Por Jose Luis Bolzan de Morais e Guilherme Valle Brum - 19/09/2016
Há poucos dias o Supremo Tribunal Federal passou a ser presidido, pela segunda vez, por uma Ministra, no caso Cármen Lúcia Antunes Rocha – a Presidente do povo, como expressa o título da revista Época. Afora este fato, lembrado por muitos meios de comunicação e pelas características pessoais da personagem, poderíamos dizer que se tratava de mais um ato formal de troca no comando da Corte mais alta do Sistema de Justiça brasileiro.
Todavia, alguns fatos chamam a atenção e podem nos levar a interrogar as primeiras atitudes da nova presidência do STF – para além da propalada saudação ao “povo” em seu discurso de posse, de difícil acesso em tempos de internet... -, notadamente o chamamento dos Governadores dos Estados da federação para discutirem questões que estão sob a análise de diversas instâncias do Judiciário do País, “com o objetivo de construir uma agenda que promova a resolução de conflitos federativos e dê respostas concretas a temas que dizem respeito aos interesses do povo e da nação”, como noticia o site do Supremo, visitado em 17 de setembro de 2016.
Na reunião, segundo a mesma fonte, “A ministra Cármen Lúcia afirmou que pretende estimular a resolução desses conflitos por meio da Justiça Restaurativa, de conciliação e da interlocução com os Tribunais de Justiça (TJs) estaduais.”
Afora a “boa vontade” da Ministra Presidente, em tempos de judicialização do e da política e ativismos – judicial e de outros setores do Sistema de Justiça (vejam-se os nosso “O Estado de Direito não sobrevive com sujeitos mediatizados” e “Bom Governo, Poderes Selvagens e Juristocracia”)[1] –, pode soar estranho que a líder da Corte Suprema se envolva em um debate deste tipo, seja pelo que representa, ou pode representar, como uma espécie de transformação do Judiciário em ambiente de negociação da gestão pública, retirando ou desviando uma atuação que seria mais própria do Chefe do Executivo da União, no caso, seja pelo inusitado de estar-se patrocinando uma espécie de “administrativização” – deixando de lado seu papel de garante da ordem, muito peculiar ao modelo eficientista indicado pelos modelos reformistas patrocinados pelos estudos do Banco Mundial - da própria função de julgar, a qual caracteriza, esta sim, a jurisdição.
É claro que se poderia objetar, desde logo, com o caráter autocompositivo – do tipo mediação ou restauração – pretendido dar ao encontro, como uma espécie de ato inaugural de uma nova forma de agir da jurisdição, ou, por outro viés, de uma tentativa de estabelecer um mecanismo de gestão dialógica interfuncional dos conflitos que envolvem o poder público em suas diversas esferas.
Chama a atenção, entretanto, o inegável interesse da cidadania em muitos, se não em todos, os temas tratados. Exemplificativamente, pode-se mencionar o tema do “direito à saúde” que tem sido assunto preferencial do Judiciário pátrio. Sem entrarmos no mérito das decisões que conferem, muitas vezes, medicamentos ou tratamentos experimentais, em decisões dificilmente universalizáveis, soa no mínimo inusitado que, no ambiente do STF, se promova uma espécie de accountability do tema.
Veja-se que, na referida reunião, “entre os temas debatidos, tiveram destaque questões relacionadas ao pacto federativo, que trata das competências tributárias dos entes da federação, guerra fiscal, que envolve centenas de processo em curso no Supremo, bem como o pagamento de precatórios e a judicialização da saúde, especialmente em relação a medicamentos de alto custo”.
E, no particular, “(...) vários governadores destacaram a necessidade de estabelecer uma limitação criteriosa em relação a essas despesas. A presidente do STF informou que irá propor aos presidentes dos TJs a criação de comitês formados por médicos para auxiliar os juízes a julgarem ações dessa natureza.”
Ora, por mais que se pretenda pensar um novo modus operandi para o tratamento de conflitos no âmbito da jurisdição e que seja preciso, inevitável até, buscarem-se novas metodologias para enfrentar o esgotamento do modelo adversarial, não pode passar despercebido o fato de a Presidente do STF, no seu primeiro ato oficial à frente da Corte, se apresentar como gestora da crise por que passam os entes federativos, não apenas por conta de suas dificuldades próprias como também por aquelas advindas pela opção pela judicialização de questões sensíveis e, muito, pelo “acolhimento” dado pelo magistratura, com decisões que, muitas vezes, ultrapassam os limites hermenêuticos admitidos pelo texto normativo em questão – e o tema do direito à saúde é exemplificativo disso.
Estranhamente – ou, quem sabe, não – os Chefes dos Executivos estaduais presentes saíram elogiando a iniciativa da magistrada e na expectativa de retornarem brevemente, pois “a ministra Cármen Lúcia acertou com os governadores um novo encontro para daqui a dois meses com o objetivo de propor sugestões para os temas apresentados, além de informar quais ações de interesses dos estados serão pautadas para o Plenário do STF nos próximos seis meses.”
O que fica disto? Quais as conclusões que se podem tirar desta “reunião”? Estamos presenciando novos tempos, em que o destino dos governadores em Brasília não mais será o Palácio do Planalto, mas a sede do STF? Está havendo uma transferência da gestão do Estado brasileiro do Executivo para o Judiciário? A “função de garantia” por excelência transmutou-se em “função de governo”, para usarmos os termos de Luigi Ferrajoli? Onde fica o caráter contramajoritário da jurisdição? Está legitimada a presidência do STF para ”gerir” conflitos da federação como se fosse uma arena política em sentido estrito – aliás como já antecipado pelo Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento das ações das dívidas estaduais no mesmo STF?
