Por Jose Luis Bolzan de Morais - 04/09/2015
Durante seu primeiro ano nos Estados Unidos,(...), ficava impressionada ao ver como a maior parte das pessoas brancas e magras descia nas estações de Manhatan, e, conforme o metrô ia se aproximando do Brooklyn, só iam sobrando as negras e gordas. Chimada Ngozi Adichie, Americanah, p. 12
Os últimos dias têm deixado, em especial aqueles que até há pouco negavam ou faziam de conta não enxergar, o mundo comovido com o drama – para ser leve – das migrações, diante das cenas tornadas públicas, as quais não precisamos renovar aqui.
Talvez esta comoção seja apenas decorrência da explicitação de uma tragédia de longa data e anunciada, para a qual muito contribuíram as políticas sobre mobilidade humana adotadas pelos países “civilizados”, sobre os escombros de uma sociedade de bem-estar que se confronta com suas próprias idiossincrasias. Mas não só isso.
Desde tempos, alguns têm chamado a atenção para o fato da contradição entre o reconhecimento de direitos humanos e o desenvolvimento do constitucionalismo e sua frágil implementação. O Século XX foi uma evidência disso. O século das Constituições e o século das maiores barbáries.
Há uma falência deste projeto civilizatório? Devemos abandoná-lo? Claro que não, pois, mesmo irrealizados foi o que de melhor se conseguiu fazer em termos político-institucionais. É preciso resistir e agir. É preciso, portanto, interrogar os fatores que se põem em contradição à construção de uma humanidade justa e solidária.
A questão das migrações e a politica dos países da Europa, em especial os da União Europeia, têm demonstrado como os direitos humanos não podem ser negligenciados pelos Estados e pela sociedade em tempos de modernidade mundo.
É possível tratar as migrações de formas diferentes. Em especial, na perspectiva da situação verificada na Europa com os fluxos migratórios vindos da África, Oriente Médio e Ásia, de famílias, grupos e comunidades que fogem da miséria, da violência, da intolerância racial, étnica, política, gênero e opção sexual etc, o que se percebe é um tratamento do tema a partir da noção de inimizade, que coloca o migrante como forasteiro, sujeito sem direitos, em situação de vulnerabilidade. Por isso, montam-se barreiras de arame, muros, campos de refugiados, proíbe-se a entrada no território, promovendo as tragédias que, agora, as imagens têm evidenciado.
Constrói-se a “sociedade the wall”, alicerçada nas velhas fórmulas da modernidade nação que separa amigos/inimigos, nacionais/estrangeiros, ricos/pobres, entre outras dualidades segregacionistas.
A situação atual demonstra como, em termos jurídicos e políticos, a Europa vive uma situação paradoxal entre – sem entrarmos em detalhes - o discurso de liberté, egalité e fraternité, de um pensamento dito humanista consolidado desde o iluminismo, por um lado, e a visão do migrante como forasteiro, inimigo, sem direitos e indesejado, que deixa claro os limites de um modelo que reconhece direitos aos seus e não aos outros. Ao amigo/nacional/cidadão e não ao inimigo/estrangeiro/não cidadão.
Amizade e inimizade sempre foram a tônica, desde o mundo grego, para a definição das relações entre pessoas, povos e cidades-estados. Por isso, hostis é a raiz grega de termos tão antagônicos e paradoxalmente tão próximos como hospitalidade e hostilidade.
Dando vários saltos na historia - de longa duração -, o Estado, na modernidade, também se constitui a partir do jogo entre amizade e inimizade, já que se estrutura sobre as noções fortes de território, povo e, especialmente, soberania.
Também, é a partir da compreensão de inimigos internos, dentro da estatalidade moderna, com a figura mítica do partisan schmittiano, que se passou a discutir uma emergência interna que precisa ser controlada, punida e dizimada para manutenção da ordem interna e da soberania.
Assim, amizade e inimizade constituem um dos traços da cultura jurídico-política ocidental. Não é possível desconhecer que as relações políticas e diversos institutos e instituições jurídicas se constituem historicamente por essa noção.
É inegável a influência nessa dicotômica relação das bases teóricas de matriz eurocêntrica, que justificam até hoje a ocorrência de atos como os vistos nos últimos dias na Europa, para o que não teremos respostas apenas vindas “ad hoc” em face de imagens impactantes, apesar de sua necessidade circunstancial.
