REPE&C 31 – L. A. Warat – Lembranças em tempos sombrios!

31/10/2016

Por Jose Luis Bolzan de Morais e Mariana Rodrigues Veras - 31/10/2016

Vivemos um tempo de falsificações consentidas, de transparências simuladas. Dentro deste contexto, a democracia aparece como uma espécie de identidade social publicitada. De abstrata, a democracia, vai se tornando figurativa, expressão encenada de uma participação simulada. [...] (WARAT, 1997, p.29, grifo aditado)

Ao longo de sua trajetória acadêmica, Warat abriu, incessantemente, janelas de diálogos entre diferentes campos do saber, abordando áreas, por vezes, inexploradas ou pouco exploradas no âmbito teórico jurídico. Hoje, muitas delas são tomadas emprestadas sem, ao menos, referir suas “origens” waratianas. A sua obra contribuiu de forma reconhecida para o avanço do campo teórico jurídico. O reconhecimento de sua contribuição teórica não se limita ao cenário nacional, o conceito de senso comum teórico dos juristas, por exemplo, é contemplado no Dictionnaire Encyclopédique de Théorie et de Sociologie du Droit (ROCHA, 1990)[1].

Warat problematizou um grande número de temas, contemplando autores clássicos da Teoria do Direito e da Filosofia do Direito, mas não se restringiu ao âmbito destes campos teóricos (MONDARDO, 2000). Warat “surfou na pororoca”, inaugurando construções até então pouco ou nada pensadas.

A obra waratiana surpreende com suas articulações inesperadas, e nos 40 anos de produção é possível afirmar a atualidade de suas abordagens. E, neste aniversário recordamos um artigo antigo, no qual antecipa, como tantas outras coisas, algo que vivenciamos tragicamente.

Há 30 anos, em 1986, Warat abordou no texto “As funções constitucionais do saber jurídico e os caminhos da transição democrática” aspectos referentes às questões da esfera constitucional no período (WARAT, 2016). Uma primeira noção contemplada no texto publicado na Revista Sequência diz respeito às ideias então correntes em relação ao papel social da Constituição. Lá já anotava:

[...] as dimensões simbólicas de um pacto constituinte não podem ser reduzidas ao ato fundante representado pela consolidação de uma Carta Constitucional. Deve ser enquadrado como um momento produtivo que precisa ser articulado com uma gramática de reconhecimento, que emerge conflitivamente na história [...]. (WARAT, 2016, p.48-49, grifo aditado)

De acordo com Warat, os caminhos indicados pela “racionalidade mitológica do juridicismo” são incompatíveis com um processo de transição ou consolidação de uma sociedade democrática. Esta é uma racionalidade que reproduz uma estrutura sócio-política de institucionalidade autoritária. Nesta perspectiva, Warat aponta para a possibilidade de um “pensamento jurídico inconformado” considerando o cenário da América Latina. Afirma:

[...] Nesta zona do mundo, a teoria crítica não pode deixar de mostrar-se francamente comprometida com os anseios de redemocratização de suas sociedades. Precisa mostrar as potencialidades e as limitações para um funcionamento democrático do direito. Acredito que para a compreensão de ditas funções democráticas, temos como uma das questões prioritárias a reformulação ampla das crenças juridicistas em torno das funções constitucionais do direito. (WARAT, 2016, p.48)

É na produção dos discursos de reconhecimento das previsões da Constituição que se deflagra a dinâmica conflitiva de sua significação. E, neste processo emergem as funções constitucionais substantivas para a formação de uma sociedade democrática, que “[...]para ser democrática precisa em primeiro lugar que seja garantido o espaço de emergência de seus conflitos.” (WARAT, 2016, p.49)

Assim, em uma sociedade democrática deve existir um conjunto de garantias para a organização de espaços de reivindicações. Na sociedade democrática deve existir espaço para a resistência frente às formas de dominação instituídas nas estruturas e instituições.

E, deve ser lembrado que as ficções juridicistas restringem as funções constitucionais a uma esfera meramente formal, descontextualizando sentidos, silenciando a história. Aqui, cabe a referência:

Em suma, prisioneiros das ficções juridicistas, somos predominantemente levados a reduzir as funções constitucionais a um plano meramente formal e de sentidos descontextualizados: dados em textos legais desprovidos de história. Reivindicar o caráter substantivo das funções constitucionais implica a reimplantação da totalidade do ordenamento legal na história. (WARAT, 2016, p.50)

E, no caso do Brasil, é possível questionar no presente, após 30 anos destas ideias waratianas, se ocorreu o reconhecimento discursivo pleno da esfera constitucional da Constituição de 1988 ou se o que existe é, apenas, uma espécie de reconhecimento discursivo performático.  Por estas plagas, parece, a esfera constitucional ainda é negada através de múltiplas formas. Na verdade, existe uma espécie de encobrimento do texto constitucional e tentativas de alteração para emudecer sua voz – para o que, doutrina jurídica e doutrina, de regra, contribuem desalentadoramente.

