Por José Luis Bolzan de Morais - 12/06/2015
Se avessi ancora qualche anno di vita, che non avrò, sarei tentato di scrivere “L’Età dei doveri”. (Norberto Bobbio: N. Bobbio e M. Viroli, Dialogo intorno alla Repubblica, Roma-Bari: Laterza. 2001. p. 40)
Não só literal, mas faticamente, o Estado, em particular o Poder Judiciário gaúcho, parou para ver o Brasil passar. E não foi, como na música do Chico Buarque, para ver a banda passar. Mas, mais especificamente, para ver a “seleção canarinho” passar.
Ontem, 10/6/15, em razão do “jogo” da seleção (Brasil e Honduras) – tal qual na Copa do Mundo/FIFA 2014 -, o horário de expediente do Tribunal de Justiça e do Foro Central de Porto Alegre foi alterado como consta do sítio oficial do TJRS [1].
Com isso, a “prestação jurisdicional”, serviço próprio e característico desta função estatal, fica submetida às “necessidades” ou “interesses” dos servidores – em sentido amplo – da jurisdição. Pelo que se lê na notícia, a determinação “se deve às alterações no trânsito nas imediações dos prédios”, que ocorrerão a partir das 17h e cuja partida terá início às 22h, sendo que o dito “Caminho do Gol” – afinal foi um único que aconteceu na partida...- se inicia na Av. Ipiranga, distante cerca de dois quarteirões após a sede do TJRS, na Av. Borges de Medeiros, sentindo centro-bairro.
Hoje, após a realização da partida de futebol, sabe-se que sequer os lugares disponíveis no Estádio Beira-Rio, do Internacional, foram completamente ocupados. Ao que parece 50% da capacidade do mesmo foi atingida.
Fica a dúvida: qual o fator relevante, a embasar o ato administrativo, que legitima a redução do expediente da função jurisdicional, nestes locais. Justo aquela função do Estado que se reconhece como guardiã maior da Constituição, como instituição de garantia (Ferrajoli), cujo excesso de demanda é constantemente referido, para os mais diversos fins.
Claro, sempre haverá uma justificativa. Como para tudo... Claro, este exemplo é apenas um exemplo...
Mas, como exemplo, pode ser tomado emprestado para pensarmos um pouco e pormos em pauta nosso tema central: a ilimitação – sconfinato - do Estado. Afinal, o Poder Judiciário, mesmo com sua autonomia – à semelhança de outras instituições jurídicas do Estado (Ministério Público e, hoje, a Defensoria Pública, em especial), sem falarmos de outros órgãos que também a incorporam (eg Tribunal de Contas) – faz parte da estrutura institucional do Estado, este nosso velho (des)conhecido.
Assim, retomamos o tema “Estado”, agora para sugerir alguns elementos indicativos da importância de compreendê-lo adequadamente, em especial diante do contexto e das circunstâncias que afetam as bases tradicionais da Teoria do Estado ensinada nas Faculdades de Direito.
Tais circunstâncias têm produzido transformações profundas na experiência estatal da modernidade no afã de construção de um projeto civilizatório que vem demarcado por características próprias, bem como tem experimentado avanços e retrocessos, sucessos e fracassos ao longo do que convencionamos nomear como “modernidade”. E, esta referência (a modernidade) precisa estar sempre presente quando falamos de Estado, pois não há como entendê-lo fora dela, muito embora seus traços já venham se constituindo anteriormente, como têm indicado os trabalhos de Saskia Sasen [2].
Esta instituição jurídico-política (o Estado), desde logo, tem como uma de suas referências a história. É uma instituição "histórica". Tem origem, um desenrolar e...um fim(?), sem que isso possa, por óbvio, ser entendido maniqueisticamente ou que se esteja, aqui, adotando uma perspectiva da história como um desenrolar “evolutivo” e sequencial de fatos e acontecimentos. O que se quer demarcar com isso é o caráter “não natural” desta instituição, o seu sentido instrumental e, correlatamente, contingencial.
Há, também, que se considerar que, de outro lado, esta é, também, uma instituição “geográfica”, seja por suas origens, o que nos leva a ter presente seu fator colonial(ista), seja por sua pretensão à universalidade, seja, por fim, à sua demarcação geográfica, como territorialidade, o que também serve como delimitador da potência estatal – soberania -, tanto quanto à sua superioridade interna, quanto na sua igualdade externa, cujas fronteiras estabeleciam uma “impermeabilização” entre o mundo interno (nacional) e o externo/estrangeiro (internacional) e construíam uma identificação forjada a partir de elementos artificiais, conferindo “privilégios” àqueles todos que eram destinatários de suas previsões – dito, povo – excluindo os demais – estrangeiros -, bem como organizado especializadamente com funções estritamente definidas e, ainda, constrangido por um conjunto de garantias que foram se constituindo nas “eras” sucessivas de direitos. Por tudo isso, uma instituição “limitada”.
Ou seja, havemos de reconhecer que o Estado não esteve sempre no “entre nós”, sequer está presente em todos os “recantos” do planeta Terra, apesar do “sucesso” e da força atrativa que esta instituição carrega consigo [3].
