Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em debates / Coordenadores Weber de Oliveira e Henrique Mouta
O Supremo Tribunal Federal, em 14 de maio de 2020, publicou acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5100, que objetivava o reconhecimento da inconstitucionalidade dos arts. 1º e 2º da Lei do Estado de Santa Catarina n. 15.945/2013, que estabeleceu o limite de 10 salários mínimos para os débitos a serem pagos por meio de Requisição de Pequeno Valor, nos termos do art. 100, § 3º, da Constituição Federal.
De início, imperioso destacar que a lei editada e os fundamentos da defesa estatal, agora corroborada pelo STF e alinhavados nesse texto, são decorrentes do trabalho profícuo do amigo de PGE/SC Bruno de Macedo Dias, que se passa a expor por empréstimo e autorização.
Nos fundamentos do voto do relator[i], Min. Luiz Fux, extrai-se que, além de se enfrentar a competência para a fixação dos valores pelos próprios Estados, adentrou-se no que se deve entender capacidade econômica, descrita no art. 100, § 4º, da Constituição Federal. Eis excertos da ementa:
- Os entes federados são competentes para estabelecer, por meio de leis próprias e segundo a sua capacidade econômica, o valor máximo das respectivas obrigações de pequeno valor, não podendo tal valor ser inferior àquele do maior benefício do regime geral de previdência social (artigo 100, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, na redação da Emenda Constitucional 62/2009). [...]
- A aferição da capacidade econômica do ente federado, para fins de delimitação do teto para o pagamento de seus débitos por meio de requisição de pequeno valor, não se esgota na verificação do quantum da receita do Estado, mercê de esta quantia não refletir, por si só, os graus de endividamento e de litigiosidade do ente federado. Precedente: ADI 4.332, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário, DJe de 8/5/2018. [...]
- A ausência de demonstração concreta da desproporcionalidade na fixação do teto das requisições de pequeno valor do Estado de Santa Catarina impõe a deferência do Poder Judiciário ao juízo políticoadministrativo externado pela legislação impugnada, eis que o teto estipulado não constitui, inequívoca e manifestamente, valor irrisório.
Em quatro premissas se assentou as razões de defesa da lei impugnada.
A primeira delas reside no fato de o Constituinte ter estabelecido que o modo originário de pagamento de débitos judiciais é o precatório, nos termos do art. 100 da Constituição Federal, sendo a requisição de pequeno valor exceção à essa regra.
Essa previsão tem como fundamento a necessidade de organização orçamentária para que as despesas dos Entes Públicos sejam compatíveis com as receitas. Isso porque a lógica do precatório baseia-se na previsibilidade orçamentária, no respeito à ordem dos credores (os que aguardam há mais tempo são prioritários) e no organizado controle pelo Tribunal de Justiça de todos os débitos. Diferente é o que ocorre em relação ao pagamento por meio de requisição de pequeno valor, que objetiva tão somente garantir a efetividade da tutela jurisdicional com a máxima celeridade, independentemente do respeito à ordem cronológica de sua apresentação.
Por essa razão, ante a ausência de previsibilidade orçamentária e a celeridade com que devem ser efetuados os pagamentos por meio de requisição de pequeno valor, mostra-se imprescindível que a lógica do sistema não seja desvirtuada, mantendo-se o precatório, sempre, como a regra geral de pagamento dos débitos judiciais.
A segunda premissa decorre diretamente da primeira. Ora, se a requisição de pequeno valor não garante a previsibilidade orçamentária, então os valores a serem pagos por meio dessa forma de pagamento não podem ser altos a ponto de causar forte impacto orçamentário para os Entes Públicos.
Nesse ponto, é necessário considerar que o impacto orçamentário não pode ser visto como unitário para todo e qualquer ente federado. Daí a necessidade de se considerar a capacidade econômica de cada ente, de modo a garantir que a lógica do sistema de finanças públicas não seja desvirtuada, mantendo-se o pagamento por meio de precatório como a regra geral e evitando-se que, ante as dificuldades operacionais, o Poder Judiciário seja obrigado a fazer suscessivos sequestros.
A terceira premissa básica advém da necessidade de se verificar a situação real de pagamentos de débitos judiciais pelo ente federado, analisando-se a sua capacidade orçamentária, suas despesas, o volume de débitos judiciais e a forma de suportar o valor total de gastos com RPVs no prazo de 60 (sessenta) dias sem grave comprometimento dos princípios orçamentários.
