RESENHA DA OBRA “ABANDONO DE FILHOS ADOTIVOS: SOB O OLHAR DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA RESPONSABILIDADE CIVIL”

29/08/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Existe no Brasil uma dura realidade que pouco é divulgada por intermédio dos veículos de comunicação, mas que tem um impacto psicossocial relevante em toda sociedade. Crianças que são adotadas e depois “devolvidas”, acabam por sofrer uma série de traumas, que poderão ser levados por toda vida. Sobre essa temática, a obra “Abandono de filhos adotivos: sob o olhar da Doutrina da Proteção Integral e da responsabilidade civil”, traz consigo um debate relevante sobre a responsabilização daqueles que se submetem a um processo de adoção e depois desistem desse propósito, já com a criança sob seus cuidados.

Os autores Josiane Rose Petry Veronese e Marcelo de Mello Vieira, abordam de maneira crítica essa temática, elencando os tópicos “devolução de crianças” e “reabandono” para tratar de casos de “adoções frustradas”. Os profissionais citados possuem ampla formação técnica na área jurídica, sendo a Dra. Josiane, professora titular da disciplina de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, orientando mestrandos e doutorandos, encabeçando também, projetos de pesquisas na área. Já o Dr. Marcelo possui uma série de publicações de relevância nacional sobre o assunto, incluindo artigos científicos e diversos livros.

A obra que será discutida mais adiante, foi sabiamente construída com o propósito de nortear a visão dos magistrados brasileiros, pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento, assim como trazer à luz um tema tão importante a todos. Com isso, serão analisadas as perspectivas sobre as decisões judiciais expedidas no âmbito nacional, além de uma visão bibliográfica multidisciplinar. Por fim, também será debatido o Projeto de Lei n. 1.048 de 2020, que versa sobre a responsabilização civil dos adotantes.

O livro é dividido em três partes. Na primeira é feita uma retrospectiva histórico-legislativa, com foco na família e seu papel no Direito da Criança e do Adolescente. O segundo capítulo trata da “adoção frustrada”, especialmente sob o olhar da Psicologia e do Serviço Social. O último capítulo vai discutir se a reparação civil é a resposta adequada a esses casos.

O primeiro capítulo se inicia apontando que a regulação do Direito de Família no Código Civil de 1916 tinha um viés patrimonial e se baseava em três pilares: casamento, hierarquia e patrimonialidade. No que tange à proteção da filiação, o casamento era o vetor de legitimidade dos filhos, submetidos ao pátrio poder, que era centralizado no homem provedor. Com exceção do modelo familiar heterossexual, consubstanciado no casamento, outras organizações familiares não eram protegidas pelo Direito.

Na década seguinte, emerge o primeiro documento voltado especificamente para a infância, o Decreto n. 17.943/1927, mais conhecido como Código de Menores, o qual regulamentava a situação dos menores[1] abandonados (que abrangia hipóteses não apenas de ausência efetiva dos pais, mas também situações de incapacidade de cuidado, pela conduta moral destes ou pela prisão, por exemplo) e aqueles considerados delinquentes. Assim, a aplicação do Código de Menores se restringia às crianças que não fizessem parte do núcleo conhecido e protegido como família. As mudanças nas configurações familiares não modificaram as bases do direito de infância, o qual foi regulamentado por nova lei, em 1979, mas que manteve as bases do código anterior, de penalização das “famílias desestruturadas”, por meio da Doutrina da Situação Irregular.

Apesar de a obra apresentar uma evolução significativa quanto aos direitos das crianças e dos adolescentes, é indispensável mencionar que no Brasil a vulnerabilidade social é o principal fator que leva os genitores a renunciarem à tutela de sua prole. Vale ressaltar que a Lei 13.509/2017, chamada de “Lei da Adoção”, trouxe alterações ao Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e incluiu a chamada “entrega voluntária”, que consiste na possibilidade de uma gestante ou mãe de entregar seu filho ou recém-nascido para adoção em um procedimento assistido pela Justiça da Infância e da Juventude. Desse modo, observa-se que o contexto de vida em que a genitora está inclusa, pode ser fator preponderante em sua decisão. Sendo assim, diversos retrocessos sociais amplamente divulgados nos últimos anos, têm corroborado para que esse cenário permaneça em ascensão.

