Por Jose Luis Bolzan de Morais e Marcelo Oliveira de Moura - 04/10/2016[1]
Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção, da concorrência como norma da atividade dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação e, por fim, da concorrência como norma da conduta do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa, essas são as etapas pelas quais se realiza a extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana e que fazem da razão neoliberal uma verdadeira razão-mundo
(DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. p. 379)
Como apontam Dardot e Laval, na introdução à edição inglesa de sua obra, recentemente lançada no Brasil sob o título “A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade Neoliberal”, setores significativos dos movimentos de resistência ao neoliberalismo incorreram em um erro de diagnóstico, constituído a partir do obscurecimento de sua dimensão regulatória ou governamental, no sentido atribuído por Michel Foucault. Equivocada apreciação que se conformou com base em uma percepção de que a ideologia neoliberal, fundada na fé fanática na naturalidade do mercado, se materializaria como um programa anti-intervencionista, de políticas de destruição das regulamentações e instituições, revitalizando as perspectivas liberais clássicas e o minimalismo estatal.[2]
Esse olhar redutor da complexidade do processo de globalização (neoliberal) contemporâneo, que é compartilhado por amplos setores da ciência jurídica, repercute de maneira significativa nas reflexões sobre o conjunto de transformações do Estado e do Direito, impedindo de alcançar sua radicalidade.
O neoliberalismo em sua real complexidade não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele tem uma dimensão prescritiva. Trata-se de uma racionalidade (conjunto de discursos, práticas e dispositivos) que faz da lógica do mercado uma lógica normativa, regendo desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade humana. Por meio da generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação, avança como uma razão constitutiva da existência humana: uma nova razão do mundo. Nesse cenário, deve-se reconhecer que ele “não procura tanto a retirada do Estado e ampliação dos domínios da acumulação do capitalismo quanto à transformação da ação pública.” [3]
A principal instituição político-jurídica da modernidade, neste contexto, vem passando por uma mutação empresarial, que se faz com a transposição das normas do mercado para o setor público, processo no qual se “subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia.” [4]
Deste modo, o “Estado neoliberal é “governamentalizado”, no sentido de que os novos dispositivos institucionais que o distinguem, visam criar situações de concorrência, introduzir lógicas de escolha, desenvolver medidas de desempenho, cujo efeito é modificar a conduta dos indivíduos, mudar sua relação com as instituições e, mais precisamente, transformá-los em consumidores e empreendedores.”[5]
Vale destacar, que tal processo é dinamizado na esteira de câmbios significativos da estrutura do Estado de Direito, especialmente, em sua característica da supremacia da lei no cenário da regulação, princípio fundante da estrutura de governo per legis e sub legis.
Como nos alerta Benoit Frydman, em sua obra “O fim do Estado de Direito: governar por standards e indicadores”, observamos, no atual contexto, a lógica empresarial, sem substituir às regras do direito e de processo, sobrepondo-se a elas para cumprir os objetivos de racionalização administrativa, impondo-se às formas clássicas do Estado de Direito sob o pretexto de reforçar sua eficiência.[6]
Assim, confirma-se a perspectiva de “governança-management”, na qual num plano da internormatividade (concorrência regulatória) promove-se a potencialização da força normativa das normas de gestão “que depois de terem sido por muito tempo auxiliares das regras jurídicas, encarregadas das medidas técnicas e dos detalhes, tornaram presentes instrumentos de pilotagem do próprio direito.”[7]
Nesse sentido, pode-se acrescentar que: “Le management n’est pas, en dépit du modeste costume dans lequel il s’est présenté souvent jusqu’ici, une simple technique, une collection de recettes. C’est une nouvelle logique, un ensemble organisé de dispositifs stratégiques, qui a la vocation et peut-être la puissance de réguler l’ensemble des comportements, par le recours à des normes et à des instruments radicalement différents des règles et des procédures juridiques. En d’autres termes, le management pourrait constituer un « équivalent fonctionnel » du droit pour reprendre en l’élargissant un concept des comparatistes”[8]
O Rule of Law, deste modo, vai sendo sucedido por um modelo de “governo” no qual a sustentação dos atos do poder é conferida pelo respeito à standars e indicadores administrativos e não mais aos conteúdos tradicionais do Estado de Direito estabelecidos por meio de procedimentos legitimados democraticamente – se pensarmos sob a fórmula da democracia representativa.
Assim, no seio do mathematical turn,[9] dá-se o aprofundamento da mercadorização da instituição pública.
Nesta esteira, a eficiência neoliberal vem contribuindo para uma redefinição da justiça, a qual se torna um produto desta “imensa empresa de serviços” que está se transformando o Estado. Tudo isso desde um “modelo de compreensão” que apresenta o efeito perverso de reduzir toda avaliação por aquilo que é mensurável pelo tempo e pelo dinheiro.