Aqui importa destacar que a real situação de um Ente da Federação deve ser analisada com base em dados concretos que demonstrem as suas receitas e as suas despesas. Não se trata de um ranking entre Estados da Federação elaborado com base na receita de cada um no quadro nacional. Isso porque é possível que um Estado tenha uma arrecadação elevada e débitos judiciais comprometedores e outro Estado tenha uma arrecadação baixa e débitos judiciais irrisórios. Nesse caso, por exemplo, apesar da arrecadação elevada do primeiro Estado, a capacidade econômica para pagamento de precatórios e RPVs do segundo é melhor que a do primeiro.
Por fim, a quarta premissa básica diz respeito à realidade catarinense. O diploma legal impugnado na ação direta foi editado em razão de o Estado de Santa Catarina enfrentar graves problemas financeiros e, por isso, sua realidade exigir a adequação de seu parâmetro da capacidade econômica para pagamento de débitos judiciais.
Quando da edição da lei, as RPVs atingiam um valor totalmente alarmante e frequentemente equivalente ao que se despendia com precatórios, impediam uma segura gestão orçamentária e criavam um caos operacional, tanto para o Poder Executivo (com dificuldade para realizar pagamentos tempestivos) como para o Poder Judiciário (demandado para freqüentes sequestros). Ainda, verifica-se o pagamento, por meio da via excepcional (RPV), de valores equivalentes ao destinado ao meio ordinário (precatórios), fazendo com que credores que aguardavam há muito mais tempo fossem preteridos em relação aos mais novos.
Ora, se a premissa constitucional é de que a Fazenda Pública não pode ser surpreendida com consideráveis débitos judiciais sem prévia programação orçamentária, não há como se admitir que tanto a forma excepcional de pagamento (RPV) quanto a forma ordinária (precatórios) tenham valores semelhantes. O gasto com o segundo deve ser consideravelmente inferior ao primeiro.
Em outros casos semelhantes o Supremo Tribunal Federal considerou relevante a capacidade econômica do Ente Federativo para a fixação do valor máximo para pagamento dos débitos fazendários na modalidade de requisição de pequeno valor[ii].
É relevante salientar que eventual julgamento de procedência da ação direta ensejaria um décit orçamentário de aproximadamente R$ 804 milhões. Na ótica do fluxo financeiro, estimou-se que esse déficit seria acrescido de R$ 420 milhões. O déficit financeiro total para o ano de 2020, segundo o estudo, ultrapassaria o valor de R$ 1,5 bilhão.
Além disso, se fosse considerado os atuais precatórios com valor abaixo de 40 salários mínimos que aguardam pagamento – e, portanto, seriam pagos, agora, por meio de RPVs no exercício em curso (2020) – o desembolso financeiro com sentenças judiciais, que hoje aproxima-se de R$ 409 milhões, correspondendo a aproximadamente 1,65% da Receita Corrente Líquida do Estado de Santa Catarina, passaria a ser de R$ 564 milhões, comprometendo 2,27% da Receita Corrente Líquida do Estado de Santa Catarina.
Considerando, por fim, a pandemia do Coronavírus, não se tem, ainda, números factíveis sobre os reais reflexos e efeitos nas finanças públicas e na capacidade de pagamento do Estado de Santa Catarina. Contudo, na atual quadra histórica, se pode afirmar, perempetoriamente, que as dificuldades orçamentárias e financeiras seriam mais extremas, ao se retirar, sem planejamento, valores dos cofres estatais que já estão colapsados.
Portanto, há que se concluir que os reflexos da alteração abrupta do valor de enquadramento do débito judicial em RPV ou precatório acarretaria um agravamento do desequilíbrio orçamentário e financeiro do Estado. Essa circunstância comprometeria os gastos que, atualmente, são destinados a pagamento de serviços da dívida pública, cumprimento de obrigações constitucionais da saúde e educação, dentre outros como os necessários para alavancar a economia em razão dos nefastos efeitos da pandemia do Coronavírus.
Esses fatos podem parecer fundamentos consequencialistas, contudo, o que definiu o STF foi baseado no sistema jurídico-constitucional, no sentido de que a “fixação do teto das requisições de pequeno valor constitui juízo político com amplo espectro de conformação dos entes federados, de forma que apenas a previsão de valor manifestamente desproporcional, considerada a respectiva capacidade econômica, pode ser invalidada em sede de controle concentrado de constitucionalidade”, consoante consta no acórdao da ADI 5100.
