Por Jose Luis Bolzan de Morais - 03/10/2015
“É que o meio (justo ou injusto) é uma realidade paradoxal: o seu centro está em todo o lado, a sua circunferência em parte alguma. Por outras palavras, se nos engloba totalmente, ele é também aquilo que passa no âmago de cada um de nós. Totalmente dependentes dele, somos também por ele totalmente responsáveis.”
OST, François. A Natureza à margem da lei. Ecologia à prova do Direito, p.. 395
Pensar a questão ambiental – tema que estará pautando o debate da VIIIª Reunião da REPE&C nos dias 8 e 9/10/2015, em Itaúna/MG - tem imposto aos atores juristas, politólogos, sociólogos, dentre outros – ou em uma mistura necessária para uma leitura transdisciplinar competente – a necessidade de buscar compreender não só a emergência deste novo – já nem tanto – dilema social, assim como o compromisso de inseri-lo na agenda político-econômico-social diante da emergência de novos riscos (“questão ambiental”), os quais superam em muito as velhas carências (“questão social”), envolvendo o repensar do perfil das fórmulas político-jurídicas modernas condensadas no Estado.
Além disso, a passagem das carências para os riscos, mesmo tendo contribuído para uma mudança paradigmática, impondo-a até mesmo, parece não ter sido suficiente para instaurar uma nova cultura do/no direito, bem como não tem sido objeto de atenções suficientes por parte da teoria do Estado Constitucional diante da emergência de referências novas para as práticas político-jurídicas, sobretudo pela demarcação de uma territorialidade sconfinata, que não se limitam ou identificam com as tradicionais fronteiras da soberania.
A complexificação do Estado Social, com a incorporação na sua agenda dos “riscos ambientais”, para além das “carências sociais”, põe em xeque não apenas as condições que se impõem para o seu enfrentamento, como também explicita a insuficiência do espaço territorializado dos Estados Nacionais como ambiente suficiente para o seu tratamento.
Ora, se no final do Século XIX e início do Século XX o tratamento da “questão social” transformou a face do Estado Liberal, impondo-lhe um caráter intervencionista tendo como sentido não apenas a proteção de pretensões, mas, e sobretudo, a promoção de modos de vida através, principalmente de prestações públicas e de normas premiais, a partir da metade do último século viu-se, desde a explicitação das possibilidades de extinção massiva da espécie humana e do esgotamento de recursos naturais, entre outros fatores, a incorporação de um novo conjunto de preocupações cujo atendimento pressupunha uma transformação radical nas práticas jurídico-político-sociais, posto que estas novidades não se enquadravam em nenhum dos esquemas até então forjados para dar conta dos interesses juridicamente relevantes – individuais e coletivos, as liberdades “de” e as liberdades “do” ou “da”.
A “questão ambiental” pôs em pauta não apenas a necessidade de se pensar estratégias novas de tratamento jurídico-político, como trouxe para o universo de preocupações o asseguramento das condições de vida – com qualidade - para as futuras gerações, uma vez explícita a sua inapropriabilidade exclusivista – peculiares aos interesses individuais – e tão só contemporânea – ou seja, do tempo presente - forjando o que se nomeia como compromisso intergeracional.
Com isso, um conjunto de preocupações se põe ao jurista, seja sob a perspectiva de que a compreensão da “questão ambiental” implica uma postura transdisciplinar posto que inapreensível a partir dos esquemas conceituais disciplinares próprios do pensamento cartesiano moderno, seja sob a perspectiva de que o dilema ambiental ultrapassa em muito a lógica estruturante do Estado e de seu Direito, submetidos aos estritos limites de sua territorialidade e de suas fórmulas sancionatórias e, mesmo, premiais, de regulação de condutas.
Tal circunstância pode ser observada desde uma compreensão mais aguda acerca da concepção à qual se conecta a regulação ambiental, como refere François Ost[1]:
“Do local (a “minha” propriedade, a “minha” herança) conduz ao global (o patrimônio comum do grupo, da nação, da humanidade); do simples (tal espaço, tal indivíduo, tal facto físico), conduz ao complexo (o ecossistema, a espécie, o ciclo); de um regime jurídico ligado em direitos e obrigações individuais (direitos subjectivos de apropriação e obrigações correspondentes), conduz a um regime que toma em consideração os interesses difusos (os interesses de todos, incluindo os das gerações futuras) e as responsabilidades colectivas; de um estatuto centrado, principalmente, numa repartição-atribuição estática do espaço (regime monofuncional da propriedade), conduz ao reconhecimento da multiplicidade das utilizações de que os espaços e recursos são susceptíveis, o que relativiza, necessariamente, as partilhas de apropriação. “
Assim sendo, impõe sob todas as suas facetas um tratamento inovador, o que repercute também sobre a perspectiva das políticas e práticas do Estado e para além do Estado. Evidencia aquilo que já dissemos, com S. Rodotá: é preciso pensar respostas novos para os novos problemas. E, a “questão ambiental” escancara isso, impondo à interrogação não só os limites possíveis do Estado, como forma institucional da modernidade[2], como também a todos os instrumentos até então postos à disposição da regulação jurídica do meio ambiente e de sua afetação.
