REPE&C 6 – Casa para quem? - Notas sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso do auxílio - moradia dos magistrados

21/08/2015

Por José Luis Bolzan e Guilherme Valle Brum - 21/08/2015

Em Justice for Hedgehogs[1], Ronald Dworkin aborda um sem-número de questões filosoficamente relevantes que normalmente não são tratadas todas num mesmo livro, como ele mesmo faz questão de anunciar. São discutidos, ao longo do texto, problemas como a metafísica dos valores, a natureza da interpretação, as condições do acordo e do desacordo verdadeiros, o fenômeno da responsabilidade moral e os limites do livre-arbítrio, além de outras temáticas “mais tradicionais” da teoria ética, moral e política.

Interessar-nos-ão aqui as influências que Dworkin recebe de Kant para construir o seu modelo de responsabilidade moral, que parece bem aplicável ao Direito, mormente como subsídio à legitimação e à sindicabilidade dos atos decisórios do Poder Judiciário. O modelo de responsabilidade dworkiniano, apesar de receber os influxos dos princípios instrumentais da razão pura de Kant, produz, em certo sentido, a sua “hermeneutização”, resultando em um interessante esquema geral balizador da conduta dos juízes, apto a reduzir a carga discricionária da manifestação de poder sempre carregada no seio da decisão judicial.

Muito embora Dworkin fale em “responsabilidade moral”, é perfeitamente possível transportar esse conceito para o Direito. Na sua longa produção bibliográfica, Direito e moral nunca foram antitéticos (também não o eram para Kant). E, em Justice for Hedgehogs, o Direito é tratado, inclusive, como “ramo da moral política”. Mas é importante termos claro aqui o alerta de Jeremy Waldron:[2] embora essa conclusão de Dworkin seja, efetivamente, uma negação da “tese da separação”, isso não significa dizer que não remanesça distinção entre moral e Direito. O Direito é um ramo da moralidade política, um ramo da moralidade que se preocupa com o significado moral das “decisões políticas passadas” com que lidam os juristas, o que equivale a afirmar que ele conserva, sim, sua autonomia.

Dworkin faz uma interpretação de Kant que não considera as ideias de bem viver (ética) e de agir por dever, tendo o outro ser humano como um fim (moral), antagônicas. A partir da assertiva kantiana de que a autonomia é uma condição essencial da dignidade e que somente legislando uma lei moral e agindo de acordo com ela se pode chegar à verdadeira autonomia, Dworkin chega à conclusão de que a pessoa só pode alcançar a dignidade e o respeito por si mesma, que são indispensáveis para uma vida bem-sucedida, se demonstrar respeito pela humanidade enquanto tal em todas as suas formas. Trata-se de um modelo para unificação da ética e da moral.

Esse é o pano de fundo que embasa a incorporação das teses kantianas ao complexo argumento moral e jurídico apresentado em Justice for Hedgehogs. É a partir daí que o autor pensa o problema da responsabilidade moral, virtude que impõe sinceridade e esforço dos cidadãos na defesa de seus valores e na busca da verdade. Agir com responsabilidade é uma atitude moral, mas também uma atitude ética: agir com responsabilidade faz parte de uma vida bem vivida.

A responsabilidade moral exige, portanto, de todos nós que tentemos transformar nossas convicções reflexivas em uma espécie de “filtro” denso e eficaz, a fim de que elas sejam tão fortes quanto possível dentro da matriz causal de nossa história. É preciso, para isso, que busquemos uma cabal coerência (ou integridade) de valores entre nossas convicções, bem como a autenticidade dessas convicções assim coeridas, íntegras. Dworkin revela uma forte influência kantiana nesse ponto, argumentando que “temos de encontrar convicções fortes o suficiente para desempenhar o papel de filtros quando somos pressionados por motivações concorrentes que também defluem de nossa história pessoal”. Dizendo-o de outro modo, responsabilidade moral para agirmos “por dever”.

E, nessa linha, aceitar a integridade e a autenticidade morais pressupõe tratar os outros como fins em si mesmos. Isso faz parte de uma vida que vale a pena ser vivida. Com efeito, se há um vínculo entre moral e ética, uma vida que valha a pena é aquela em que, ao tratar com as outras pessoas, tentamos agir com base na convicção moral porque é isso que é exigido pelo respeito por nós mesmos. Uma conduta assim decorre do dever de coerência/integridade e da universalizabilidade da ação: para não cair na incoerência, não podemos considerar nossa vida objetivamente importante se não aceitarmos que a vida de todos tem a mesma importância objetiva.