A onda democrática trazida pela Constituição de 1988 trouxe evoluções ao conceito de família, mais plural e igualitário. Essas mudanças também afetaram o Direito da Criança e do Adolescente, por meio da Doutrina da Proteção Integral prevista na Constituição Federal de 1988, a qual garante o status de sujeito de direitos para crianças e adolescentes. Nesse novo paradigma, a responsabilidade de cuidado é dividida entre família, Estado e sociedade, apesar de, na prática, a família seguir sendo prioritária, o que justifica a ingerência da doutrina civilista nas questões envolvendo a infância.

Esses primeiros apontamentos da obra permitem situar a discussão que é foco do livro temporalmente, buscando apresentar o caminho evolutivo pelo qual passou o Direito da Criança e do Adolescente, o qual influencia na forma como este se apresenta atualmente, nas disposições existentes na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente e em outras leis que abordam o tema. Assim, desde um ponto de vista metodológico, a localização histórica do problema analisado é essencial para uma abordagem crítica do abandono de crianças após a adoção.

Outro tema essencial é a discussão de alguns conceitos que extrapolam o dogmático-jurídico, mas que permeiam o problema analisado, uma vez que ele mesmo vai além do Direito. O conceito de “cuidado”, por exemplo, não nasce no Direito, mas é trazido para ele por meio do trabalho de Tânia da Silva Pereira sobre crianças e adolescentes e o idoso, sendo ele um valor jurídico do qual se extraem deveres para as relações privadas e institucionais.

Na mesma toada, em 2012, o cuidado foi reconhecido como um dever jurídico pelo Supremo Tribunal de Justiça, especialmente quando relacionado ao poder familiar. No âmbito do dever de proteção integral, o cuidado aparece em todas as fases da vida da criança e do adolescente, assumindo formas específicas em cada uma, indo além do amparo material. Já o direito à convivência familiar aparece pela primeira vez no ordenamento interno na Constituição de 1988, inspirada na normativa internacional sobre o tema, e é reforçado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Significa, em linhas gerais, o direito de fazer parte de núcleo familiar e se desenvolver dentro dele.

Partindo desses princípios e definições, o Direito desenvolve os conceitos de família presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente: a família natural (formada pelos pais ou qualquer um deles e seus filhos), a família ampliada (formada por parentes próximos com os quais a criança convive e tem relações de afetividade) e a família substituta (conceito residual, não abrangendo o contido nos anteriores).

Segundo a legislação, é dada prioridade para a manutenção da criança com a família natural em seus diferentes formatos, sendo o rompimento do vínculo medida excepcionalíssima. Nesse último caso, prioriza-se a família ampliada, como forma de diminuir efeitos negativos. Mesmo no caso de transferência para família substituta, deve-se priorizar laços afetivos eventualmente existentes. A transferência da criança para família substituta é feita por meio da guarda, da tutela e da adoção.

Os autores também apresentam um pouco sobre o processo de adoção, o qual é regulamentado principalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e é centrado no maior interesse da criança de voltar à convivência de um grupo familiar. Como bem apresentam, a adoção não deve ser vista como uma política pública (como uma regra), mas como medida excepcional, utilizada apenas quando não é possível manter ou devolver a criança para a família natural ou ampliada.

A adoção é um procedimento delicado e cuidadoso e, por isso, envolve uma fase inicial de habilitação. Nessa fase são avaliados e preparados os pais que tenham efetivas condições de exercer a parentalidade pela adoção. Ela se inicia com um pedido dos pretendentes ao judiciário, acompanhado com a documentação e uma ficha das preferências para o adotado; em seguida, é feita uma avaliação psicossocial. A terceira fase envolve um programa de capacitação, momento em que os pretensos pais têm contato com as instituições e pessoas envolvidas com as adoções.

