Por Jose Luis Bolzan de Morais e Guilherme Valle Brum - 14/11/2016
Auxílio Moradia – R$ 4.377,73
Piso Nacional do Magistério – R$ 2.135,64
Nos últimos anos temos nos confrontado com um debate candente no âmbito do Sistema de Justiça brasileiro: o crescimento exponencial dos números. Seja no que se refere ao volume crescente de ações propostas – hoje se trabalha com um quantitativo arredondado de cerca de cem milhões de processos, o que daria um processo para cada dois brasileiros, considerando-se uma população de duzentos milhões de pessoas. Seja quando se opta por um modelo gerencial de justiça, operando a partir de indicadores que medem a produtividade, os fluxos, etc...
Para isso, exemplificativamente, basta dar uma passada de olhos no Justiça em Números publicado pelo Conselho Nacional de Justiça – http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros – onde se tem o espelho quantitativo da Poder Judiciário brasileiro.
Talvez este seja um referencial importante para que tenhamos, também, o perfil de uma sociedade que optou por voltar-se à jurisdição como um lugar para ver tratados os seus conflitos, dilemas e dramas. Uma sociedade que optou por uma busca incessante de acolhimento de interesses – muitas vezes transformados em desejos[1] – via decisão judicial em substituição à disputa política. Um fenômeno que ficou consagrado como judicialização da política, da qual tivemos como resultado perverso um ativismo judicial que em nome de qualquer coisa subverte as opções políticas, até constituintes, como temos visto não só no exemplo sempre presente da judicialização da saúde, mas também em recentes decisões de nosso Supremo Tribunal Federal travestido de Corte Constitucional – talvez a subversão da presunção de inocência seja a ponta mais visível deste iceberg.
Também tudo isso faz parte de uma “opção” gerencial de administração não apenas dos serviços judiciais como do próprio processo. Com isso, as reformas processuais foram “respondendo” a um novo modelo de gestão do Sistema de Justiça, transformando seus atores em gestores de fluxos, administradores de sistemas. O eficientismo tomou conta. Cada vez mais a preocupação está em dar vazão aos fluxos processuais. Chegamos, agora, ao nomeado “sistema multiportas”, adotado com o novo Código de Processo Civil, recentemente inaugurado. Nesta tentativa, apropriam-se meios de tratamento de conflitos com o intuito de dar conta do déficit entre acesso ampliado, transformado em demandismo desenfreado, e capacidade de resposta do Sistema,também apresentado como um meio de democratização do sistema. Os ditos meios consensuais são, com isso, também eles, subvertidos, perdendo em muito aquilo que carregam como potencialidade transformadora – o que não vem ao caso aqui e agora, embora de importância central.[2] É, também, circunstancial quando se ouvem autoridades judiciárias mencionarem o papel arrecadador do Sistema de Justiça, de sua capacidade de gerar recursos, etc., perdendo o foco do seu papel de instituição de garantia.
Ao lado de tudo isso, porém, ganha importância um outro aspecto. Outros números chamam a atenção. E não se trata, aqui, de números relativos à quantificação de processos, montante de decisões por magistrado, acúmulos de demandas, fluxos, etc.
O que atrai a atenção, finalmente, inclusive da grande imprensa, tradicionalmente reticente quando se trata de pôr em pauta as mazelas de outras autoridades públicas que não aquelas do Executivo e do Legislativo, são os “números financeiros” do Judiciário e, também, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e, depois de conquistar a tão almejada, por muitos, autonomia financeira, da própria Defensoria Pública.
Em tempos de crise financeira – real ou inventada – do Estado – leia-se, aqui, “Poder Executivo” –, cujos servidores, aqueles responsáveis por pôr em funcionamento muitos dos direitos buscados em juízo pela cidadania (escolas, hospitais, segurança pública, etc), têm seus salários ou subsídios atrasados e parcelados, correndo o risco de sequer receberem direitos trabalhistas tradicionais – caso do 13º salário, do 1/3 de férias, etc –, avulta não só o tratamento diferenciado entre estes setores do Estado – sim, eles também são Estado, se não esquecermos da fórmula histórica do Estado da modernidade e sua “unidade” fundante, bem como da engenharia liberal da especialização de funções, tudo isso presente em nossa Carta Constitucional de 1988 – como também a perda de referências que o mecanismo da “autonomia administrativa e financeira” tem produzido. Essa tal “autonomia” vem sendo transformada em sinônimo de autarquização, mecanismo para se constituírem ambientes isolados e imunes à crise.
Estes número$ dizem muito. Para isso basta que se verifiquem os quantitativos pagos a títulos os mais diversos: moradia, alimentação, educação (de filhos), etc... – afinal, a criatividade é exponencial nesta seara.