Mas, aqui e agora, este é o Estado que, ainda, temos, cujo fundamento de origem está na unidade do poder, mesmo que, no seu processo histórico o exercício deste foi se dando, constituído pela tradição liberal, especializadamente, sem, com isso, abandonar-se à sua “auto” multiplicação, constituindo-se tantos estados quantos sejam as instituições “autônomas” presentes no seu interior.
Hoje, nada mais é assim. O Estado se vê confrontado em seu poder, permeabilizado em suas fronteiras, diluído em seus membros. E, por isso mesmo, cada dia é mais necessário buscar compreender estas “circunstâncias” novas e inéditas a fim de podermos estar aptos a lidar com este “novo”, até mesmo confrontá-lo em nome das conquistas modernas ainda incompletas ou irrealizadas em muitos lugares, forjando respostas compatíveis.
Dito de outra forma, e tomando emprestadas as sugestões de Giacomo Marramao, é preciso termos em conta que estamos passando de uma “modernidade nação” para uma “modernidade mundo”, e que isso não se experimenta sem rupturas e incertezas [4].
Aqui, não é desinteressante relembrar que o pensamento filosófico-político moderno foi o ambiente privilegiado no qual se desenvolveram as compreensões fundantes para a definição, fundamentação e legitimação do Estado como instituição peculiar à modernidade e, a partir disso, para a construção de uma ordem jurídico-política suportada em tal ideia, com uma estrutura normativa específica como resultado da atuação deste poder soberano, sendo esta, ela mesma, uma concepção resultante da reflexão filosófica própria da cultura iluminista.
Nesta tradição poderíamos remontar aos diversos autores que acabaram por construir as bases para o pensamento político moderno, marcando uma “ruptura” – sempre tendo presente as indicações de Sakia Sassen – fundamental com a tradição até então vivida. Com eles – podendo-se mencionar os tradicionais Nicoló Machiavelli, Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, dentre tantos outros – erigiu-se um pensamento que, para além de forjar uma nova compreensão explicativa para o fenômeno estatal, traçou os fundamentos de legitimação de e para o exercício do poder político, bem como forjou toda uma nova compreensão para o direito, daí decorrente.
Além disto, é no âmbito desta Filosofia “política” que se consagra a ideia de que este Estado constitui-se como lócus monopolístico de exercício da força e da violência. É nele e dele que nasce e parte o Direito, como legislação – atividade legislativa –, assim como aplicação – atividades executiva e jurisdicional, em suas especificidades – e, até mesmo fórmula organizativa, consolidada na obra de Montesquieu.
Durante todo este tempo temos vivido sob a égide desta fórmula. Um Estado que, legitimado no consenso originário – hoje expresso por meio de Constituições -, detém com exclusividade o poder de criar e de dizer o Direito, confundindo-se, muitas vezes, este com aquele.
De um caráter absolutista inaugural evoluiu-se para a fórmula substantiva do Estado de Direito – no contexto da tradição liberal –, mas, de qualquer sorte, manteve-se ainda o formato original.
Já, em um contexto onde as palavras de ordem são globalização [5] /mundialização, neoliberalismo (embora mais pareça “neocapitalismo”[6]), governança[7], crise [8] entre outras tão em voga, a questão que se coloca diz com o papel e o próprio objeto da Filosofia “política”, o qual deixa de ser o Estado, como ente privilegiado, e passa a ser a própria estupefação diante do exaurimento de sua potência tradicional e a ausência de respostas suficientes às dúvidas recorrentes, talvez, com isso, mantendo vivas as preocupações em torno do exercício do poder, em especial, o político, de sua legitimação, de sua forma, de seu ambiente etc.
Um lugar onde se perde a referência ao uno – o Estado –, mas revigora-se o debate acerca das próprias circunstâncias da política, como também de sua inexorabilidade para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
A dramatização da vida cotidiana passa a ser observada não apenas desde um lugar hegemônico – o estatal – mas, ganha novas instâncias e foros, exigindo o domínio de novas formas de saber e de ação prática, de novos arranjos.
De qualquer modo, enquanto transitamos na crise, é preciso que tenhamos presente que, desde as origens remotas da estatalidade moderna, na Baixa Idade Média, a função judiciária se erigiu como essencial à toda organização política.
E, por isso, como sugere Fabio Konder Comparato[9], não se pode deixar de indagar: – A quem há de ser atribuída no Estado a função jurisdicional? Em razão do que, devem os titulares desse poder exercê-lo? É admissível que os órgãos judiciários atuem sem controles?
Para buscar tais respostas, seria preciso voltar ao início deste texto. Pode o judiciário – ou qualquer outra instituição pública – deixar de prestar o seu serviço – público – à população, em nome do bem-estar ou da comodidade de seus membros? Qual a justificativa para isso? Estão cumpridos os requisitos do ato administrativo, enquanto (de)limitadores da atuação estatal?
Parece que não. Ao contrário, temos um exemplo da própria perda de limites. Não aqueles geográficos, mas de outra ordem. Um Estado sconfinato institucionalmente. Onde os limites do Estado de Direito não são capazes, ou são insuficientes, para impor-lhe parâmetros.
