Há alguns dias venho festejando comigo mesmo o encontro, nos escombros do Museu Nacional, dentre outros itens importantes, do crânio de Luzia. Acompanho a garimpagem dos restos da desconsideração geral pela memória.
Essa me foi uma das melhores notícias desta quadra vencida por uma mentalidade que não acredita na existência da mulher que se estima tenha vivido há mais de 11 mil anos na região do sítio arqueológico da Lapa Vermelha (MG).
Por que não acredita? Por coerência. Boa parte dos que estão assanhados com a vitória de Bolsonaro crê que o mundo tem, apenas, 6 mil anos (Bíblia, Gêneses, 5 e 11), e não os 4,5 bilhões de anos estimados pela ciência.
Que o povo em geral creia nisso, explica-se pela incidência do catolicismo na Tradição Ibérica. Segundo levantamentos estatísticos, somos 90% de cristãos. A mentalidade de fundo de Espanha e Portugal fez a mentalidade do Brasil.
A questão é que Bolsonaro também acredita e – mais grave – ele quer que as escolas ensinem isso: criacionismo. A sua mentalidade não é exatamente conservadora, mas uma concepção religiosa da vida e do mundo: “Deus acima de tudo”.
Religiosos estão seguros – religiões sempre oferecem segurança – da precedência da sua crença sobre o pensamento científico. Eles creem de verdade que a ciência porta o mal nas entranhas das suas proposituras ou demonstrações.
O presidente eleito, portanto, deve imaginar serem dos bons deveres do governo a colocação de sua divindade e a de seus mandamentos acima das coisas todas, subordinando a eles os demais procedimentos governativos.
Ainda me reverbera desconfortável a sua proclamação de inspiração teocrática: “O Brasil não é um estado laico. É cristão. Quem não gostar que mude de país, porque a minoria deve ser curvar ante a maioria”.
Aliás, tal afirmação não mereceu qualquer reação política de republicanos laicos, que vêm minguando do Congresso, não obstante jamais se terem exposto, adotando um silêncio covarde diante de assaltos religiosos ao laicismo.
Resta que a bancada da Bíblia cresceu. No último pleito o PSL alcançou a segunda maior bancada da Câmara, com 52 parlamentares. A Frente Parlamentar Evangélica (FPE), agora, conta com 84 parlamentares filiados a 21 partidos.
O crescimento das bancadas conservadoras autoriza-lhes o devido esforço de cumprimento do prometido em campanha. Elas estão legitimadas para a propositura de projetos que legalizem religião como norma de Estado.
A resistência, pois, será ideológica. O próximo governo, que sabe muito bem o que quer, tem todas as condições de estabelecer a pauta. Sua intenção é a “recuperação” de valores. No atinente à Presidência, alguns exemplos.
Enem: “Para o ano que vem, pode ter certeza [...] não vai (sic) ter questões dessa forma. Nós vamos tomar conhecimento da prova antes”. Há quem releve a “ameaça”, dado o sigilo da prova, Miguel Arroyo (UFMG), todavia, alerta:
“Bolsonaro tem como interferir no conteúdo sem olhar a prova antes, porque ele nomeia o ministro, o ministro coloca o presidente do Inep e o presidente do Inep tem o direito de mudar toda a equipe” (Itamar Melo, DC, 13nov18).
Itamaraty: “Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão.
A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem. [...] Significa abrir-se para a presença de Deus na política” (Ernesto Henrique Araújo, ministro escolhido).
Escola sem Partido, após estupidezes da esquerda, “O caldo borbulhante de sandices fez seu caminho até os manuais escolares, os vestibulares, o Enem. No fim, originou uma reação destrutiva que pretende a escola em anexo do templo.
Sua verdadeira finalidade é aproveitar as vulnerabilidades para subordinar a escola a uma política ideológica e de costumes recrutada entre autoridades locais, políticos, promotores e pastores (Demétrio Magnoli, FSP, 17nov18).
Discurso de vitória: recém-eleito presidente, Bolsonaro, emergiu diante das câmaras de TV para oferecer ao povo seu pronunciamento. Mas... “passou a palavra a Magno Malta, pastor evangélico e praticante da chamada ‘velha política’.
Malta [...] abriu a era Bolsonaro com dois minutos e meio de reza, na qual misturou, com fervor, Deus e política. ‘A Tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus. E o Senhor ungiu Jair Bolsonaro’” (Itamar Melo, DC, 01nov18).
O evangelho sobe a rampa: no ato público seguinte, Bolsonaro optou por um culto evangélico comandado pelo pastor e político Silas Malafaia. Na ocasião, referiu-se a si próprio como ‘escolhido’ do Senhor” (Itamar Melo, DC, 12nov16).
Pobre Luzia: queimada, sobrevivente, mulher. Bolsonaro e o deus dele desgostam de política de gênero. Luzia nasceu antes de todas as religiões. Nada sabe de Bolsonaro nem de Bíblia. Mas os preceitos bíblicos a dizem culpada.
Aliás, para Luzia, a Bíblia é um livro perigoso, recheado de más recomendações sobre a mulher. Pespega-lhe culpa traiçoeira na origem e prescreve-lhe destino humilhante. Luzia, precisamos falar sobre teus riscos nesta República, mulher.
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