Coluna Espaço do Estudante
O delito de lavagem de dinheiro é tido por alguns doutrinadores como “o crime econômico da pós-modernidade” pois, ante a inevitabilidade de formação de associações, conglomerados e organizações na sociedade contemporânea, algumas destas ilícitas, faz-se necessário que se torne apto a ser usufruído o lucro obtido pelas atividades engendradas pelas massas organizacionais apontadas, sob pena de se inutilizar todas as tramas que estas levam a cabo para que se perpetuem.
Desta forma, os delitos econômicos contra o sistema financeiro nacional tornam-se mais comuns e necessários ante a maior ocorrência de delitos praticados por organizações criminosas ocorrendo, muitas das vezes, a participação de agentes públicos para sua prática, em concurso com crimes como corrupção passiva, ativa e obstrução da justiça.
Assim, imperiosa a provocação ao debate de temas sensíveis e ainda pouco discutidos no que tange a este ilícito.
A nova lei de lavagem de dinheiro, com as alterações efetuadas pela lei 12.683/12, trás em seu artigo 11, inciso II, a obrigação de que pessoas físicas ou jurídicas que captem, administrem, comprem, vendam ou apliquem, como atividade econômica principal ou acessória, recursos financeiros de espécies diversas, nestas incluídos os títulos mobiliários e instrumentos cambiais, seja em moeda corrente ou estrangeira, conforme dicção do artigo 9º da referida legislação, comuniquem ao COAF acerca de quaisquer atividades suspeitas, num prazo determinado, sob pena de sanções administrativas previstas nesta lei.
Logo, pessoas como gerentes de banco e administradores de empresas possuem o ônus legal de afastar o seu interesse financeiro nas atividades que lhe passam a vista para preservar o interesse público, desafiando as sanções previstas no artigo 12, entre elas a pena de advertência, multa limitada a valores e/ou proporções previamente determinadas, inabilitação temporária para cargos diretivos e cessação ou suspensão de autorização para exercício de atividades específicas.
Entre as sanções administrativas manifestadas no dispositivo retro citado, salta aos olhos a cassação ou suspensão da autorização para o exercício da atividade, operação ou funcionamento, prevista no art.12, IV.
Isto é, se o agente financeiro fizer “vista grossa” a uma atividade suspeita a qual teria o dever de comunicar às autoridades sobre sua ocorrência, poderá ficar inabilitado para o exercício de cargos de mesma natureza.
Entretanto, é importante ressaltar que a penalidade em comento só se aplicará em caso de reincidência a infrações punidas com inabilitação temporária.
Mister se faz observar que a norma de direito material em comento, ao renovar a tratativa legal no que toca ao dever de comunicar os órgãos responsáveis pelo controle da circulação do capital financeiro nacional, parece ter acarretado demasiadas oportunidades para que o agente se perpetue na escala delitiva.
Considere a situação hipotética em que um sujeito, mediante oferta de vultosa recompensa em dinheiro, recebe a proposta de, em razão de seu cargo de gerência de uma agência bancária, efetuar diversos depósitos de grande volume em contas diversas, se omitindo de comunicar a suspeição aos órgãos competentes.
Sabe-se, a luz da tratativa em comento, que o comportamento narrado é previsto na circular do BACEN como situação que presencia indícios de ocorrência dos crimes previstos na lei de lavagem de capitais. Neste contexto, o agente que dá prosseguimento à operação sem se atentar as normas, está sujeito a, dependendo da gravidade, pena de multa limitada ao dobro do valor da operação, cumulada ou não com advertência, nos termos do Art. 12, I e II da lei 9.613/98.
Poderá ocorrer, ainda, a inabilitação temporária para o exercício da função, caso haja a reincidência de infrações apenadas com multa, bem como a cassação de autorização, resguardando o direito de processo administrativo em que lhe seja assegurada a ampla e defesa e contraditório.
Deste modo, o sistema a que se denomina “eficiente” na persecução dos crimes de lavagem de dinheiro também permite diversas brechas a reincidência delitiva, dando margem a sérios danos ao sistema financeiro nacional, além do alongamento das atividades de organizações criminosas que utilizam a lavagem de capitais para usufruir dos lucros obtidos a partir de práticas penalmente recrimináveis.
