“O aspecto exterior pode ser o menos importante: o mundo ainda é enganado por ornamentos. Na Lei, qual causa ruim e corrupta, em que o tempero de uma voz graciosa não obscureça a prova do mal? Na Religião, qual o erro danado que algum sobrolho sóbrio não abençoe e aprove com uma citação, escondendo a rudeza com belos ornatos? Não há vício mais simples que não assuma alguma marca de virtude na sua forma exterior. Quando cobardes, de coração tão falso como escadas de areias, não usam no queixo as barbas de Hércules e do feroz Marte? Se vistos por dentro, tem o fígado de leite, e apenas assumem o excremento do valor para se tornarem destemidos!”[1] Assim indagava Bassânio quando, diante de um enigma, precisava escolher entre as caixas de chumbo, ouro e prata aquela que abrigava a “chave” para o amor de Pórcia. Teria sido o Estado de Direito apenas uma aparência? A Constituição, o Império da Lei, a divisão de poderes e os direitos fundamentais, destacados por Marcelo Labanca, seriam apenas caixas enigmáticas que, se “vistas por dentro”, revelariam sua causa “ruim e corrupta”? O enigma da escolha, que busca no feio, o belo; na simplicidade, a riqueza; sugerem o paradoxo que reivindica na insegurança da política a segurança do direito, conforme apontou Roberto Miccu? Diante do enigma, devemos enfrentar os deficits do Estado de Direito a partir do pessimismo realista de Alfredo Copetti Neto? Ou, nas sendas cosmopolitas de Jânia Saldanha, apostar nas reservas de um racionalismo otimista? “To be or not to be, that is the question”.
O Estado de Direito é um enigma que comporta muitas apostas. Entre a lei deliberada pela política democrática e os direitos fundamentais de uma Constituição contramajoritária, a melhor escolha vem passando pelas mãos de diferentes Poderes. O Legislador e a aposta na segurança do chumbo; o Executivo e a aposta na capacidade refletora da prata. E, ultimamente, o Judiciário e a aposta na riqueza das vestes bordadas a ouro. Marcelo Labanca nos fala de uma “democracia da toga” e questiona as possibilidades hermenêuticas do Poder Judiciário diante da Constituição e de seus direitos fundamentais. Revela como a aposta na qualidade dourada das togas corrói os quatros pilares do Estado de Direito: desvirtua a Constituição quando a interpreta; corrói o império da lei quando ignora a vontade geral; invade poderes quando legisla, e viola direitos fundamentais quando se vale de recursos constitucionais para desvirtuar a própria Constituição. O ciclo vicioso de suas virtudes, que se omite quando deveria defender a democracia em processos como o do Impeachment, revelando sua face conservadora. A mesma que considerou os “negros como semoventes” e que conferiu legitimidade ao golpe civil-militar de 1964. Togas que reluzem como “arautos da moralidade” e que moralizam o discurso jurídico sob o disfarce de técnicas ponderativas ou sob a pretensa legitimidade de audiências que publicizam razões que deveriam circular pelo Legislativo. A “democracia da toga”, aponta Labanca, coloniza as possibilidades de um “constitucionalismo sub-nacional” e de afirmação de seus direitos fundamentais, pois “federaliza” o discurso jurídico.
A “federalização” promovida pelo Judiciário converge para aquilo que Roberto Miccu chamou de “federalismo horizontal”, característica da metamorfose pela qual o Estado de Direito tem passado. O Estado de Direito seria uma realidade paradoxal, algo próximo daquilo que Rudolf Wiethölter chamou de “fórmula mágica”. Inserto na tensão paradoxal entre política e direito, a divisão de poderes que Labanca aponta como uma de suas “caixas”, a rigor, nunca teria existido. Para além das formas heterárquicas do federalismo horizontal, esse déficit na definição dos poderes se revela sob novos “estados” do direito, a exemplo da governance, que significa essa ideia de que não há uma divisão definida entre os poderes. Um segundo paradoxo também atinge as caixas enigmáticas dessa fórmula mágica: o fenômeno constitucional se fragmenta e produz formas jurídicas similares que quebram a ideia de unidade clássica do Estado de Direito, a exemplo dos Tratados que “constituem” a União Europeia. Tratam de direitos fundamentais, de divisão de poderes e, tal qual o Estado “clássico” de Direito, revelam-se também em crise. Seria essa uma crise do “constitucionalismo” em todas as suas formas, inclusive nas mais recentes metamorfoses?
