominação masculina, atrelado a instituições e mecanismos de reprodução do dia a dia, logo depois Kate Millet o redefiniu como sistema de relações sexuais, imaginárias e concretas, de valores compartilhados, de redes e dispositivos, geralmente acobertados (e outras vezes nem tanto), que colocam à mulher em um lugar de subordinação e secundariedade.
As autoras, assim como tantas outras, ajudam a descontruir as supostas razões que pretendem justificar o menosprezo para com o feminino. O que fica, quando pensamos desde o jurídico, é que há uma imagem, até na forma de conceber o próprio Direito, degradada e sacralizada com relação às mulheres e que não é edificada agora, senão desde seus inícios. Não há como esquecer que o Código de Hammurabi e as Leis de Manú assimilavam as mulheres a coisas, mercadorias com as quais os homens poderia pagar suas dívidas.
Trago a baila este tema porque lamentavelmente temos escutado – e ninguém merece em são consciência escutar - manifestações constantemente agressivas e misóginas, durante mais de 4 anos, (a agressão pela qual foi condenado contra a deputada Maria do Rosário foi no ano 2014) por parte do atual chefe do executivo federal. Recentemente no único debate presidencial até o momento realizado e no último 7 de setembro - dia em que presidente e candidato se fundiram num só para converter a festividade de independência em palanque – novamente “sua excelência” deu mostras da reforçar o inter-jogo de poderes entre o masculino e o feminino, a partir da auto-suficiência que leva implícita a submissão, o servilismo e, ao final, a falta de autonomia e de direitos das mulheres.
Esse machismo inveterado, que incluso desconhece as novas visões que muitos homens têm de estabelecer um equilíbrio de direitos, desde o familiar até os mais diversos âmbitos da vida, não é condizente com o postulado da igualdade que a Constituição alberga, especialmente no artigo 5º caput, e inciso I, bem como em outros tantos como o 226, § 5º, para só mencionar os mais notáveis dentro do sistema constitucional.
Lamentável ainda que muitos e muitas aplaudam as palavras do presidente na contramão da igualdade. Desigualdades há a olhos vista e não é necessário ser estudioso do Direito para detectá-las. Mas preocupa uma aceitação, aqui e ali, e até em cenários acadêmicos, de que uma sociedade está condenada eternamente a viver nessa condição na qual a mulher é considerada “inferior”. Mais grave ainda justificações como “a sociedade é assim” ou “as pessoas gostam disso” ou “sempre foi assim”.
Talvez por isso Jesse de Souza, na introdução da sua “Ralé Brasileira”, manifeste de maneira tão explicita sua preocupação com a legitimação das desigualdades no Brasil e tente esclarecer quais os fatores que permitem suas reproduções quotidianas. O autor nos põe de sobreaviso sobre como estas crenças, a de que nada haverá de mudar e de que está tudo consumado, algo assim como “a sociedade brasileira é assim e basta”, compõem o núcleo da violência simbólica, isto é, um conjunto de formas “novas” e “modernas” de se legitimar a dominação injusta, que atuam no dia a dia, e que permitem essa continuidade. Essa legitimação provoca uma espécie de inércia, de conformismo e de aceitação da violência e do tratamento grosseiro, da agressividade para com o outro ser humano, que logo se traduz em celebrações do patriarcalismo e da misoginia ou na indiferença e o esquecimento. É dizer, em lugar de avançar para sair da subvaloração de uma imensa quantidade de seres humanos, festejam-se as palavras do subproduto triste e infeliz do atraso.
Se qualquer pessoa quiser fazer uma intervenção ou um discurso ou simplesmente proferir palavras ou opiniões sobre o rol da mulher ao longo da história, tema é o que não haverá de faltar: a precária situação laboral das mulheres trabalhadoras, a persistente luta pelos seus direitos políticos, sua entrega e participação para vencer o racismo e o fascismo, a articulação feminina para que fossem promulgadas valiosas declarações como a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação da Mulher, proclamada pela ONU em 1979, os direitos sexuais e reprodutivos, dentro outros de especial relevância. É dizer, temas não faltam, para serem tratados com responsabilidade, a partir dos ideais de igualdade e não discriminação.
Faço um alto para destacar que a Convenção de 1979 define o que se entende por discriminação: “(...) qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo, que tenha como efeito ou como objetivo comprometer ou destruir o reconhecimento, o gozo ou o exercício pelas mulheres, seja qual for o seu estado civil, com base na igualdade dos homens e mulheres, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro domínio”.
Quem discursa pode escolher dentre várias opções teóricas para tratar do assunto, pode tratar da Constituição, das leis, das convenções. Em uma alocução pode, por exemplo, pautar-se pelo liberalismo e expor a sociedade como uma amálgama de seres humanos economicamente susceptíveis de terem sucesso, “ainda que originariamente não possuam bens”, e esbanjar teses sobre o mercado e as capacidades individuais. Pode, por outro lado, pautar seu raciocínio pela compreensão de uma sociedade dividida em classes e na qual cada pessoa ocupa um lugar dentro do processo produtivo, salientando razões para uma reestruturação total do sistema social. Tudo isto está faz parte do debate dentro do marco de um processo civilizatório contraditório, de batalhas ideológicas e narrativas sobre as conjunturas.
Entretanto, já avançamos no plano da ciência social para minimamente compreender que o exame das raízes de desigualdade de género que se está disposto a combater - o bem porque não promovem o florescimento dos chamados “talentos individuais” como quando se diz que a sociedade desperdiça as capacidades femininas, (volto ao liberalismo) ou bem porque essa desigualdade se entrelaça com a superação de um sistema de exploração fundado na mais valia, que implica roles sociais condenatórios às mulheres e um papel de subordinação ante a “capacidade física” do “homem trabalhador” ( retomo as correntes mais avançadas em termos de reconhecimento da luta social)– impõem uma certa compreensão da irredutível dignidade de todos e todas, que consiste no reconhecimento de plenos direitos a partir de sínteses que superem os estágios do atraso naturalizado.
A condução da “res” pública e o compromisso de cumprimento com os valores constitucionais, implica promover a ultrapassagem do machismo e da misoginia como fatores de reprodução da desigualdade e desse adestramento que absurdamente se encontra no núcleo da violência simbólica e que patrocina a violência escancarada. Mas, em 4 anos, isso foi demais para o presidente que aspira a ser novamente presidente.
Em um país no qual demorou-se décadas para conseguir uma declaração definitiva de inconstitucionalidade com relação à tese absurda da “legítima defesa da honra”, condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a promover um ato normativo como a Lei Maria da Penha, com altos índices de violência contra as mulheres, as palavras do responsável do Executivo, o que significa ser o condutor em escala federal das políticas públicas dirigidas ao combate à misoginia, como ordena a Carta de 1988, não somente são improprias e desmerecedoras de obtenção de qualquer favorecimento popular nas urnas, senão também perigosamente reprodutoras de um padrão de relações contrário aos fins civilizatórios expostos na Constituição e documentos internacionais de proteção não só da mulheres, mas de todos os seres humanos.
A experiencia histórica disponível permite visualizar que esta desracionalização só contribui a desmontar as garantias constitucionais em favor das mulheres. Garantias que bem interpretadas e aplicadas talvez permitam redirecionar o próprio Direito para uma sociedade definitivamente justa, de roles cumpridos sem imposições, procurando um olhar integral aos processos de formação das identidades de género, com equidade, sem falsos moralismos, com igualdade de género, por supuesto.
Imagem Ilustrativa do Post: Machismo dá impotência! // Foto de: Felipe Braga // Sem alterações
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