E o cidadão a quem recorre, uma vez que, ao que parece, temas de seu interesse serão objeto de um “ajuste prévio” no âmbito da jurisdição? E não apenas quanto à gestão interna à jurisdição, mas quanto ao conteúdo dos temas envolvidos.
É claro, contudo, que poderíamos enxergar a temática por um outro ponto de vista. Seria possível sustentarmos que a Ministra Cármen Lúcia iniciou seu mandato trabalhando para conquistar um tipo de legitimidade que chamaríamos, com Pierre Rosanvallon, de “legitimidade por proximidade”. Essa forma de legitimação relaciona-se à atitude do poder perante o povo, tendo seu foco no comportamento das autoridades. Vincula-se à ideia de justiça procedimental, ou seja, à forma como os cidadãos são tratados pelo Estado em um sentido processual, de conduta. Exige transparência e informação por parte do poder público, tendo por premissa o fato de que uma decisão estatal é percebida como muito menos legítima se não for aberta e previamente discutida em um marco público.[2]
A presidência do STF, portanto, ao aproximar-se dos governadores de Estado, sugerindo medidas de “composição amigável” dos interesses em conflito, estaria manifestando uma espécie de abertura dialógica e, com isso, caminhando para a aquisição de uma “legitimidade por proximidade”. É um “colocar-se à disposição”, um “fomentar a participação ativa do jurisdicionado” para a composição dos embates federativos. Em outras palavras, uma forma de tentar proceder com “equidade” no trato das partes, no caso, pessoas políticas subnacionais. E, com isso, ter sua autoridade aceita, percebida como legítima (se considerarmos o entusiasmo declarado por alguns governadores na ocasião, parece que esses efeitos começaram a ser gerados). Mas, saliente-se, uma “proximidade” apenas com os executivos estaduais e não com os cidadãos, o que coloca em dúvida a mesma estratégia, acaso questionado a partir da posição dos cidadãos-jurisdicionados que poriam em dúvida as decisões, esfacelando a legitimação acaso obtida em face dos governos estaduais.
De todo modo, ainda que elevada, dotada de bons propósitos a intenção da Ministra, isso não elide o “não dito”, “o simbólico” que subjaz à situação sob enfoque. Pensemos em um dos assuntos tratados: a chamada “guerra fiscal”, a batalha fratricida travada entre os Estados-membros no tocante aos benefícios tributários envolvendo o ICMS concedidos à revelia do CONFAZ. Há quanto tempo os cidadãos almejam uma reforma tributária em que um dos pontos seja precisamente a mudança nesse tributo? O movimento natural não deveria, portanto, partir do Congresso Nacional, por meio do exercício do poder constituinte (na realidade “constituído”) derivado, a fim de mudar as regras constitucionais do ICMS?
Cremos ser possível encontrar, nesse cenário, um sinal de uma profunda crise estrutural por que pode estar passando o Estado brasileiro. A partir do momento em que em pautas como guerra fiscal, precatórios, segurança pública e direito à saúde encontram no Poder Judiciário uma espécie de “foro deliberativo natural”, como fica o espaço reservado para a política e seus correlatos enfrentamentos? Não nos esqueçamos que, como nos alerta Campilongo,[3] é a atividade legislativa que pode e deve produzir decisões programantes, porquanto sua relação com o conflito político é quase imediata. A atividade judicial, por outro lado, somente deveria produzir decisões programadas.
Veja-se que o legislador está submetido a critérios de justificação de suas decisões distintos daqueles a que se submete o juiz, prestando contas de suas opções ao eleitorado e fundamentando seus atos segundo o código governo/oposição. Os cidadãos, desse modo, podem sancionar seus erros com a reprovação nas urnas. Por isso, “o staff que assessora os corpos legislativos e administrativos é bastante amplo e profissionalmente diferenciado. As pressões de lobbies, movimentos sociais e grupos de 'advocacia' de interesses públicos junto ao sistema político […] são vistos como legítimos”. Em relação ao Poder Judiciário, porém, toda a pressão exercida sobre seus membros – à margem do direito de ação das partes processuais – é comumente vista como ilegítima, sendo censurada pela deontologia e códigos de ética dos magistrados e demais profissões jurídicas.[4]
Daí que a iniciativa da Ministra Cármen Lúcia, se, por um lado, pode ser considerada louvável por perseguir a legitimação de sua autoridade pela proximidade – com as dúvidas aqui suscitadas - , por outro, pode estar desvelando um problema grave por que passa o Estado brasileiro, que é a naturalização da jurisdição constitucional como arena privilegiada para a disputa política, contrariamente à sua destinação genética, que é servir ao povo como “função de garantia”, essencialmente contramajoritária.
Faltou um convidado para a festa: o “povo”!
Notas e Referências:
[1] Ambos publicados na coluna “Sconfinato” do sítio virtual “Empório do Direito”. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/category/sconfinato/. Acesso em 17.9.2016.
[2] ROSANVALLON, Pierre. La legitimidad democrática. Imparcialidad, reflexividad y proximidad. Trad. Heber Cardoso. Barcelona: Paidós, 2010, p. 234-236, 271-272, 279-281, 287-290.
[3] CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 101-119.
[4] Ibidem.
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.. .
. Guilherme Valle Brum é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/DF). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Pesquisador do GP e Rede de Pesquisa CNPQ “Estado e Constituição”. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. .
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