Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
A reintegração social dos custodiados é um objetivo fundamental das políticas penitenciárias e de justiça criminal em muitos países, incluindo o Brasil. O dever do Estado na reintegração social dos custodiados está previsto em vários dispositivos legais, em especial, na Lei de Execução Penal, a qual enfatiza em seu artigo inaugural o compromisso do Estado brasileiro para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Uma análise profunda sobre a temática é feita por Gustavo Felipe Petry Veronese, pesquisador do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente, bem como do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade da Universidade Federal de Santa Catarina na obra “O Papel do Estado para com os Custodiados”. O objetivo central do autor consiste em avaliar a aplicação da responsabilidade civil do Estado em relação ao seu dever corretivo para com os custodiados, à luz dos altos índices de reincidência e evasão no sistema prisional brasileiro.
O livro possui uma estrutura clara e bem-organizada, sendo dividido em capítulos que tratam da revisão bibliográfica, coleta de dados estatísticos, análise de políticas de reintegração e proposta de um novo prisma de responsabilização estatal. A metodologia empregada é o método hipotético-dedutivo, que permite uma abordagem crítica e investigativa, iniciando com hipóteses fundamentadas na Teoria do Risco Administrativo e testando-as por meio da análise de dados e casos concretos.
Veronese apresenta, num primeiro momento (capítulo 2), uma revisão abrangente da responsabilidade civil do Estado e da Teoria do Risco Administrativo. Ao citar autores clássicos e contemporâneos, discute a evolução histórica da responsabilidade estatal, desde a ausência de responsabilidade no século XIX até a adoção da responsabilidade objetiva no Brasil, baseada na justiça social e na diminuição das barreiras enfrentadas pelos indivíduos em busca de reparação por danos causados por condutas estatais.
O autor salienta que a ineficiência do sistema prisional, demonstrada pelos crimes cometidos dentro das prisões, pelas fugas, especialmente aquelas que resultam em novos delitos, e pelos altos índices de reincidência, é resultado de uma grave omissão por parte do Estado.
Neste sentido, a falha grave no cumprimento do dever corretivo é considerada uma causa "direta e imediata" dos danos sofridos pelas vítimas desses crimes recorrentes, mesmo que tais danos sejam indiretos. Isso ocorre porque a maioria desses eventos prejudiciais não aconteceriam se o Poder Público não fosse negligente em cumprir as obrigações legais relacionadas à reintegração social dos custodiados.
Veronese também explora as interpretações criminológicas e legais da função da pena com o objetivo de identificar qual o fim útil desta e como o Estado se obrigou a obtê-lo. Para tanto, cita obras fundamentais como "Vigiar e Punir" de Michel Foucault e "Dos Delitos e das Penas" de Cesare Beccaria. Enquanto Beccaria se concentra na justiça e na prevenção como principais funções da pena, Foucault oferece uma análise mais crítica sobre como a pena serve para disciplinar e controlar a sociedade. Ambos reconhecem a função preventiva da pena, mas abordam seu papel e impacto de maneiras diferente. Veronese, por conseguinte, entende que a pena deve ter um caráter corretivo, focado na prevenção de futuros crimes e na reintegração dos detentos, em vez de ser meramente punitiva.
Dentro do mesmo capítulo, o autor discute o conceito de Justiça Restaurativa como uma abordagem alternativa à justiça criminal tradicional. Cita Howard Zehr como o maior expoente do tema, sendo que um dos conceitos importantes por ele introduzido é a ideia de "troca de lentes" na obra Changing Lenses – A New Focus for Crime and Justice.
A metáfora refere-se a uma mudança de perspectiva sobre o crime e a justiça ao trabalhar a dicotomia entre as lentes retributivas e restaurativas. A perspectiva restaurativa apresentada busca, neste sentido, envolver a vítima, o infrator e a comunidade no processo de resolução, promovendo a responsabilidade e o diálogo para restaurar as relações e atender às necessidades das partes afetadas.
No contexto, o autor faz menção ao Estatuto da Criança e do Adolescente que incorpora em seu texto normativo, ideais da Justiça Restaurativa. As medidas socioeducativas/protetivas nele contidas, são instrumentos pedagógicos que visam a restauração e reintegração social dos adolescentes infratores, reafirmando a importância de um tratamento humanizado e educativo.
