REPE&C 27 – Gotham City, Brasil!

11/07/2016

Por Jose Luis Bolzan de Morais – 11/07/2016

O IPM mudou o núcleo da investigação e, muito mais ainda, alterou a própria vida política do pais. Jamais, em toda a História brasileira, um grupo reduzido de pessoas concentrou tanto poder e se transformou abertamente e às claras numa espécie de poder paralelo.... Nenhuma regra ou norma legal pôde controlar o inquérito, que se tornou um ente autônomo nascido da audácia e apoiado pelas armas....

(Passagem de Flávio Tavares, em “O dia em que Getúlio matou Allende e outras novelas do poder”, acerca da “República do Galeão” que se instaurou logo após o conhecido “atentado da rua Toneleros” em 1954, p. 76)

“Paris, Texas” é um filme de Win Wenders, de 1984, do qual tomamos emprestado, aqui, o título para, parafraseando-o, utilizá-lo, metaforicamente, sugerindo que esta cidade fictícia – Gotham – da saga Batman poderia ser em qualquer lugar, inclusive estar situada no Brasil – ou até confundir-se com ele todo – e, a partir disso, traçar um paralelo com o que acontece nestes “tristes trópicos” e uma leitura possível daquilo que vimos experimentando nos dias atuais.

Na série Gotham, da Netflix, em sua primeira temporada, mostra-se o “nascimento” do personagem Batman, em sua adolescência, a partir do assassinato dos pais de Bruce Wayne, sua formação acompanhada pelo mordomo sempre presente. Mas, também, Gotham mostra uma cidade tomada pelo crime, das mais diversas espécies e complexidade, o surgimento dos personagens que acompanharão as aventuras deste super-herói, bem como da corrupção que grassa em todos os setores e níveis da administração da cidade, da justiça e das relações que se estabelecem entre os poderes públicos e esta criminalidade avassaladora. Até mesmo o incorruptível policial James Gordon, no início da carreira, se utiliza do jovem Pinguim, em formação, para conseguir chegar à solução de alguns casos sob sua investigação.

Poderíamos, então, dizer que Gotham pode servir de paródia para o Brasil? Talvez sim. E, pior, em todas as suas dimensões. Desde a criminalidade, passando pela corrupção sistêmica, até a “construção” do(s) super-herói(s) tupiniquim(ns).

E, claro, talvez tudo isso não seja uma experiência apenas contemporânea por estes “pagos”. A criminalidade, pontual ou sistêmica, assim como a corrupção fazem parte de nossa história. Talvez o novo esteja “do outro lado” desta história, do lado das autoridades públicas, em especial daquelas que formam o que vou identificar aqui como o sistema policial-ministerial-judiciário – para englobar todos aqueles envolvidos, a seu modo e competência, nos mecanismos, instrumentos e instâncias.

De tempos para cá, substituímos as manchetes dos telejornais matutinos. Agora, eles não são abertos com a tradicional manchete, tão cara ao neoliberalismo: “os mercados amanhecerem nervosos...”. Agora, a cada dia, o que vemos e ouvimos é: “nova fase da operação lava-jato prende....conduz coercitivamente...apreende...”.

É claro, os “mercados” – como se subjetividades fossem –  continuam a sofrer os influxos e humores de tudo e todos, reais ou artificiais. Mas, agora, compartilham os espaços midiáticos com as ações policiais-ministeriais-judiciárias que acontecem diariamente.

O que chama a atenção é que estamos vivendo um período no qual as atenções se voltam para os desdobramentos destas diversas operações que cotidianamente preenchem a grade diária de programação dos meios de comunicação de massa no País.

Para muitos, estas serão a redenção das mazelas disseminadas na Administração Púbica brasileira, nas relações entre público e privado, nas práticas empresariais. Entre outras consequências, leniência, delação premiada etc viraram as novas palavras da moda, assim como a idolatria de atores do sistema policial-ministerial-judiciário ocupou até mesmo o carnaval. Da mesma forma que a gestão pública parece – e padece – cada vez mais depender do que decidem os Tribunais, do que lhes demanda o Ministério Público, das opiniões dos agentes ministeriais ou, até mesmo, dos membros dos Tribunais de Contas, que, a cada dia, ganham maior espaço, em atribuições “conquistadas”, muitas vezes, sem previsão constitucional ou mesmo contra a Carta Política.

O que tudo isso pode nos indicar? Vivemos em uma espécie de Gotham ampliada onde o crime, a corrupção, bandidos e heróis compartilham os espaços, públicos e privados? E, assistimos extasiados o surgimento de “super- heróis” que resgataram esta Gotham imaginária.

O tema da corrupção, agora exposto em suas entranhas – algumas delas – , não é novo no Brasil. Aliás, este não é um problema apenas brasileiro, ou de “republiquetas de banana”, como se tem visto, embora tenha se tornado um dos grandes temas mundiais, ao lado do terrorismo e das migrações. E, veja-se que todos têm sido tratados a partir de paradigmas similares.

Assim como outras tantas práticas, a corrupção faz um jogo de gato e rato com os mecanismos de controle. Ou seja: criamos sistemas de controle e, paralelamente, constroem-se meios de burlá-los ou de evitá-los.

Aliás, esta parece ser a sina “Severina” do Direito, em especial daquela parte do Direito que pretende coibir condutas consideradas desviantes. E, se assim é, uma primeira conclusão: não esperemos o fim da corrupção, assim como não tivemos o fim dos homicídios, sequestros etc... por meio do Direito. Mas, isso não significa a sua imprestabilidade, por óbvio, porém dentro de seus limites. E, não só para a tentativa de coibir ou punir, mas também, e prioritariamente, para garantir que tudo isso se dê “dentro” do próprio Direito..

Dito em outro modo, o nível correcional do Direito tem limites, e não se pode abrir mão das garantias para viabilizar uma hiper eficiência da punição.

Mas, o que temos aqui, em similaridade à Gotham de Batman, Gordon e de todos os delinquentes consolidados ou em formação, é uma experiência, também não inédita.

Assim como nos idos de 1950 a crise do governo Vargas fez emergir a “República do Galeão”, nos anos que correm temos a nomeada “República de Curitiba”, a qual, embora não se restrinja a uma localidade específica, nem detenha a exclusividade como exemplo, nos permite pensar não só acerca das práticas de governo/gestão/governança ou o que seja, mas nos confronta com a interrogação de sabermos se este é o caminho adequado.

Tal qual a República do Galeão, que usurpou a ordem institucional instalando-se como uma “república paralela”, nos dizeres de Flavio Tavares, para a qual, segundo o autor, tudo valia porque o “objetivo era político”... experimentamos hoje, em nome do combate à corrupção – e veja-se que naquela época esta era também uma pauta presente – uma espécie de reprodução trágica, agora não por militares da aeronáutica, mas por setores policiais-ministeriais-judiciários. Talvez não com o mesmo estilo,  com a mesma truculência nem com as mesmas armas.

Agora, usa-se a própria institucionalidade, fraudada por um ativismo que tem servido para, midiaticamente, promover o combate à corrupção e, ao mesmo tempo, forjar o surgimento de super-heróis que, tal qual aqueles dos quadrinhos, são os proprietários da lei e da ordem.

Gotham é aqui! E, ficamos com uma grande interrogação: o que fazer diante desse quadro de ruptura institucional alicerçado em um apoio midiático, conduzido por super-heróis? Será o Direito capaz de suportar tal combate?


José Luis Bolzan de Morais. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .


Imagem Ilustrativa do Post: Tikkakoski, Gotham City // Foto de: Jaro Larnos // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jlarnos/2595824124

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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