Desde a polis grega se verifica a oposição entre amigo-inimigo. Vê-se a polis como o lugar da amizade, principalmente quando se analisa a visão aristotélica, na qual a polis é uma família alargada, de modo que a amizade que se desenvolve no interior da família e da vida privada se estende para o círculo das relações públicas. Aqui, a política é pensada como a realização do bem comum da paz contra o mal da guerra, como sugere Eligio Resta. Se a polis é o lugar da amizade, fora dela é o lugar da inimizade, desenvolvendo-se uma ambivalência, entre o cidadão e o estrangeiro, entre o amigo e o inimigo.
Resta, ao debater a inimizade, reconhece a constituição de duas categorias diferentes de inimigo, o inimigo externo, o forasteiro que traz a guerra (a pobreza, a necessidade, a diferença...), e novos termos para a constituição do inimigo interno, no interior da comunidade politica, o criminoso, o opositor político ou nos dias atuais os grupos minoritários.
A noção de inimizade se desenvolve ao longo da modernidade como um tema recorrente para a constituição de diversas categorias da Teoria do Estado e da Filosofia Política. Em especial, por ela se pode compreender a nova noção de justus ostis, dada a partir da formação dos Estados nacionais e o fim das guerras de religião, como aquele que porta a guerra justa, como aquele Estado que possui uma justa causa para a guerra com outro Estado, como justifica Carl Schmitt em sua obra Nomos da Terra.
Mas mesmo antes, na justificação contratualista do Estado também se constata a dicotomia entre amigo e inimigo. Mais que isto, pretendeu-se a partir dela justificar o uso legítimo da violência pelo direito, o que, inserido na própria constituição do Estado, é base de justificação tanto da formulação hobbesiana, como o Leviatã, como a rousseniana do contrato social. Ambas se justificam pelo controle da violência, principalmente da violência externa que é aquela que define o confim entre amizade e inimizade, que se delimita a partir da limitação do território. Assim, aquilo que está fora dos limites territoriais será o inimigo externo.
O contexto da formação dos Estados nacionais europeus reforçam esta perspectiva, a de um continente formado e divido pelas guerras contra o inimigo – e este assume perfis os mais diversos.
A manutenção de categorias da Teoria do Estado que justificou a consolidação do Estado Nação, em especial, como a noção de povo, território e soberania, tem, no seu interno, uma compreensão da inimizade que sustenta as práticas históricas exclusão e guerra.
Em situações como a atual, em que ao lado da crise humanitária se coloca para o europeu a crise econômica e social, em maior ou menor grau, de seus Estados membros, estes lançam mão de tais matrizes para inviabilizar uma solução que respeite os direitos humanos dos migrantes, que fogem, morrem ou são vitimizados em seus países, e buscam a alternativa europeia, naqueles países que, ao longo da história, os colonizaram - impondo língua, costumes, crenças e modos de vida – e os espoliaram.
Mas seria possível pensar as migrações de outro modo, sem ser por meio da intolerância e da inimizade?
Em tempos de modernidade mundo é preciso forjar um “novo” olhar acerca da própria humanidade.
Se novos direitos podem significar os direitos relacionados às questões tecnológicas, da física ultramoderna das micropartículas, a proposta de um direito intergeracional ou das novas possibilidades na bioética, ele também pode significar o reconhecimento de direitos a indivíduos, grupos ou mesmo classes esquecidas, ou, para o que aqui importa, para indivíduos, grupos, comunidades “deslocadas”. Pode significar um “outro” direito. Um “direito mundo” para o qual o hostis seja o hóspede, não o hostil, seja o “amigo diverso”.
Para usar um termo do filósofo político italiano, Giacomo Marramao, a busca da universalidade da diferença pelo respeito à comunidade dos sem comunidades. Daqueles que foram esquecidos, ocultados, ou mesmo não reconhecidos como sujeitos de direitos, em razão de sua situação de minoria, dentro de uma sociedade monocultural, indiferente e antidemocrática ou, mesmo, diante de sua situação de “estrangeiro” no interior de uma cultura pretensamente uniforme.
Assim, a proposta de um “novo” constitucionalismo – ou de um outro fundamento para - pautado pela discussão de um processo de reconhecimento da diversidade. Diversidade que em um sentido ético significa mais que apenas diferente.
Não se pode apenas reconhecer o direito a diferença, que pressupõe a tolerância ao diferente, mas sim “com-viver” com a diversidade.
E, a partir deste mote, pode-se veicular uma nova perspectiva em torno ao tratamento das migrações que não seja pela construção de muros ou cercas, mas, ao contrário, por sua derrubada.
A resposta parece vir, assim, de uma “sociedade sconfinata”.
José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.
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