REPE&C 35 – Por que obedeço?

10/07/2017

Por Jose Luis Bolzan de Morais – 10/07/2017

A questão da legitimidade do Poder é daquelas perguntas que nos perseguem. Afinal, por que obedeço às “ordens” da autoridade? De onde esta retira sua autoridade? Melhor, onde está “situado” e qual é o fundamento de legitimação para as decisões vinculantes?

Recortando a história da filosofia política, na tradição moderna o fundamento da legitimidade do poder foi sustentado pela ideia de “contrato social”, por meio do qual, em razão do consenso que estaria em sua formação, a legitimidade do poder era dada pelo reconhecimento dos súditos que, ao contratarem, estariam, em realidade, dando origem e fundamentando a legitimação do poder político. Obedecer ao soberano seria obedecer a si mesmo.

Sem entrar em detalhes, a legitimação do poder foi sendo, paulatinamente, na modernidade, (re)construída, sempre na perspectiva de sua democratização – real ou aparente – mas, de toda maneira, sempre buscada.

Na democracia liberal a legitimidade do poder foi sendo forjada por sua origem, em um primeiro momento. Um poder baseado na eleição. Mas não só a forma poderia sustentar sua legitimação. Por isso, o exercício deste deveria estar baseado em pressupostos.

Nos Estados Constitucionais, a legitimação se dá pelo acesso baseado em eleições – ou em concurso, como destaca P. Rosanvalon (La Legitimité Démocratique) – e pelo exercício baseado em pressupostos expressos nos textos constitucionais, a exigir do soberano que suas decisões repercutam os “valores” constitucionais.

Simplificando ao máximo, democracia e direitos humanos formariam o lastro de legitimação do poder político. Seriam os esteios do soberano.

Com isso, parece, a primeira vista, com o interrogante antes posto, que o problema da legitimidade do poder estaria resolvido, ou pelo menos “bem encaminhado”...

Ledo engano.

Vivemos tempos difíceis. Contraditórios. Se não, vejamos!

Se o problema do poder do soberano foi sendo enfrentado e buscaram-se soluções ao longo do tempo, hoje, entre outras coisas, o problema é saber quem é o soberano? Quem decide e com quais procedimentos, perguntaria N. Bobbio? Com qual conteúdo, acrescentaria L. Ferrajoli? Todas perguntas dirigidas ao soberano moderno, o Estado.

Se, neste tempo todo, ainda nos confrontamos com a legitimidade deste poder político sob a forma da estatalidade moderna, o que dizer quando percebemos que estamos vivenciando uma migração dos loci decisórios e, com isso, vendo todos estes mecanismos serem fragilizados, para não dizer excluídos.

Já N. Bobbio questionava a expansão das fórmulas democráticas para outros âmbitos onde sequer os procedimentos decisórios se submetiam aos seus ritos e ritmos. Agora, em tempos de globalização, big data, surveillance, governança, standards e indicadores, o problema da legitimidade do poder se põe novamente, se é que se poderia dizer que em algum momento esteve afastado.

O problema, desde logo, está em recuperar a preocupação pelo tema. Em tempos de sujeitos endividados, representados, securitizados e mediatizados (Hardt e Negri) parece que o problema da legitimação do poder se perde em razão do esgotamento da própria cidadania.

Talvez isto explique, pelo menos parcialmente, o porquê da aceitação da usurpação do próprio poder por “poderes selvagens” (veja: ), da fragilização das liberdades em nome da segurança (veja: ), da aceitação da catalogação excludente por meio de mecanismos informacionais (veja: ).

A isso adere novas formas de governance baseada em mecanismos de gestão que transferem a decisão e, de resto, o poder normativo para instâncias privadas especializadas em todos os âmbitos do poder político. Vemos, aí, como “a lógica empresarial pode, sem substituir as regras de direito e de processo, mas sobrepondo-se a elas para cumprir os objetivos de racionalização administrativa, impor-se às garantias jurídicas do Estado de Direito sob o pretexto de reforçar sua eficiência.” (B. Frydman, O Fim do Estado de Direito, Col. Estado & Constituição, n. 17. p. 72).

Assim, governar por standards e indicadores nos recoloca o problema da legitimidade do poder, em especial pela assepsia pretendida pelas normas técnicas – afinal não estariam submetidas a ideologias -, pelo dito caráter consensual e voluntário da produção e da obediência às mesmas – pois seriam produto e resultado de acordos construídos - e por sua decantada “independência” em face da vontade política – uma vez não dependerem de aprovação pelos meios tradicionais da decisão política.

Neste contexto, parece-nos indispensável retomar a pergunta: Por que obedeço? Mais, a quem obedeço?


José Luis Bolzan de Morais. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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