Decidiu-se, também, que a alteração da lei não poderia alcançar títulos executivos judiciais já transitados em julgado à época da alteração legislativa.
Com efeito, conforme esclarecido no acórdao, muito embora a “matéria relativa ao pagamento de precatórios e de obrigações de pequeno valor possui[r] natureza processual, sendo, portanto, de aplicação imediata para alcançar as ações em curso”, “as alterações normativas, sejam elas processuais ou materiais, devem resguardar as situações jurídicas já consolidadas no tempo, sob pena de ofensa ao postulado da segurança jurídica”.
Daí que se reconheceu uma inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.
Essa questão, inclusive, é tema de repercussão geral no STF, de n. 792[iii], sendo debatida no RE 729.107 e tendo como relator o Min. Marco Aurélio. O julgamento irá se finalizar na data em que se escreve esse texto, 05.06.2020. Já há, conforme consta no plenário virtual 6 votos no sentido de se assentar a seguinte tese: “Lei disciplinadora da submissão de crédito ao sistema de execução via precatório possui natureza material e processual, sendo inaplicável a situação jurídica constituída em data que a anteceda”.
O Min. Alexandre de Moraes, conquanto tenha acompanhado o relator, apresentou a seguinte tese: “A lei que reduz o teto provisoriamente estabelecido pelo art. 87, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não pode retroagir para incidir sobre as execuções em curso”.
Percebe-se, portanto, uma consolidação do entendimento do STF a respeito da competência dos Estados para fixarem os valores de RPV e a aplicabillidade da lei no tempo, respeitanto-se, além do sistema constitucional de pagamentos de débitos judiciais públicos, por precatório ou RPV, igualmente a segurança jurídica de credores que já tinham titulos executivos consolidados quando da definição legislativa de novos valores.
Notas e Referências
[i] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343079326&ext=.pdf . Acesso em 5 jun. 2020.
[ii] “LEI 1.788/2007 DO ESTADO DE RONDÔNIA. ART. 1º. REDUÇÃO DO VALOR PREVISTO NO ART. 87 DO ADCT PARA O PAGAMENTO DOS DÉBITOS DA FAZENDA PÚBLICA POR MEIO DE REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR. CONSTITUCIONALIDADE. EXERCÍCIO DO PODER DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR RECONHECIDO NO JULGAMENTO DA ADI 2.868/PI. 1. Alteração no parâmetro constitucional que não implique mudança substancial do conteúdo da norma não prejudica o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade. 2. O artigo 87 do ADCT foi instituído como norma transitória pela Emenda Constitucional 37/2002, com o escopo de fixar teto provisório aos estados e municípios no que diz respeito ao pagamento de seus débitos por meio de requisição de pequeno valor. 3. No julgamento da ADI 2868/PI, esta Corte pacificou que tal dispositivo não delimita um piso, irredutível, para o pagamento dos débitos dos Estados e dos Municípios por meio de requisição de pequeno valor. Cabe a cada ente federado fixar o valor máximo para essa especial modalidade de pagamento dos débitos da Fazenda Pública em consonância com a sua capacidade financeira, como se infere do § 5º do artigo 100 da Constituição (redação anterior à EC 62/2009). 4. Inexistência de elementos concretos que demonstrem a discrepância entre o valor estipulado na lei questionada (dez salários-mínimos) e a capacidade financeira do Estado de Rondônia. 5. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida e julgada improcedente. (ADI 4332, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 07/02/2018, DJe 08/05/2018)” (grifos acrescidos). “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 5.250/2002 DO ESTADO DO PIAUÍ. PRECATÓRIOS. OBRIGAÇÕES DE PEQUENO VALOR. CF, ART. 100, § 3º. ADCT, ART. 87. Possibilidade de fixação, pelos estados-membros, de valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT, com a redação dada pela Emenda Constitucional 37/2002. Ação direta julgada improcedente. (ADI 2868, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2004, DJ 12-11-2004 PP-00006 EMENT VOL-02172-01 PP-00152 LEXSTF v. 26, n. 312, 2005, p. 92-105)”.
[iii] “Possibilidade de aplicação da Lei distrital 3.624/2005, que reduziu para 10 salários mínimos o teto para expedição de requisição de pequeno valor, às execuções em curso”.
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