Essas fases são seguidas de trâmite judicial, em que o Ministério Público avaliará se os candidatos estão habilitados para a adoção e, se sim, estes serão cadastrados no Sistema Nacional de Adoção. O processo efetivo de adoção, quando os adotantes manifestem seu interesse, se inicia com um período de aproximação, seguido de autorização para convivência, com a concessão da guarda para fins de adoção. O período de convivência é, especialmente, em favor da criança, como forma de avaliar a possível construção de laços e seu bom desenvolvimento; não se trata de um período de teste para os pais, os quais assumem um compromisso ético e jurídico com a guarda. Com a avaliação positiva desse período de convivência, a adoção é deferida judicialmente, rompendo-se os vínculos jurídicos anteriores.

Os autores são bem-sucedidos em apresentar o sistema de proteção legislativa à criança e ao adolescente como voltado para a sua atenção integral e sempre priorizando seus interesses. A descrição do processo de adoção é prova disso, uma vez que volta seu olhar para as necessidades do adotado, não do adotante. Apesar de ser um trâmite minucioso, os autores apontam um aumento de desistências de adoção (no período de convivência) e devoluções (após a conclusão da adoção).

Levando em conta esta problemática, Josiane R. Petry Veronese e Marcelo Vieira apresentam algumas questões relevantes para entendê-la, como é o caso da discussão sobre os motivos para a adoção e o posterior abandono. Desde uma perspectiva jurídica, apenas um motivo seria considerado idôneo para a adoção, o desejo de exercer a parentalidade. O amor e a vontade de constituição de uma família, então, são motivos gerais que levam pessoas a adotar. Considerar os motivos da adoção pode ser relevante para avaliar o possível sucesso ou insucesso do processo e, por isso, é importante que eles sejam analisados já na fase de habilitação.

Motivações ilegítimas podem estar relacionadas à satisfação única de desejos do adotante, dentre os quais podem-se incluir “a esterilidade, o desejo de um filho com um determinado sexo, substituir um filho falecido, dar um irmão a um filho que os interessados já possuam ou até preencher um sentimento de vazio” (VERONESE; VIEIRA, 2022, p. 76).

Todos os motivos levantados pela bibliografia especializada para o abandono têm em comum a objetificação da criança, que não corresponde às expectativas dos adotantes. Dentre esses motivos se destacam “mentiras, agressão, fuga, desobediência, falta de higiene, furtos” por parte das crianças e “medo de que o sentimento de parentalidade não se concretize, a depressão ou gravidez da guardiã, maus-tratos, divergências entre os guardiães sobre como educar a criança, ciúme e até desavenças entre os filhos naturais e o adotando” (VERONESE; VIEIRA, 2022, p. 78-79). Em resumo, essas causas demonstram a não formação de uma parentalidade de fato, somadas muitas vezes a uma crença de traços negativos herdados da família biológica.

Essa análise é muito bem conduzida no livro, em diálogo com outras disciplinas, especialmente a Psicologia e o Serviço Social, o que comprova o caráter multidisciplinar da obra. Também é um chamado para que a atuação jurídica não se isole dos demais ramos, essenciais para lidar com questões complexas, como aquelas que envolvem crianças e adolescentes.

Seguindo essa abordagem, os autores passam a analisar os reflexos causados pela devolução nas crianças. A devolução pode ser vista, segundo eles, como o resultado de uma falha de todo o sistema de proteção dos direitos da criança e do adolescente. Melhor do que se falar em devolução, o que pode coisificar a criança, fala-se em abandono de filho adotivo, ou reabandono (do ponto de vista da criança). Esse ato terá reflexos psicológicos para ambas as partes, e jurídicos, para os pais.

