Por Jose Luis Bolzan de Morais – 10/04/2017
Pour sortir du Pot au noir, il faut s’adapter aux sautes de vents, se laisser porter quand les vents son favorables, mais aussi louvoyer face aux vents contraires, survivre au calme plat et résister aux coups de vent.
(Mireille Delmas-Marty, Aux quatre vents du monde..., p.143 )
No seu último livro – Aux quatre vents du monde. Petit guide de navigation sur l’océan de la mondialisation (Paris: Seuil. 2016) – Mireille Delmas-Marty[1] constrói sua reflexão partindo da representação feita por navegadores, já no período das Grandes Navegações, e por aviadores, quando confrontados com a passagem súbita da completa ausência de ventos à turbulência produzida por ventos contrários, ventos que sopram de todas as direções. Nesta situação, a incapacidade de lidar com a situação pode levar ao afundamento do navio ou a queda da aeronave. Por isso, velejadores e aviadores precisam ser capazes de fazer a “composição” destes ventos para manterem seus equipamentos singrando os mares ou cruzando os céus.
Desde esta perspectiva, constrói a autora um conjunto de reflexões que nos seriam úteis para a compreensão e o enfrentamento dos tensionamentos que se apresentam em razão dos “ventos” contraditórios que compõem o fenômeno da mundialização, em especial tendo em conta que o direito – com um apelo à razão jurídica e às forces imaginantes du droit – pode contribuir para nos manter vivos.
Para ela, contemporaneamente nos vemos confrontados com quatro “ventos” principais e contraditórios – liberdade, “segurança” (sécurité...)[2], competição e cooperação - aos quais se interpõem quatro outros – inovação, conservação, exclusão e integração -, também eles em oposição. E, isto, tanto quanto para os navegadores e aviadores, põe em pauta a necessidade de sermos capazes de contornar estes tensionamentos, forjando uma composição entre estes “ventos” em contradição – como em uma rosa dos ventos – para reencontrar um equilíbrio, a partir de “princípios reguladores” – dignidade humana, solidariedade planetária, precaução/antecipação e pluralismo ordenado -, que permitam que se ajuste a tensão por mais improvável que pareçam estas aproximações. Para isso, diz a autora, não se pode pretender sobrevalorizar um em detrimento do outro, pois a cada situação desse tipo ter-se-ia, como consequência, resultados trágicos. Ao contrário, a busca de uma limitação recíproca demanda que, repita-se, como navegadores e/ou pilotos se restabeleça o equilíbrio.
Contudo, para que se possa fazer esta composição é preciso, desde logo, o reconhecimento de que as fórmulas tradicionais do Direito, como pensado nos últimos séculos, não conseguem dar respostas adequadas e suficientes. Não se pode mais pensá-lo a partir de esquemas conceituais assentados em pressupostos de estabilidade, quando vivemos na instabilidade, de hierarquia, quando o que se tem é a interatividade, em um contexto de interdependências e diversidade de atores, o que dá origem a formas complexas de normatividade.
Ou seja, os campos jurídicos encontram-se profundamente transformados, não mais podendo ser pensados em termos conceituais, mas processuais; estáticos, mas dinâmicos; a partir de modelos, mas em movimento.
E isto tudo implicaria a transformação do direito, não mais vigorando sua clássica fórmula precisa, obrigatória e sancionadora, agora substituída por um direito impreciso, facultativo e não sancionado.
A fórmula construída pela autora advém do reconhecimento das transformações experimentadas pela complexa sociedade contemporânea, que se vê confrontada com a ‘expiração’ de suas fórmulas e incapaz de lidar, como bons navegadores ou pilotos, com as crises e dilemas que lhe são impostos pelo contexto da mundialização.
Como enfrentar a crise ambiental, o terrorismo globalizado, o desenvolvimento tecnológico, o problema social consectário da economia globalizada, entre outros, se não nos permitirmos pensar estratégias mais flexíveis de regulação que consigam tirar proveito dos momentos de calmaria e, também, sejam capazes de enfrentar os golpes de ventos contraditórios.
Ao longo do livro ela se questiona e vai construindo respostas, a partir dos princípios que elenca, por exemplo, para como evitar que uma sobrevalorização da securité em face da liberdade, como se percebe na dita “guerra ao terror”, leve a formas totalitárias, assim como, ao contrário, um privilegiamento da liberdade.... Isso só poderia – poderá – ser feito se admitirmos que elas se limitam reciprocamente pelo princípio da igual dignidade de todos os seres humanos.