Por isto, em homenagem à memória deste Mestre, é sempre importante lembrar que, como bradava àquela época de transição democrática, a Carta Constituinte vincula-se a um pacto social para a democracia e, inversamente, as ações que intentam arranhar das mais diversas formas a esfera constitucional afirmam a importância e relevância da Constituição, mais ainda no cenário atual.

Quando o texto constitucional é dilapidado – vejam-se as recentes decisões de nossa “Suprema Corte” – percebe-se, no horizonte, traços autoritários onde se rasga juntamente com a Constituição a história de uma forma social democrática.

Com este quadro desalentador, é possível questionar se a Constituição, para além das visões juridicistas, ainda é um instrumento essencial para a sobrevivência democrática das instituições? Essa é uma questão que demanda reflexão constante.

O constitucionalismo desempenhou, e talvez por isso mesmo tantos se empenhem em desacreditá-lo, um papel fundamental para o asseguramento de parâmetros mínimos de vida social democrática (BOLZAN DE MORAIS, 2000). E, o esfacelamento da esfera constitucional coloca em risco diretamente a instância democrática, coloca em risco conquistas na esfera social. Coloca em risco a sua fórmula de base: o Estado Democrático de Direito. Este, mesmo nos seus estreitos limites, promete(u) uma sociedade menos injusta e mais solidária. O que estamos fazendo para isto?

Parece-nos que, no lugar da força normativa da Constituição está-se abrindo espaço para uma força impositiva que lembra a figura da Digna Voz da Majestade, uma voz acima da história e da esfera democrática. Resta aos atores, em um ambiente carnavalizado, cenário tão inspirador para Warat, resistir a ela - uma voz que tenta calar a pluralidade de vozes ainda acolhida na esfera constitucional.

A produção waratiana esteve atenta à apreensão de aspectos constitutivos de acontecimentos de um tempo circunscrito. As questões contempladas em sua obra ainda se fundem às narrativas do presente.

Warat permanece vivo em sua obra, permanece vivo na memória de todos que tiveram possibilidade de vivenciar sua “aula mágica”, de tomar um café e dialogar com o Cronópio Mor, de visitar uma livraria ao seu lado e observar o cuidado que tinha ao escolher diversos livros para inspirar seu imaginário, de participar de um Cabaret Macunaíma, de um Sarau com sua impactante presença, de ser atravessado pelo “poder” de suas metáforas. Memórias que não se apagam. Lembranças que nos chamam à fala. É hora de resistir, com Warat. Parabéns a ele!


Notas e Referências:

[1] “O sentido comum teórico estaria, assim, constituído uma racionalidade subjacente que não deixa de ser uma fala adaptada a preconceitos, hábitos metafísicos, visões normalizadoras das relações de poder, princípios de autoridade, ilusões de transparência, noções apoiadas em opiniões, assinalações religiosas mitológicas etc.”. (WARAT, 1995, p.75)

BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Constituição ou Barbárie: perspectivas constitucionais. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (org.). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.11-24.

MONDARDO, Dilsa. 20 anos Rebeldes: O Direito à Luz da proposta filosófico pedagógica de L.A. Warat. Florianópolis, SC: Editora Diploma Legal, 2000.

ROCHA, Leonel Severo. Sens commun théorique des juristes. In: ARNAUD, André-Jean. (Org.) Dictionnaire Encyclopédique de Théorie et de Sociologie du Droit. Paris: LGDJ/UNB, 1990, p.372 e segs. .

WARAT, Luis Alberto. As funções constitucionais do saber jurídico e os caminhos da transição democrática. Disponível em<https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16631> Acesso em 29.10.2016.

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. O Direito não estudado pela teoria jurídica moderna.Vol.III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

WARAT, Luis Alberto. O Monastério dos Sábios: o sentido comum teórico dos juristas. In: Introdução Geral ao Direito. A Epistemologia Jurídica da Modernidade. Vol. II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 57-99.


José Luis Bolzan de Morais. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .


Mariana Rodrigues Veras. Mariana Rodrigues Veras é Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB). Professora do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Membro da REPE&C.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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