O tal “auxílio moradia”, hoje em R$ 4.377,73 – mais do que o dobro do piso nacional do magistério (R$ 2.135,64), sequer pago em muitos estados da federação –, sustentado por uma decisão liminar do Min. Luiz Fux, há dois anos, é significativo a respeito. Afora isso, recentemente se aumentou o “auxílio alimentação”, hoje em R$ 884,00, e, ainda, como no caso do Rio Grande do Sul, pagaram-se os atrasados (finalmente nossos magistrados poderão alimentar-se retroativamente) com uma “pequena” bolada de R$ 57.210,90.[3]
Há, ainda, setores que reivindiquem outros tantos “auxílios”. Todos com caráter indenizatório, por óbvio – o que, a par de implicar isenção do imposto de renda, leva alguns, como já escutamos de integrantes insuspeitos do Poder Judiciário, a dizer que isso beneficia o Estado (de qual Estado está se falando?), uma vez que não será incorporado às aposentadorias, prejudicando, assim, estes mesmos “servidores públicos”. Claro, em algum momento, a “autogestão” dos interesses resolverá este “pequeno” problema.
Neste momento, calha um registro, que bem dá conta do imaginário que, pervasivamente, começa a tomar conta dos atores do Sistema de Justiça. Enquanto a referida medida liminar concedida pelo Ministro Fux não é levada a julgamento pelo colegiado do STF (juiz natural da causa), a vantagem concedida vai se consolidando no tempo e produzindo uma espécie de “aceitação” de sua “juridicidade”, de modo a juízes se sentirem autorizados a proferir decisões até mesmo alargando as hipóteses de concessão da benesse. Um exemplo típico é a decisão proferida por outra alta corte da República, o Superior Tribunal de Justiça, que em exercício anômalo de jurisdição constitucional aplicou o princípio da “vedação do retrocesso social” nessa mesma temática do auxílio-moradia. Cuida-se da decisão proferida na Reclamação 21.763.
No caso, utilizou-se, como argumento para estender o auxílio-moradia a uma Procuradora da República, cônjuge de outro beneficiário de mesma verba, a “proibição de retrocesso”, que consistiria “em se inadmitir que uma regra jurídica afluente possa desconstituir um direito subjetivo”. Assim sendo, seria incabível, por equivaler a um “retrocesso social”, vedar o auxílio-moradia de um Procurador da República porque seu cônjuge recebe verba idêntica, de modo que a Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público que estipulara essa restrição afrontaria o direito assegurado pela decisão proferida pelo Ministro Luiz Fux, a qual não impôs “qualquer outra exigência” à fruição do benefício, “salvo a de não ser o beneficiário ocupante de imóvel oficial”.[4]
Há, ainda, outros número$ interessantes. Como aqueles referentes à venda de férias – que, para magistrados e membros do Ministério Público, é de dois períodos de 30 dias/ano – não gozadas, o que alcança mais alguns trocados para ajudar nas finanças destas categorias tão importantes que, com a autonomia de que dispõem, se autoconcedem benefícios, nunca acessíveis àqueles outros trabalhadores que devem se contentar com um salário mínimo nacional de R$ 880,00.
E ainda se fala em reforma da legislação trabalhista, da previdência social, entre outras reformas, sobretudo no âmbito do serviço público, afinal o Estado (Poder Executivo, leia-se) e, claro, com beneplácito/suporte destes setores – a decisão recente do STF sobre o direito de greve é indicativa disso -, não tem condições de suportar tantos “benefícios alcançados aos trabalhadores públicos – do Poder Executivo, repita-se – que, vejam só, além de terem assegurado salários mensais – agora sequer pagos em dia –, ainda percebem 13º salário, adicional de férias e outros tantos “benefícios” – repita-se - incompatíveis com um orçamento público comprometido..., com uma administração neoliberal etc... E nem se fale dos trabalhadores privados...
É, os números falam por si. E expõem a crise da República, comemorada neste 15/11, – se é que esta foi inaugurada no Brasil em algum momento – que vivemos!
Notas e Referências:
[1] Sobre isso ver: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e BRUM, Guilherme Valle. Políticas públicas e jurisdição constitucional: entre direitos, deveres e desejos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
[2] Desde há muito temos tratado disso, antes mesmo desta atual fase de sucesso experimentado destes temas. Para uma síntese ver: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e Arbitragem. Alternativas à jurisdição. 3a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[3] É o que dá conta notícia jornalística de colunista do periódico Zero Hora. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2016/11/judiciario-uma-ilha-protegida-da-crise-8255357.html#showNoticia=ZjZIe0J6KzwzNzk5MTk2OTAwMTI5NzY3NDI0TW9RNzU0MTYzODk4NzM2OTYyODg1MHR6XTY4MTM4NTk1OTY1MjA2NTI4MDBmTW43TDMhUWxfQCNcUkFvbks=. Acesso em 13.11.2016.
[4] Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em 13.11.2016. Abordamos essa decisão no contexto de outro texto de nossa autoria, também relacinado com a problemática sobre a qual ora nos debruçamos: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e BRUM, Guilherme Valle. De uma “hermenêutica dos desejos” a uma “Constituição ilimitada”: notas inaugurais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 13, p. 77-99, 2015.
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
. Guilherme Valle Brum é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/DF). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Pesquisador do GP e Rede de Pesquisa CNPQ “Estado e Constituição”. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.. .
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