Conforme o art. 409 do CPP, depois de a defesa manifestar-se, o juiz ouvirá a acusação: Apresentada a defesa, o juiz ouvirá o Ministério Público ou o querelante sobre preliminares e documentos, em 5 (cinco) dias.
Este texto foi originalmente apresentado no livro que rabisquei sobre a reforma pontual do procedimento do Tribunal do Júri em 2008[1]. Fiz questão de apontar tudo o que me parecia avanço ou retrocesso em não resta dúvida que a possibilidade de a acusação falar depois da defesa, constituiu um sério retrocesso trazido pela alteração legislativa.
Inegável a semelhança do procedimento com o modelo adotado no Processo Civil, onde o autor ingressa com a demanda e o réu é citado para responder, abrindo-se, logo a seguir, prazo para réplica. A questão é saber se tal modelo é compatível com o processo penal. Tudo indica que não.
Aqui, deve-se ressaltar, primeiramente, que deverá ser ouvido o Ministério Público, apenas quanto à arguição de alguma preliminar ou juntada de algum documento. De qualquer modo, essa sequência de atos faz com que a acusação manifeste-se depois da defesa, pois veja que, apresentada a resposta, será novamente chamada a acusação para falar sobre a argumentação defensiva e sobre os documentos juntados, sendo que, logo depois disso, os autos retornam ao juiz para deliberação a respeito da prova requerida e dos fatos alegados (art. 410, do CPP).
No dia 20 de fevereiro de 2008, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento unânime, concedeu ordem de Habeas Corpus para anular decisão proferida em recurso do Ministério Público contra um ex-diretor do Banco Mercantil de São Paulo, pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).[2] O fundamento da anulação do recurso da acusação foi o fato de o Ministério Público ter realizado sua sustentação oral depois daquela proferida pela defesa.
Segundo constou no voto do Relator, Ministro Cezar Peluso, essa situação desrespeitou o devido processo legal por representar violação ao direito constitucional à ampla defesa e, principalmente, ao contraditório. Para o relator: Permitir que o MP fale depois da defesa não dá à defesa o direito do contraditório, o direito de reagir à acusação. Ainda: A ordem das sustentações é imperativa e fundamental do devido processo legal. Em suas manifestações, os ministros Eros Grau e Carlos Ayres Britto lembraram que o direito ao contraditório pressupõe a existência de um ponto de referência. Só é possível falar em defesa em função de um ataque, resumiu o ministro Ayres Britto.
A leitura do inteiro teor do voto é fundamental, pois são inúmeros os fundamentos (legais, lógicos, éticos) para a determinação da ordem de manifestação das partes nos autos.
Para a rápida argumentação aqui exposta, resta fazer um apanhado dos trechos mais importantes da decisão.
O Relator, Ministro Cezar Peluso, manifestou que: As partes têm direito a estrita observância do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido processo legal, a cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República). [...] A ordem estrita de ações na particular estrutura dialética do processo penal – primeiro acusação, depois defesa – é imperativa e independe do teor do parecer do órgão acusatório, que também vela pela correta aplicação da lei.
No mesmo julgamento, referiu a Ministra Carmen Silva: Ministro Cesar Peluso, o que me chamou a atenção, neste caso, é que não há a possibilidade de contradita da defesa, sendo exatamente o que a Constituição assegura. O contraditório é isso: poder contraditar o que lhe é imputado. Se ela fala depois, não há como contraditá-la e, por isso, está esvaziado e afrontado o contraditório.
Nessa mesma linha de entendimento constou no voto do Ministro Eros Grau: Mencionaria, também, o fato de que o contraditório supõe um ponto de partida, um ponto de referência. Seria verdadeiramente impossível alguém se defender de uma acusação desconhecida. De modo que, para mim, aqui, não se trata nem mesmo de aplicar alguma regra de direito, mas a própria lógica. (HC 87926)
Ficou evidenciado no novo procedimento o objetivo de abrir espaço para a defesa falar sobre a denúncia recebida, porém, em uma lógica diferente daquela historicamente adotada nos procedimentos de natureza penal, já que, no âmbito criminal, a defesa sempre fala por último. É da essência do debate em torno da imputação de crime, que o acusador fale em primeiro lugar para que o réu defenda-se de uma acusação posta. Quando o acusador fala novamente, depois da defesa, quebra a paridade, violando a ampla defesa e o contraditório.