Num segundo momento (capítulo 3), a obra caminha à abordagem da realidade carcerária brasileira a partir da análise de dados oficiais que apresentam as condições das prisões e seu impacto na reintegração dos detentos.
Ao tratar dos vícios estruturais do sistema carcerário, o autor se refere à superlotação como a “mãe” de todos os outros vícios. As condições de vida extremamente precárias enfrentadas pelos detentos, tendem a gerar um ambiente propício à reincidência criminal. A má gestão dos recursos também foi evidenciada a partir dos dados apresentados, reforçando a necessidade de uma reforma estrutural abrangente.
Uma decisão importante do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADPF 347, reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" das prisões brasileiras, tendo a corte determinado medidas abrangentes para corrigir as deficiências. Para o autor, a jurisprudência revela que o Estado é frequentemente responsabilizado pela integridade física e moral dos detentos, com a necessidade de reparação de danos decorrentes de falhas na custódia.
No capítulo quatro, a obra apresenta duas concepções principais para a geração de responsabilidade. A primeira é a responsabilização formal, que ocorre com o simples descumprimento do dever legal. A segunda, chamada de modalidade "material", considera o dano (ilícito) gerado em si como a causa para a responsabilização. Essa modalidade material inclui três razões principais: má administração dos presídios (o espaço físico), má administração das penas (a metodologia de retribuição-prevenção) e a possibilidade de ação diversa, baseada em experiências mais bem-sucedidas de reintegração social e eficácia do sistema.
Por fim, o autor adentra em uma análise filosófica sobre a relação entre o Estado e a população, argumentando que o dever estatal de proteger os cidadãos inclui garantir condições dignas para a reintegração social dos presos. A omissão do Estado nesse dever resulta em danos contínuos à sociedade, perpetuando ciclos de criminalidade. A responsabilidade estatal, portanto, não se limita a cumprir normas jurídicas, mas também a desenvolver políticas públicas eficazes que assegurem a reintegração dos custodiados e contribuam para uma sociedade mais segura e justa.
No último capítulo, claramente é apresentada uma nova perspectiva para a responsabilização estatal pela falha no cumprimento do dever de reintegração social dos custodiados. A ideia central é que o Estado, ao assumir a responsabilidade pela reintegração social dos detentos, deve ser responsabilizado pelos novos delitos cometidos por aqueles que passaram pelo sistema carcerário, uma vez que a falha em cumprir esse dever se dá por omissões e ações do próprio Estado. O autor defende que a responsabilização é não apenas adequada, mas também útil e justa para corrigir as consequências negativas desse descumprimento.
Para sustentar essa proposta, apresenta três pilares estruturais: a definição da falha do dever estatal, os motivos para a responsabilização e a obrigação de indenizar as vítimas. A responsabilização é vista como uma forma de incentivar melhorias no sistema carcerário, aumentar os índices de reintegração social e diminuir a reincidência criminal. A ideia é que, ao enfrentar a possibilidade de indenizações, o Estado teria um forte motivador para implementar mudanças positivas no sistema. Apesar dos desafios legais e da necessidade de ajustes normativos, essa nova perspectiva de responsabilização é defendida como uma medida justa e viável para promover um futuro mais seguro e equitativo.
A obra apresentada é relevante e inovadora, na medida em que contribui significativamente para o debate sobre a responsabilidade civil do Estado na reintegração de detentos. A abordagem analítica e bem fundamentada de Gustavo Felipe Petry Veronese oferece uma nova perspectiva jurídica, propondo soluções pragmáticas para melhorar o compromisso estatal na reintegração social e diminuir os índices de reincidência e evasão no sistema prisional brasileiro.
Notas e referências:
VERONESE, Gustavo Felipe Petry. O Papel do Estado para com os Custodiados: uma análise sobre a responsabilidade do estado pela devida reintegração de detentos e socioeducandos. 1. ed. Florianópolis: Habitus, 2024. e-book. ISBN 978-65-5035-11. Disponível em: https://www.habituseditora.com.br/index.php?q=cust24. Acesso em: 10 jul. 2024.
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