Um Estado que não se reconhece sujeito aos limites da República e que, assim, em pleno Estado Democrático de Direito, prometido pelo o constitucionalismo redemocratizador, age como nas origens do Brasil colônia.
Isso porque os limites do Estado não são apenas aqueles de sua geografia – territorialidade -, mas também aqueles de sua atuação. Neste caso como constrangimentos que devem ser observados para que se possa construir uma República verdadeira, sem que demos razão a Frei Vicento do Salvador que chamava a atenção: Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem particular...[10]
E, assim, o Brasil vai passando a uma nova geografia sem ter conseguido sequer constituir-se modernamente nos limites da institucionalidade republicana.
Notas e Referências:
[1] Alterado horário de expediente nesta quarta-feira nos prédios do TJ e Foro Central
Nesta quarta-feira (10/6), o expediente no Tribunal de Justiça e no Foro Central (prédios I e II), na Capital, será das 9h às 16h. A determinação da Presidência do TJRS se deve às alterações no trânsito nas imediações dos prédios, região conhecida como "Caminho do Gol", devido à realização do jogo de futebol amistoso entre as seleções de Brasil e Honduras, no estádio Beira-Rio. De acordo com a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), as alterações no trânsito ocorrerão a partir das 17h.
(...)
No prédio do Tribunal de Justiça (Av. Borges de Medeiros, 1565), ficam mantidas as sessões de Câmaras agendada para amanhã (20ª Câmara Cível, 21ª Câmara Cível, 1ª Câmara Criminal, 5ª Câmara Criminal, 11ª Câmara Cível), a partir das 14h. O horário de encerramento das mesmas ficará a critério dos Presidentes das respectivas Câmaras.
Na impossibilidade de peticionamento eletrônico, eventual necessidade de prorrogação de prazos ficará a critério do respectivo relator do processo.
(...)
Portaria n° 13/2015-DF, assinada pelo Juiz Diretor do Foro, Nilton Tavares da Silva, determina que a realização das audiências já designadas, em havendo condições materiais de realização, ficará a critério de cada unidade jurisdicional.
Os prazos processuais ficarão prorrogados, na forma do art. 184, 1°, inciso II, do Código de Processo Civil. Medidas urgentes serão processadas e resolvidas no serviço de plantão do Foro Central, no prédio I. Os prédios situam-se na rua Márcio Veras Vidor, nº 10 (I), e Manoelito de Ornelas 50 (II).
Trânsito
De acordo com informações divulgadas pela EPTC, o eixo das Avenidas Borges de Medeiros e Padre Cacique, entre a Avenida Ipiranga e o estádio Beira-Rio, ficará bloqueado ao trânsito, somente na pista Centro-Bairro (junto ao Parque Marinha do Brasil), das 17h às 22h30min, para o Caminho do Gol.
A Avenida Edvaldo Pereira Paiva será a principal alternativa para ir ao estádio. A partir das 17h, a avenida terá sentido único, Centro-Bairro, em direção ao Beira-Rio. Após o jogo, o fluxo da avenida será alterado para o sentido oposto, em direção ao Centro. A Avenida Padre Cacique ficará liberada ao tráfego no sentido bairro-Centro. Quem vai à zona Sul, e quer evitar a região do estádio, terá como alternativas as avenidas Ipiranga, Azenha, Carlos Barbosa, Moab Caldas ou a Terceira Perimetral.
EXPEDIENTE. Texto: Janine Souza Assessora-Coordenadora de Imprensa: Adriana Arend. imprensa@tj.rs.gov.br
Publicação em 09/06/2015 17:21
[2] Ver, exemplificativamente: SASSEN, Saskia. Territory, Authority, Rights: From Medieval to Global Assemblages. Princeton University Press, 2006
[3] Ver: CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução: Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
[4] Ver: MARRAMAO, Giiacomo. Dopo babele. Per un cosmopolitismo dela differenza. Eikasia. Revista de Filosofia. Año IV. Nº 25 (mayo 2009). http://www.revistadeFilosofia.org (acesso em 20/4/2015)
[5] Ver: MARRAMAO, Giacomo. Il Mondo e l’occidente oggi. Il problema di una sfera pubblica globale. www.fondazionebasso.it/_.../marramao.doc. Acesso em 21.01.2015
[6] Ver: AVELÃS NUNES, Antonio Jose. O Estado capitalista e suas máscaras. Lisboa: Avante. 2013.
[7] Ver: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Estado Garantidor. Claros-Escuros de um conceito. IN: AVELÃS NUNES, António José e COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.). O Direito do Futuro e o Futuro do Direito. Coimbra: Almedina. 2008. Pp. 571-576
[8] Ver: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. Col. Estado e Constituição. Nº 1. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2011
[9] Ver: COMPARATO, Fábio Konder. O poder judiciário no Brasil. Cadernos IHU. Ano 13. Nº 222. São Leopoldo: 2015
[10] Referido por Fábio K. Comparato, op. cit. p. 4
José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.
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