Disso fica o sentimento de que para darmos conta da questão ambiental tomada como um interesse cujas dimensões se agigantam tanto subjetivamente como espacialmente (territorialmente), bem como geracionalmente (envolvem interesses intergeracionais), mister se faz que não fiquemos presos aos esquemas conceituais e institucionais da modernidade tanto quanto aos mecanismos regulatórios utilizados pelo Direito, também moderno, sobretudo aquele de caráter liberal-individualista cujas potencialidades limitam-se ao tratamento dos tradicionais interesses individuais e, mesmo assim, desde uma ótica privilegiadora do interesse de um indivíduo que exclui o de todos os demais, implicando uma potencial e reconhecida possibilidade de destruição do bem objeto do interesse e de sua “proteção” através de sua identificação patrimonial, ou seja, de sua transformação em um quantum financeiro.
Mas não apenas isto. Há que se pensar em instâncias regulatórias apropriadas ao enfrentamento dos riscos, os quais não se limitam espacialmente, nem podem ser controlados localmente, mesmo que esta dimensão também mereça consideração. Com isto, a perspectiva estadual parece não suficiente para suportar a necessidade de dar-se conta de riscos que não têm nas fronteiras nacionais os limites que delimitavam historicamente “pobreza” e “riqueza”. A poluição, como exemplo, não se circunscreve a um espaço geográfico delimitado, a um território como aquele que identificam os Estados Nacionais da modernidade.
Neste âmbito faz sentido a advertência de François Ost:
“E voltamos assim - ... – ao essencial: a prática renovada e aprofundada da democracia. O ‘meio justo’ não derivará nunca da planificação de especialistas, por mais bem intencionados que sejam e qualquer que seja o nível, mesmo mundial, das suas intervenções. É do debate democrático, agora interpelado pela urgência de desafios inéditos, que deverão proceder as decisões susceptíveis de inflectir a nossa forma de habitar a Terra.
(...)
Resta, portanto, inventar práticas concertadas, públicas, privadas ou associativas, para dar corpo a um outro modelo de desenvolvimento. Uma coisa é certa: a responsabilidade em relação às gerações futuras e a elaboração de um patrimônio natural comum, começam aqui e agora[3].” (grifei)
E mais, sendo a questão ambiental a repercussão de uma opção moderna de sociedade, de ciência, de economia (capitalista), de desenvolvimento, é preciso que se opere uma transformação profunda no modo de vida moderno e não apenas um arranjo pontual, limitado e circunstancial para a manutenção do status quo anterior.
Ou seja, uma política ambiental implica na opção, tal qual ocorrido nos estertores do século XIX, por um novo pacto social que repercuta uma cultura do/para o meio, cuja incidência nas fórmulas jurídicas até então conhecidas e praticadas não será menos drástica, impondo um tratamento que não fique submetido aos espaços tradicionais da política, mas, ao mesmo tempo, responda às pretensões sociais sob fórmulas democráticas que também elas se vêem constrangidas pela superposição de carências e riscos.
Dito de outra forma, a questão ambiental – ainda mais que a questão social - implica em um novo arranjo social que, provavelmente, não dispensará nenhum dos âmbitos possíveis de tratamento (o local, o nacional, o supranacional, o mundial; o espaço público estatal, o espaço público não-estatal e o espaço privado) mas exigirá um conserto social que se constitua a partir de práticas e vínculos construídos sobre instrumentos de uma democracia sustentável[4]
Tal sugere a passagem de uma nova cultura jurídico-política que transita de uma cultura da exclusão para outra, de inclusão dos destinos. Que se assume como uma cultura da fraternidade. Dos bens e interesses individuais para os bens e interesses comuns.
A substituição das carências pelos riscos, nesta perspectiva, conduziria a um novo arranjo cultural da própria política e, por conseqüência, da democracia para um âmbito e um ambiente que se desterritorializa e que rearticularia os laços conviviais.
Tal se concluiria em um projeto comum – como indicam Hardt e Negri, em seu Comune. Oltre il privato -, cujas bases ainda não têm um desenho adequadamente constituído, sequer garantias suficientes.
Padecemos, assim, um tempo de contradições. Tempos sombrios em que, embora o smog (como risco) atinja todos, as carências ainda não foram resolvidas. Enfim, poluição e fome convivem e, como no aquecimento global, quem “paga” a conta são aqueles que menos contribuíram. Sinal das diferenças não resolvidas e das tarefas que temos, às quais nos dedicaremos na próxima reunião REPE&C e no livro coletivo que se seguirá.
Notas e Referências:
[1] Ver, deste autor, A Natureza à margem da lei. Ecologia à prova do Direito. p. 355. Propusemos tal discussão em nosso Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. O Estado e o Direito na ordem contemporânea, pela Livraria do Advogado Editora.
[2] Para esta discussão remetemos a Ciência Política e Teorial do Estado, de nossa autoria em parceria com Lenio Luis Streck, publicado pela Livraria do Advogado, em sua 8ª ed.
[3] François Ost, op. cit., p. 395
[4] Utilizamos este termo para conectá-lo à idéia de desenvolvimento sustentável e suas características. De alguma forma, neste sentido ver, de nossa autoria, A Subjetividade do Tempo, pela Livraria do Advogado.
José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.
Imagem Ilustrativa do Post: Pollution // Foto de: Ian Burt // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/oddsock/9756106243
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.