Essa crise seria, na opinião de Alfredo Copetti, uma crise onde o “direito” sucumbe a uma “racionalidade das escolhas econômicas”. Neste sentido, onde observarmos “imperativos jurídicos”, observaremos também a crise. Copetti nos lembra do alerta de Ferrajoli: “o Estado é muito pequeno para resolver coisas grandes, e muito grande para resolver coisas pequenas”. Para o seu direito há, portanto, um limite. Sua energia deve estar voltada para impedir que as “escolhas racionais” sobre o ganho represente uma aposta paralela em perdas auto-destruitivas. E isso só funcionará se a intervenção for capaz de retirar a “racionalidade” da escolha: “fight fire with fire, fight power with power, fight money with money”. Mas, e se as estratégias de disputa pelas “escolhas racionais” produzirem um direito autônomo? Esse direito, mesmo possuindo essa “causa ruim e corrupta”, poderia ser utilizado pelo Estado para enfrentar as “coisas gandes”? É nesse sentido que se apresenta o cosmopolitismo otimista de Jânia Saldanha.
À luz dos problemas que envolvem os danos causados pela barragem de Mariana – caso Samarco -, Jânia indaga sobre as possibilidades do Estado na prevenção e responsabilização por danos ambientais em um contexto no qual ele já não é o principal ator. Empresas transnacionais leiloam os custos de proteção e rifam o risco. Mineradoras violam direitos humanos diante de um Estado impotente e de cortes internacionais colonizadas por perspectivas reducionistas desses direitos. É perceptível a influência do global no local, seja na produção de leis que sucumbem aos interesses de empresas transnacionais, seja em políticas privatistas. Inclusive naquela onde as fundações de Mariana começariam a ruir: a privatização da Valle. Mas, se é “perto do perigo que está salvação”, o otimismo cosmopolita de Jânia aponta para experiências positivas no plano global. Na audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizada no Chile, o Brasil foi chamado a atenção quanto à reparação dos danos causados a Mariana, bem como pela flexibilização dos licenciamentos. Se no plano nacional assistimos ao que ela denominou de “caricatura de um consenso”, isto é, um TAC que ignora importantes atores na fiscalização e controle ambiental. Uma “dupla projeção do local no global” que revela a irresponsabilidade da empresa local e lança desafios para um marco normativo global que deve se impor diante da falha do Estado. Se o lado diabólico das aparências engana, o simbólico pode ser reforçado. Endurecer a soft Law quando ela puder ser melhor e se colocar a serviço do Estado. Essas transversalidades normativas e as possibilidades de aprendizado e reforço recíproco parece ser um caminho. Afinal, fight law with law!
O esvaziamento do Estado de Direito, a desterritorialização e a privatização de ordens jurídicas prejudicam as estratégias clássicas de funcionamento emancipatório do direito. Alternativas de emancipação jurídica compensatórias costumam se preocupar com as possibilidades do Estado, mas talvez devessem prestar mais atenção às possibilidades do direito. Afinal, se o capitalismo financeiro global pode abrir mão do Estado, não poderá abrir mão do direito. “O duque não pode impedir o curso da Lei; por causa dos privilégios que os estrangeiros têm conosco em Veneza. Porque, se a negar, em muito prejudicará a justiça neste Estado, visto que o negócio e o lucro na cidade compreendem o de todas as nações”[2].
[1] SHAKESPEARE, Willian. O mercador de Veneza. Trad. Helena Barbas. Água Forte: Almada, 2002.
[2] SHAKESPEARE, Willian. O mercador de Veneza. Trad. Helena Barbas. Água Forte: Almada, 2002.
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