Com o implemento da alteração legislativa, o Banco Central editou cartas circulares com o fim de dar base à identificação de condutas criminosas, como a Carta Circular nº 3542, editada em 12 de março de 2012, a qual prevê condutas aptas a constituírem indícios de cometimento do delito de lavagem de capitais.
Menciona-se, a título de exemplo, o item IV, “d”, do mencionado ato normativo, o qual sugere a suspeição do comportamento de manter a “manutenção de numerosas contas destinadas ao acolhimento de depósitos em nome de um mesmo cliente, cujos valores, somados, resultem em quantia significativa”.
O comportamento previsto pelo item citado exterioriza a confusão de capitais, utilizada comumente na segunda fase da lavagem, qual seja, a dissimulação do capital ilícito, pelo depósito em espécie, podendo ou não ser de grande volume, em diferentes contas de localidades diversas, com o fim de dificultar a claridade do rastro do dinheiro.
Contudo, há que se considerar que os procedimentos elencados servem apenas como parâmetro para orientar as atividades de instituições financeiras, eis que a mesma, em seu artigo 1º, alerta para a necessidade de se considerar outros fatores unidos à verificação da atividade suspeita, como a frequência com que a movimentação é realizada, os valores e as partes envolvidas.
A ressalva sugerida apresenta-se de vital importância para que se evite arbitrariedades e se promova a cautela no trato financeiro, sob pena de se imputar falsos delitos a sujeitos que detenham como natureza de sua atividade financeira determinados comportamentos bancários que, longe da ponderação necessária, podem ser entendidos como transgressores.
No contexto da responsabilização do agente financeiro pela prática da lavagem de dinheiro, insere-se a teoria da cegueira deliberada, willfull blindness ou evitação da consciência, tratando-se da hipótese em que o agente, deliberadamente, decide “fechar os olhos” para os indícios de atividades delituosas.
O desenvolvimento dogmático da teoria da cegueira deliberada aplica-se no tocante aos crimes de colarinho branco em que o agente, visando o lucro oriundo daquela atividade, ignora a ocorrência do delito, por livre vontade, assumindo os riscos e possíveis benesses oriundas daquela prática, num paralelo com o dolo eventual.
Por imperativo doutrinário, aquele que abre mão do hábil conhecimento de subsidiar a responsabilização dolosa do crime, incorre no mesmo fato típico, como se presentes os elementos da cognição.
Na jurisprudência pátria ainda é tema incipiente a aplicação da wilfull blindness nos crimes de lavagem de dinheiro, ante a redação da lei 9.613/98 que exige que o agente possua efetiva participação no processo de branqueamento dos capitais envolvidos, não se admitindo, a priori, o dolo eventual para tipificação da conduta.
Pierpaolo, neste sentido:
“Pelas regras legais, se o agente desconhece a procedência infracional dos bens ocultados ou dissimulados, faltar-lhe-á o dolo da prática de lavagem e a conduta será atípica mesmo se o erro for evitável, pois não há previsão da lavagem culposa. Assim, se o agente não percebe a origem delitiva do produto que mascara por descuido ou imprudência, não pratica lavagem de dinheiro, respondendo penalmente o terceiro que determinou o erro, se existir”[2]
Assim, controvérsias surgem ao indagar qual é o grau de consciência necessário para a configuração do crime, basta que o agente suspeite do cometimento de lavagem de capitais, ou possua ampla certeza e, apesar disto, se abstenha?
Acerca dos apontamentos presentes, importante ressaltar que à época do julgamento da Ação Penal 470, os ânimos se encontraram acalorados no debate da referida controvérsia, a medida que surgiam contradições entre os ministros da suprema corte ao votar o acordão, tendo a maioria admitido a possibilidade de configuração do dolo eventual, responsabilizando o agente.
Desta forma, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é pela admissão do dolo eventual em todas as modalidades da lavagem de dinheiro. Todavia, a problemática maior surge ao se considerar a hipótese de responsabilização criminal do agente financeiro, ponto deste trabalho, ao se omitir de comunicar aos órgãos responsáveis sobre a ocorrência de situações indicadoras de crimes contra a ordem econômica.