Em primeiro lugar, a devolução pode significar uma nova ruptura no desenvolvimento da personalidade da criança, que deverá se readaptar a novos contextos, assim como ocorre no primeiro abandono. São alguns reflexos visíveis desse trauma “o choro constante, o desenvolvimento de sentimentos de culpa ou de angústia, depressão, dificuldades de estabelecer novos sentimentos de confiança, distúrbios de sono, isolamento temporário e até dificuldades cognitivas” (VERONESE; VIEIRA, 2022, p. 88).

Os danos psicológicos acima elencados são, segundo os autores, passíveis de reparação civil do ponto de vista moral e de novas modalidades atualmente existentes, numa tentativa de compensação. Isso porque, a devolução atinge a dignidade da criança, seus direitos da personalidade e seus interesses existenciais. Nesse ponto, a obra adentra o seu ponto central, que é a discussão da responsabilidade civil dos adotantes, decorrente da devolução da criança.

No que tange a falha do Estado em todo o procedimento de adoção, é inquestionável que a criança está sendo privada do crescimento em um seio familiar, o que fere diretamente a sua dignidade como ser humano. Essa dignidade é responsabilidade do Estado de Direito e tem posto de Fundamento da República no art. 1º, III da Constituição Federal. Mais adiante, a Carta Maior do Brasil, segue se comprometendo: “art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Assim sendo, quando uma criança adotada retorna as casas lares (10 crianças e adolescentes), abrigo institucional (20 crianças e adolescentes) e família acolhedora (acolhimento na casa de uma família formada e acompanhada para exercer o papel de cuidador temporário), fica claro que não apenas o Estado falhou com suas obrigações, mas toda uma sociedade também.

Partindo de uma revisão bibliográfica, apontam que há autores que associam os resultados da devolução ao “dano ao projeto de vida”, ou seja, à possibilidade de definição de sua trajetória. Essa modalidade pode se diferenciar do dano moral, por exemplo, porque pode durar a vida toda. Ela se relaciona ao abandono familiar, uma vez que este rompe com o projeto de família que faria parte do desenvolvimento da criança, mudando os rumos de sua história.

Também se fala da perda de uma chance nesses casos. Esta ocorre quando o ato ilícito “tira da vítima a oportunidade de obter uma situação futura melhor” (VERONESE; VIEIRA, 2022, p. 94), especialmente se as circunstâncias tornarem mais dificultosa a colocação da criança em nova família posteriormente. É justamente essa porcentagem de oportunidade que será indenizada. Entretanto, é difícil quantificá-la na prática, uma vez que a família é um valor imaterial.

Após esse apanhado crítico, a obra passa a analisar e comparar o caso-problema a uma discussão relevante no âmbito do Direito de Família, que é o abandono afetivo, apresentando pontos de aproximação e afastamento entre eles. Dizem que autores do direito de família entendem o afeto como definidor das entidades familiares, bem como um princípio derivado da dignidade humana, o qual, em tese, poderia ser exigido por um membro da família (descumprimento de uma norma jurídica). Esse entendimento, entretanto, foi questionado e, em um primeiro momento, refutado pelo Supremo Tribunal de Justiça, com base, dentre outros argumentos, na impossibilidade de se impor o dever de amar, mas tão somente de se prestar apoio material dos pais.

Essa visão sofreu duras críticas por parte da doutrina e, em decisão posterior, o Supremo Tribunal de Justiça abrandou sua posição ao dizer que, apesar da inexistência de um dever de amar, há deveres que “envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sociopsicológico da criança” (VERONESE; VIEIRA, 2022, p. 101), passando-se a uma análise objetiva.

Apesar da discussão do afeto ter pontos comuns nos casos de abandono afetivo (tratados aqui e pelo Supremo Tribunal de Justiça) e de devolução na adoção, há grandes diferenciações relevantes, o que faz com que o cabimento da responsabilidade civil na última hipótese dependa de análise apartada. Assim, os autores apresentam muito bem a inovação da discussão trazida na obra, que pode ser, em um primeiro momento, confundida com o abandono afetivo, mas dele não se trata.