Nesta onda pode-se dizer que o modelo neoliberal “substitui traiçoeiramente aos princípios da justiça clássica, por outros critérios como a eficiência, as vantagens comparativas ou a segurança. Nessa competição entre o direito e a eficiência, essa última tem uma vantagem certa, haja vista que ela é metamoral. Como consequência, ela conserva seu próprio princípio de justiça: o princípio do interesse ou da utilidade se apresenta como o princípio normativo supremo, como o único natural, o único possível, o único evidente. Ele se impõe às sociedades e aos homens e deve se tornar o guia da reforma geral das instituições. [...] A racionalidade neoliberal instala, inevitavelmente, uma laicização das instituições, revaloradas com uma racionalidade que lhe é totalmente estranha – a concorrência e o empreendimento.”[10]
Sob o olhar de Hinkelammert pode-se ver esse fenômeno a partir de um quadro de critérios que orientam, em termos axiológicos, o mundo das relações modernas, quais sejam, valores da competitividade, da eficiência, da racionalização e funcionalização dos processos institucionais e técnicos: os valores da ética do mercado. Diretrizes que marcam uma racionalidade reduzida à dimensão econômica que se “han impuesto en nuestra sociedad actual con su estrategia de globalización como nunca antes en ninguna sociedad humana, inclusive el período capitalista anterior”.[11] Aquilo que pode ser sintetizado como valor do cálculo de utilidade própria, que parte do pressuposto de monetarização de todos os espaços da vida, no qual tudo é transformado em objeto – tudo é reduzido a um preço. Tal cálculo surge no interior da contabilidade empresarial onde impera uma visão do mundo como mecanismo de funcionamento: a empresa e seu cálculo de custos e benefícios.[12]
Nesse contexto, todas as instituições são mecanismos de funcionamento por aperfeiçoar. Não apenas a empresa, mas o Estado, a família, a Igreja, também todos os indivíduos em suas relações: todos calculam suas possibilidades de viver em termos de custo benefício.
Assim, são resignificados o Estado e o Direito e o próprio Estado de Direito, pelo discurso da gestão empresarial pautado por uma visão formal, abstrata e hedonista da eficiência, que despreza qualquer elemento que transcende a esfera econômica e monetária.[13]
Aqui, substitui-se as regras (do Direito) pelas normas (da Técnica) ou, pelo menos, põe-se um novo problema: o das fontes do Direito, suas relações e co-implicações.
E, o Estado de Direito? Ora, o Estado de Direito...
Notas e Referências:
[1] Falar em “fim” do Estado de Direito, nestes dias e neste País, poderia nos levar a questionar acerca das rupturas que têm sido promovidas, inclusive por clássicas instituições de garantia, nas fórmulas e formas deste, porém este não será o foco aqui, quando, por outro viés, vamos pô-lo em discussão desde a perspectiva do “confronto”, em uma sociedade neoliberal, entre normas (técnicas) e regras (jurídicas).
[2] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. 2016. p. 15-16
[3] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. 2016. p. 272.
[4] Ibid., p. 274.
[5] ANDRADE, Daniel Pereira. OTA, Nilton Ken. Uma Alternativa ao neoliberalismo. Entrevista com Pierre Dardot e Christian Laval. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. Vol. 27. N.1. 2015. p 288.
[6] FRYDMAN, Benoit. O fim do Estado de Direito: governar por standards e indicadores. Col. Estado & Constituição. n. 17. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p. 72.
[7] Ibid. p. 76.
[8] FRYDMAN. Benoit. Le management comme alternative à la procédure. Disponível em: https://www.google.com.br/#q=Le+management+comme+alternative+%C3%A0+la+proc%C3%A9dure. Acesso em 28 de setembro de 2016.
[9] “On constate une tendance de plus en plus marquée vers la quan-tification du droit et le calcul de sa performance. Nous pensons que cette évolution est si importante qu’on peut l’apparenter à um mathematical turn qui s’inscrirait dans le prolongement des tournants linguistique, interprétatif et historiographique qui ont dominé la théorie et la philosophie du droit au cours des deux derniers siècles. Ce mathematical turn fait appel à plusieurs techniques de recherche parmi lesquelles les méthodologies quantitatives des sciences sociales et les modèles statistiques et économétriques occupent une place cen-trale. Toutefois, il est surtout caractérisé par la montée en puissance de la rationalité mathématique dont nous supposons un développe-ment similaire à celui constaté dans les sciences exactes. AMARILES. Restrepo. The mathematical turn : l’indicateur Rule of Law dans la politique de développement de la Banque Mondiale.” Disponível em: https://www.academia.edu/5751766/The_Mathematical_Turn_Lindicator_Rule_of_Law_dans_la_politique_de_d%C3%A9veloppement_de_la_Banque_Mondiale?auto=download. Acesso em 29 de setembro de 2016.
[10] GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 23.
[11] HIKELAMMERT, Franz. Lo indispensable es inútil: hacia una espiritualidad de la liberación. San José: Editorial Arlekín, 2012. p. 176.
[12] Ibid., p. 186. Como afirma: Este surgimiento de los mecanismos de funcionamiento da al cálculo de utilidad propia una nueva especificación. Surge ahora como cálculo de perfeccionamiento de estos mecanismos y este perfeccionamiento se llama eficiencia. Aparece como cálculo de eficiencia en función del perfeccionamiento del mecanismo de funcionamiento, que opera por medio del cálculo de costo y beneficio. Surgido desde la empresa económica, transforma toda la institucionalidad. (p. 190)(grifamos)
[13] Ibid., p. 190.
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINOS. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
. . Marcelo Oliveira de Moura é Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da UCPEL. Advogado. . .
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