Nesta ótica, o agente financeiro diante das situações previamente exposta poderá ser responsabilizado criminalmente, a depende de sua [possível] participação no delito, ainda que não tenha praticado o verbo nuclear do tipo, bastando, para tal, que se prove que o agente possuía, de alguma forma, o “domínio final” do fato. Na cátedra de Callegari:
“Assim, é acertado dizer que em determinados casos os agentes financeiros podem participar do delito sem que tenham realizado o verbo nuclear descrito no tipo, mas também é necessário que se prove que este sujeito de alguma forma detinha o domínio final do fato, isto é, também tinha o controle da execução sob suas mãos (domínio funcional do fato), e que sem ele o fato como um todo não se realizaria” [3]
Isto é, o agente poderá ser criminalmente responsabilizado, desde que se comprove que este detinha o domínio final do fato, pressuposto necessário para que se configure a autoria delitiva, esculpida pelo controle sobre a direção da conduta e o fim desejado. Conforme ensina Álvaro Mayrink da Costa:
“Autor é aquele que tem o domínio do fato, isto é, possui o pleno domínio da ‘configuração central objetiva’, requerendo o critério do domínio do fato aspectos objetivos e subjetivos, visto que o domínio do autor sobre o curso do fato deve ser proporcional em função da forma em que se desenvolve a causalidade no caso concreto, assim como pela direção que ela imprime, não se confundindo com o dolo. Torna-se necessário que o titular do domínio do fato conheça as circunstâncias fáticas que fundamentam tal domínio sobre o acontecimento, sendo que o dolo do domínio do fato é mais do que um mero pressuposto da imputabilidade, na verdade, parte integrante.”[4]
Adiante, entende-se que, a priori, se inadmite a responsabilização do agente que, atuando dentro dos limites do risco juridicamente permitido, colabora com a atividade criminal de outrem. Isto é, se age de acordo com as regras que lhe foram impostas para o adequado exercício de sua atividade administrativa ou gerencial e, apesar disto, colabora para a empreitada criminosa, estará desculpado, salvo se detinha o domínio do fato somado a intenção de suceder ao cometimento do crime, não se admitindo a posição de garante para que se proceda a responsabilização penal do agente. Entretanto, entendemos que o entendimento adotado pela corte superior no tocante ao dolo eventual nos delitos de lavagem se conforme em um passo para a ampliação do papel de agente garantidor também aos responsáveis pela guarda, administração, venda ou intermediação de valores financeiros.
Mister se faz apontar acerca da natureza probatória notadamente indiciária nos crimes financeiros, diferenciando-se de crimes comuns como homicídio e lesão corporal, que deixam vestígios pericialmente constatáveis.
Nos delitos financeiros se faz necessário provar os indícios levantados na persecução penal para que se chegue à cognição judicial sobre o cometimento da infração. Ante o exposto, faz-se necessário averiguar a conexão estabelecida entre o agente financeiro e o sujeito ativo do delito podendo, com esta verificação, se chegar ao entendimento da participação na tarefa delitiva, passando de uma ação neutra, dentro dos limites admitidos pela normativa imposta, aos indícios de participação em um crime praticado por outrem.
Efetuados os apontamentos necessários e levantadas as discussões pertinentes, conclui-se o trabalho com o entendimento de que o ordenamento jurídico pátrio deixa perigosas lacunas no trato dos delitos financeiros, desaguando em severos danos a ordem econômico-financeira como se tem verificado nas palpitantes manchetes, dando azo ao sentimento de insegurança jurídica, financeira e social a toda uma nação já ferida e transpassada tantas vezes por desventuras pretéritas.
Desta forma, reduz-se cada vez mais a esperança em um país em que se decide o que se fazer, como fazer, a quem e quando, ignorando o alvitre das circunstâncias, fazendo com que a confiança se escoe no córrego das lamúrias coletivas, gerando um Estado em que é difícil acusar, defender e julgar.
Notas e Referências
[1] FILIPPETTO, Rogério. Lavagem de dinheiro. Editora Lumen Iuris. 2011.
[2] PIERPAOLO, Crus Bottini. A cegueira deliberada no julgamento da Ação Penal 470. https://www.conjur.com.br/2013-jul-30/direito-defesa-cegueira-deliberada-julgamento-acao-penal-470
[3] CALLEGARI, André Luis. A Ação penal 470 e os limites da responsabilidade penal dos agentes financeiros. https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4802-A-Acao-Penal-470-e-os-limites-da-responsabilidade-penal-dos-agentes-financeiros
[4] COSTA, Alvaro Mayrink da. Curso de Direito Penal, parte geral. 1ª edição. 2015. GZ Editora.
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