Após essa diferenciação, inicia-se novo capítulo em que se discutirá a responsabilidade civil como uma possibilidade de punição e compensação para os adotantes que abandonam os adotados. Faz-se uma abordagem que parte das caracterizações amplas da responsabilidade civil até sua adequação ao caso, bem como o panorama jurisprudencial atual.

Segundo os autores, a responsabilidade civil é o instituto do Direito Civil que lida com a reparação ou compensação de danos. A evolução doutrinária desse instituto acrescentou à sua função reparatória também um caráter preventivo e punitivo, especialmente no que diz respeito a danos extracontratuais. Sua aplicação a relações familiares, entretanto, é controversa. De um lado, há aqueles que defendem sua não aplicação, pois traria de volta discussões sepultadas, como da presença de culpa nas relações afetivas. De outro, há os que entendem que as relações familiares são relações jurídicas como quaisquer outras, e o descumprimento de deveres deve levar à reparação. Já uma corrente intermediária defende sua aplicação excepcional.

Reconhecendo a aplicação da responsabilidade civil para relações familiares, passa-se a analisar a presença de seus requisitos no caso analisado. A caracterização do ilícito fica clara quando se observa que o abandono é punido em diversas esferas do Direito. A aferição do nexo de causalidade dependerá de uma análise das condições psicoemocionais da criança antes e após a devolução. Sobre as modalidades de responsabilidade, se objetiva ou subjetiva, entende-se que nesse caso se trata de responsabilidade subjetiva, portanto é necessário aferir o dolo ou culpa. Nesse ponto, concordamos com as posições dos autores quanto à caracterização da responsabilidade civil nos casos de abandono. Essa parece ser também a posição dos tribunais brasileiros, apesar da escassez do tema.

A análise jurisprudencial conduzida pela obra foi feita através da busca por decisões nos sites dos tribunais de todos os estados e do Distrito Federal. Foram encontrados oito julgados que falavam sobre a devolução de crianças, além de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Em todas as decisões, o pedido de indenização foi julgado procedente.

A maioria das decisões menciona, como motivo da devolução, o mau comportamento das crianças, o que denota a tendência de culpabilização da vítima e reforça os estudos da Psicologia e do Serviço Social anteriormente analisados. Na maioria dos casos também se observou uma diferenciação de tratamento entre filhos biológicos e adotivos. Também há predominância de devolução de crianças mais velhas. Os dados demonstram a ausência do fator emocional nas adoções, bem como a falta de qualificação devida dos adotantes, o que evidencia um problema do próprio processo de adoção, por mais minucioso que seja. Os casos evidenciam o descumprimento do dever de cuidado, inerente às relações familiares. A maioria das decisões considerou a responsabilidade subjetiva nesses casos, em consonância com o que trouxeram os autores.

Todas as decisões consideraram a configuração de dano moral, com um caso falando também de abandono afetivo, e outro de perda de uma chance, na linha das discussões anteriores da obra. O critério mais citado para quantificação do dano foi a proporcionalidade e a razoabilidade. Em vários casos, a indenização foi arbitrada na forma de prestação de alimentos, em razão do ato ilícito, o que também aparece na última análise realizada pela obra, de Projeto de Lei proposto em 2020 para normatizar a responsabilização civil pelo abandono.

O projeto modifica o parágrafo 5º do art. 197-E da Lei n. 8.069/1990 para definir medidas aplicáveis nas hipóteses de desistência do pretendente em relação à guarda para fins de adoção e de “devolução” da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da sentença de adoção (VERONESE; VIEIRA, 2022, p. 142). O artigo prevê como sanções pela devolução, além da exclusão dos cadastros de adoção e da impossibilidade de nova habilitação, a necessidade de custear os tratamentos psicológicos da criança devolvida, pagar indenização a título de danos morais e pagar um quinto do salário-mínimo até sua maioridade a título de alimentos, o que é levantado pelos autores e ressaltado por nós como um ponto de avanço com relação à configuração jurídica atual.