Ainda no mesmo HC 87926, constou no voto do Ministro Gilmar Mendes a questão da “igualdade de armas”: Há muito vem a doutrina – tenho destacado – enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – esse já era o pensamento de Pontes – é uma pretensão à tutela jurídica. Observe-se que não se cuida, sequer, de uma inovação doutrinária ou jurisprudencial. [...] Quando essa questão se coloca aqui - e isso já o demonstrou cabalmente o eminente Relator e os votos que o seguiram -, nós temos exatamente a manifestação do direito ao contraditório e a ampla defesa nessa última versão, direito de ver os seus argumentos considerados de forma adequada, na ordem adequada, tendo em vista, inclusive, a igualdade de armas que supõe o contraditório e a ampla defesa. (HC 87926)
Diante desse quadro, deve ser destacada a questão da constitucionalidade do art. 409 do CPP (art. 5º, inc. LV, da CF-88) ou da nulidade da manifestação do MP fora das preliminares ou dos documentos juntados.
Penso que, depois da resposta, o juiz poderá dar seguimento ao procedimento, sem atender ao preceito inconstitucional ou intimar a defesa para tréplica. As defesas devem estar atentas para fazer constar este aspecto já na resposta, com requerimento expresso no sentido de que não seja permitido à acusação “replicar” ou que seja permitida nova manifestação ao réu, sob pena de nulidade.
Com a previsão de réplica, salvo raras exceções, muitas vezes a defesa deixa de fazer uma detida análise sobre o mérito e tampouco faz a juntada de documentos nessa fase, especialmente por já ter sido recebida a denúncia e porque os autos serão imediatamente entregues ao acusador para manifestação.
O argumento de que a outra parte tem o direito de se manifestar sobre os documentos juntados, não abre para uma ampliação indevida do debate em torno das alegações da defesa, permitindo que a acusação tenha prazo para livre manifestação no momento exatamente anterior à ida dos autos para decisão sobre as provas.
Na sistemática do direito processual penal, não é lícito à acusação falar depois da defesa, pois a violação dessa ordem importa em quebra dos princípios constitucionais norteadores do devido processo legal, conforme referido pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
O melhor seria que a defesa apresentasse a resposta e o juiz de direito, de plano, designasse data para a abertura da instrução, com a designação da audiência. Por outro lado, atendendo aos ditames constitucionais, convém ao Ministério Público que deixe de se manifestar depois da defesa, fazendo suas considerações nos debates, quando toda a prova estiver produzida, permitindo que a defesa fale por último.
Um ponto ainda digno de nota é o fato de não haver previsão, no momento da réplica, de oportunidade de manifestação por parte da Assistência da Acusação.
Finalmente, não resta dúvida que a ampla defesa e o contraditório ficariam mais bem ancorados em um procedimento no qual o acusado tivesse a possibilidade de refutar a denúncia para evitar o seu recebimento ou forçar a sua rejeição e não como estamos, com a abertura de prazo para a acusação replicar uma resposta apresentada em relação à acusação já recebida.
Com Gandhi, vale repetir que: Quando alguém compreende que é contrário à sua dignidade de homem obedecer a leis injustas, nenhuma tirania pode escravizá-lo.
Mais não digo.
Notas e Referências:
[1] MARQUES. Jader da Silveira. TRIBUNAL DO JÚRI: Considerações Críticas à Lei nº 11.689/08 - De acordo com as Leis nº 11.690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[2] EMENTA: AÇÃO PENAL. Recurso. Apelação exclusiva do Ministério Público. Sustentações orais. Inversão na ordem. Inadmissibilidade. Sustentação oral da defesa após a do representante do Ministério Público. Provimento ao recurso. Condenação do réu. Ofensa às regras do contraditório e da ampla defesa, elementares do devido processo legal. Nulidade reconhecida. HC concedido. Precedente. Inteligência dos arts. 5º, LIV e LV, da CF, 610, § único, do CPP, e 143, § 2º, do RI do TRF da 3ª Região. No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público, sobretudo quando seja recorrente único, deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento. (STF - HC 87926/SP - Rel. Min. CEZAR PELUSO - Julgamento: 20/02/2008 - Órgão Julgador: Tribunal Pleno - DJe-074 DIVULG 24-04-2008 PUBLIC 25-04-2008 EMENT VOL-02316-04 PP-00665).
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