Da mesma forma, tem-se que buscar este “equilíbrio” nas demais situações de confronto destes “ventos”, permitindo-se que, assim, se produza este ajuste a permitir a continuidade da “navegação” humana.
Da COP 21 a autora observa um exemplo significativo disto, em particular da co-responsabilização dos atores envolvidos (políticos, econômicos – sobretudo empresas transnacionais -, cívicos – ONGs e cidadãos - e científicos) – já que na mundialização não se pode esquecer que se está na presença de uma multiplicidade deles – para a construção de uma “governança mundial”, transformando a energia dos “ventos” em ação.
Assim, a autora sustenta que entrer dans la ronde des vents est une tentative pour réguler les souffles d’une mondialisation que l’on voudrait à la fois legitime et efficace (p. 82).
Porém, como também reconhece Mireille Delmas-Marty, pourquoi est-il difficile de sortir du Pot au noir? (p. 142)
E, tem razão a autora, em tempos de governo Trump, aqui adotado como exemplo trágico, a política de muros e a política ambiental patrocinadas pelo mesmo põem em xeque uma tal utopia – a de uma nova razão humana...
Veja-se, exemplificativamente, o que tem sido feito em termos de “crise ambiental”, com a edição da Ordem Executiva de Independência Energética que, na prática, revertendo a política de Barack Obama, vai de encontro à luta contra a mudança climática e a fórmula adotada, e recebida com elogios por Mireille Delmas-Marty, na COP 21:
A Casa Branca afirma que “não há uma obrigação” de regular as emissões de usinas poluentes e que sua missão prioritária é o crescimento econômico. Para a Administração republicana, as políticas vigentes devem ser “revisadas, melhoradas e atualizadas de acordo com as prioridades do presidente”. Várias agências governamentais se encarregarão de estudar o plano de restrições às usinas energéticas, e suas conclusões, segundo a Casa Branca, servirão de base para as futuras políticas ambientais de Trump.
O plano de Obama para reduzir as emissões das usinas energéticas, agora solapado por Trump, nunca chegou a entrar em vigor, pois 28 Estados recorreram à Justiça por iniciativa de Scott Pruitt – atual diretor da EPA – alegando que a agência ambiental havia extrapolado suas atribuições e estava dificultando a geração de empregos.
A decisão do mandatário republicano já era esperada, tanto por causa das suas promessas eleitorais como das decisões que tomou desde seu primeiro dia na Casa Branca. Trump escolheu Pruitt como chefe da política ambiental pois ambos são céticos sobre a influência humana na mudança climática. O presidente, que chegou a defender que o aquecimento global é uma “invenção chinesa”, estuda cortar um terço do orçamento da EPA e nomeou como secretário de Estado um ex-presidente da Exxon Mobil, a maior petroleira do país.
(http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/28/internacional/1490664173_797143.html)
Ou, no caso da “crise migratória”, a política adotada por Donald Trump também está a indicar um passo atrás em termos de equilíbrio dos ventos:
O presidente dos EUA, Donald Trump, assinou nesta quarta-feira (25) decreto presidencial que prevê a construção de uma "grande barreira física" na fronteira com o México.
"Uma nação sem fronteiras não é uma nação", afirmou Trump, após assinar o decreto durante uma cerimônia no Departamento de Segurança Interna, em Washington. "A partir de hoje, os Estados Unidos da América recuperam o controle de suas fronteiras –
Por óbvio, como diz a autora, que l’évolution des sociétés, comme celle des individus, n’est ni continue ni linéaire. (p. 142) e, por isso mesmo, é preciso ter em conta que, nestes dias, no mínimo estamos deixando o navio ou o avião à deriva de “ventos” que se hegemonizam – a securité diante da liberdade, com tudo o que isso implica em termos de Estado de Direito e garantias, sem que o princípio da dignidade de todos consiga se impor; a exclusão diante da integração, sem que o pluralismo ordenado se interponha como princípio ordenador.
Em tempos de tempestade, os novos instrumentos propostos ainda se ressentem da responsabilização de todos les membres de l’équipage e sair do Pot au noir parece cada vez mais difícil.
Mireille Delmas-Marty, assim, nos instiga, mais uma vez, a pensar. Vale a leitura.
Notas e Referências:
[1] Vamos utilizar, aqui, diversas referências ao texto da autora, sem especificarmos, eventualmente, as páginas correspondentes, porém deixando claro tratar-se, quando seja o caso, de ideias propostas pela mesma.
[2] A noção de securité talvez não se adeque corretamente àquela, em português, de “seguraça”, por isso e por ora, utilizaremos esta entre aspas ou manteremos na língua original.
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
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