Importante ressaltar que a Responsabilidade Civil encontra respaldo no diploma jurídico pátrio chamado Código Civil, o qual tem a função de proteger bens materiais e imateriais de um indivíduo ou coletividade. No que tange ao abandono de filhos adotivos, é inegável o abalo psicológico do infante, assim, tal ato pode ser caracterizado como um dano causado às crianças e adolescentes. Esse dano, pela lei, é considerado um ato ilícito: “art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Por esse motivo, entende-se que há obrigação de indenizar, pois o mesmo texto segue mais adiante nesse sentido: “art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Portanto, torna-se notável a guarida jurídica que o “reabandono” se respalda para requerer uma indenização de cunho reparatório e pedagógico.

Entretanto, os autores afirmam que, apesar da importância dessas disposições, por colocarem fim à discussão sobre o cabimento de responsabilização civil, o projeto de lei não faz diferenciação entre a desistência da guarda para fins de adoção e a devolução propriamente dita, o que gera dúvidas sobre se há efetivamente a aplicação desse dispositivo para o segundo caso, sendo clara a necessidade de considerar a maior gravidade deste para análise do quantum indenizatório. Assim, permanece-se em um cenário embrionário no que diz respeito à discussão jurídica do tema.

Em conclusão à obra, os autores retomam algumas questões discutidas ao longo do texto, como forma de apresentar uma perspectiva geral do que foi abordado. A partir dos direitos elencados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como a Doutrina da Proteção Integral, o dever de cuidado, da família, da sociedade e do Estado, se torna um dever jurídico. Em consonância com o direito à convivência familiar, o rompimento dos vínculos entre a criança e sua família natural é absolutamente excepcional e, se o caso, devem priorizar a manutenção no seio familiar, mesmo que substituto, em detrimento do acolhimento institucional.

Nesse sentido, a adoção se torna medida excepcional, e não política pública. Por ser um processo delicado, a adoção envolve diversas etapas, que visam à construção do vínculo de parentalidade e evitar rompimentos como a devolução de crianças, ou seu reabandono. Nos casos em que esse abandono ocorre, é possível dizer que os danos ocasionados acarretam a possibilidade de responsabilização civil de caráter extrapatrimonial (moral). Este se caracteriza pela violação ao dever de cuidado inerente à relação parental.

Apesar dessa constatação, a temática ainda é pouco abordada nos tribunais nacionais. Além disso, nas decisões analisadas, observou-se a dificuldade de encontrar parâmetros objetivos para a quantificação do dano. Entretanto, o Projeto de Lei que tramita sobre o tema pode avançar em termos de efetivo reconhecimento quanto à possibilidade de responsabilização, bem como o estabelecimento de algumas balizas para a indenização.

A presente análise teve por escopo apresentar de forma minuciosa uma obra de qualidade ímpar e de relevância sem precedentes para o ordenamento jurídico pátrio. Deixando claro que o cuidado com as crianças e adolescentes é dever de todos, incluindo o Estado que muitas das vezes falha nessa atribuição. Portanto, de forma sábia, denota a realidade que se apresenta e quais suas possíveis soluções, passando pela interdisciplinaridade, bem como pela atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário. Por fim, a obra em comento cumpre com louvor a função que se propõe, possibilitando a capacitação de acadêmicos e profissionais de forma didática.

 

Notas e referências 

[1]A utilização do termo "menor" transmite uma ideia de inferioridade e fragilidade no contexto citado. Com o progresso na proteção dos direitos da criança e do adolescente, é importante substituir essa terminologia, a fim de assegurar a dignidade estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecendo-os como sujeitos de direitos.

VERONESE, Josiane Rose Petry; VIEIRA, Marcelo de Mello. Abandono de filhos adotivos: sob o olhar da Doutrina da Proteção Integral e da responsabilidade civil. São Paulo: Dialética, 2022.

 

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