Tal como MacCormick,[3] Dworkin insiste, em um primeiro momento, na autonomia e na universalização como requisitos para a ação responsável, requisitos esses que estão presentes nas formulações do imperativo categórico kantiano. Rawls[4] e, agora, Dworkin bem apanharam o sentido do imperativo categórico kantiano. Com ele, Kant nunca supôs que havia descoberto novas verdades sobre os deveres morais. E suas diversas formulações do imperativo categórico estão implicitamente presentes no projeto de responsabilidade de Dworkin, que afirma que a capacidade de universalizar a máxima da nossa conduta não é, de modo algum, um critério de veracidade; os diferentes agentes produzirão diferentes esquemas correspondentes a esse requisito. Mas, por outro lado, é, sim, um critério de responsabilidade, ou pelo menos um elemento importante de tal critério, pois proporciona a coerência que a responsabilidade exige; Kant dizia que temos de ser capazes não somente de imaginar, mas também de querer a universalidade de uma máxima.

O “reino dos fins” (a dignidade kantiana) equivale, em Dworkin, ao dever instrumental de “tratar a todos com igual consideração e respeito”, assumidamente um requisito de legitimidade do agir do Estado. Assim ele o enuncia tanto na abertura de Justice for Hedgehogs[5] como na de Sovereign Virtue.[6] Nesta, da seguinte forma: “nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política […]”.

A tríade kantiana autonomia-universalização-reino dos fins está, em Dworkin, amalgamada na expressão “responsabilidade moral”. E aqui chegamos na situação em que foi possível detectar o desrespeito da legitimidade assim concebida pelo Supremo Tribunal Federal: o caso que ficou conhecido como “auxílio-moradia do Poder Judiciário” (ação originária 1773/DF). Dentre os argumentos utilizados pelo ministro relator do processo, Luiz Fux, para a concessão desse benefício a todos os juízes federais, foi o de que alguns magistrados e membros de ministérios públicos estaduais já o vinham percebendo.

Ocorre que não considerou a existência do enunciado 339 da súmula de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual, não excluindo os juízes do seu âmbito de incidência, dispõe: “não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia”. Pouco tempo depois da decisão que concedera o auxílio-moradia aos juízes federais valendo-se desse fundamento, aquele enunciado de súmula recebeu um reforço normativo, passando a ostentar o status de “súmula vinculante” (SV número 37), que dentre seus efeitos está o de ensejar o manejo de reclamação diretamente ao Supremo Tribunal Federal, com a possibilidade de cassação sumária do ato administrativo ou da decisão judicial que o contrariar (artigo 103-A, parágrafo terceiro, da Constituição da República).

Não parece difícil verificar que o exercício interpretativo praticado pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da decisão monocrática do ministro Luiz Fux, na concretização do princípio da isonomia violou o dever de agir com responsabilidade moral (para usarmos o termo dworkiniano). A um só tempo, produziu ato de poder não universalizável (e efetivamente não universalizado, dada a edição de súmula vinculante com teor contrário pouco tempo depois) e que desconsiderou a obrigação de tratar as pessoas com igual consideração e respeito (reino dos fins). Todos os demais servidores públicos, ao que tudo indica, permanecerão submetendo-se aos efeitos do enunciado de súmula vinculante que veda a concessão de aumento remuneratório com base no princípio da isonomia.

Eis aqui um exemplo prático da possibilidade de aferirmos a legitimidade dos atos de poder com base no modelo de responsabilidade moral de Dworkin, que alia o idealismo kantiano com a hermenêutica da faticidade.


Notas e Referências:

[1] Esta obra foi traduzida no Brasil: DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho. Justiça e valor. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[2] WALDRON, Jeremy. Jurisprudence for Hedgehogs. Public law & legal theory research papers series, Working Paper n. 13-45, New York University School of Law: July, 2013, p. 8-9.

[3] MACCORMICK, Neil.  Retórica e o Estado de Direito. Trad. Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

[4] RAWLS, John. História da filosofia moral. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[5]    Op. cit., p. 4.

[6]    DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Teoria e prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. IX.


Sem título-1

José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.

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GSem título-1uilherme Valle Brum é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/DF). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Pesquisador do GP e Rede de Pesquisa CNPQ “Estado e Constituição”. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.

 


Imagem Ilustrativa do Post: Public Housing by Lingnan University  // Foto de: David Woo // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mckln/4814327159 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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