Por Jose Luis Bolzan de Morais e Guilherme Vale Brum - 07/06/2016
O livro de Pierre Rosanvallon Le bon gouvernement (Paris: Seuil. 2015) – que encerra um ciclo de trabalhos dedicados às mutações da democracia contemporânea, como diz o próprio autor - já inicia com uma frase contundente e com clara pretensão de universalização (ou seja, o autor fala a partir da França, mas pretende fornecer uma teoria de aplicação universal às democracias ocidentais): “pode-se dizer que, apesar de democráticos, nossos regimes não são governados democraticamente”. O problema, segundo o autor, é que a democracia sempre foi pensada como “regime”, o que levou a que se desconsiderasse o fato de que ela é “um modo de governo específico” (testemunho dessa constatação seria a circunstância de que as palavras “regime” e “governo” confundiram-se historicamente).
A tese exposta na obra baseia-se na constatação de que houve um enorme crescimento de importância do Poder Executivo – uma “presidencialização”, mesmo naqueles países que adotam o parlamentarismo como regime de governo, em especial pela utilização da eleição como mecanismo de acesso aos cargos - em escala mundial, gerando uma mutação global das democracias, independentemente de suas respectivas traduções constitucionais. Nessa linha, a hipótese do livro é a de que, por não termos analisado com a clareza necessária essa mudança de paradigma, custa-nos apreender as verdadeiras raízes do desencanto contemporâneo e, por conseguinte, determinar as condições de um novo progresso democrático.
A ideia geral, nesse ponto, é a de que ainda hoje estaríamos apostando em uma espécie de “mais do mesmo”, pretendendo aperfeiçoar os regimes democráticos reforçando características que historicamente foram sendo conquistadas e consideradas valiosas, quais sejam: uma maior democratização das eleições (do direito de votar e ser votado), uma melhoria no caráter representativo dos eleitos (que deveriam representar a voz de todos os segmentos sociais) e mecanismos de “legislação direta pelo povo” (democracia participativa). Em todos esses casos, estão sendo considerados os seguintes fatores como os mais importantes para o aprofundamento democrático: a natureza e a qualidade da relação entre representantes e representados, assim como a possibilidade de intervenção direta dos cidadãos.
Para Rosanvallon, contudo, na era de predominância do Poder Executivo, a chave da questão democrática está nas condições de controle que sobre ele (o Poder Executivo) exerça a sociedade. A grande aposta passa a ser, então, a relação entre governantes e governados (e não mais a relação entre representantes e representados).
Nesse cenário, o autor refere que a eleição presidencial instaura uma mera democracia de autorização, não se outorgando ao Chefe da Nação outra coisa a não ser uma permissão para governar. A eleição, portanto, apenas legitima a posição institucional do governante – como legitimidade de acesso de que trata em outra obra: La Légitimité Démocratique: impartialité, réflexivité, proximité (2008) -, não lhe conferindo qualidade alguma que informe o que nomeia como legitimidade de exercício. Por isso, haveria a necessidade de “prolongar-se” a democracia de autorização com uma espécie de democracia de exercício, cujo objetivo seria determinar as qualidades esperadas dos governantes e as regras que organizam suas relações com os governados.
Segundo Rosanvallon, as patologias mortíferas e destrutivas da democracia – os totalitarismos do século XX, entre os mais expressivos – foram patologias da representação. Tratavam-se de poderes que, ao encarnar “à perfeição a sociedade”, pretendiam superar as aporias estruturantes do sistema representativo e seu caráter inacabado. Essa adequação justificava seu absolutismo (parece evidente aqui a influência de Lefort no pensamento do autor). E essas antigas patologias permaneceriam até hoje, mas teriam mudado de natureza: derivariam agora da redução da democracia governamental (do presidencialismo, notadamente) ao mero procedimento de autorização.
O objetivo principal do livro é, nesse cenário, definir as características essenciais desta democracia de exercício, que deve ser desenvolvida com transparência, em rede e de forma aberta, formando, assim, “um bom governo”. Eis os seus dois grandes eixos constitutivos:
1. Os chamados princípios que devem reger as relações dos governados com os governantes:
1.1. A legibilidade, que pode ser considerada uma espécie de avaliação, mas que não pode ser resumida apenas à visibilidade do poder ou ao acesso à informação, devendo, antes de tudo, englobar a produção de uma capacidade ativa de interpretação e compreensão dos fatos políticos, permitindo que os cidadãos tomem conta por si mesmos do funcionamento das instituições públicas, pondo em pauta uma percepção simplista, e.g., das formas de transparência assentadas apenas na preocupa;áo com a “visibilidade” das práticas de governo – o que pode ser confrontado, no Brasil, com a legislação que trata do tema, bem como por um tour pelos sites dos diversos entes governamentais, inclusive, pela própria contradição que encerram, daqueles dos órgãos do Sistema de Justiça e daqueles de controle da gestão pública.
1.2. A responsabilidade, que privilegia a idéia do compromisso do governante com o passado – prestando contas – e com o futuro – atuando para a transformação social - um tanto autoexplicativo, releva a ideia do que o autor denomina responsabilidade-justificação - a ideia de que a democracia é um regime que obriga o poder a explicar-se, conformando uma relação entre um ator e um foro. Nessa relação, o primeiro teria a obrigação de explicar e justificar sua conduta e os integrantes do segundo (do foro) poderiam fazer perguntas e emitir juízos a respeito das consequências pelas quais o ator deveria responder.
1.3. A responsividade corresponde à expressão inglesa responsiveness, que, por sua vez, remete ao ideal de uma democracia de expressão e interação, passível de ligar de modo permanente e dinâmico governantes e governados, com vistas a tornar esses últimos um verdadeiro “povo soberano”, por meio do engendramento de fórmulas institucionais que possibilitem uma resposta melhor e mais rápida às expectativas dos cidadãos. Rosanvallon sugere, dentre outras medidas, o que chama de “momentos representativos” para o exame de questões particulares, as quais se desenvolveriam em forma de conferências celebradas para examinar, à distância da lógica partidária – há que ter presente que, para o autor, os partidos políticos perdem significado, orbitando em torno à função executiva -, problemas sociais relevantes. As conferências, guiadas por uma “autoridade de debate democrático”, proporiam formas de abordagem e resolução desses problemas sem a presença do governo. Ao depois, o governo seria convidado a manifestar-se publicamente sobre os trabalhos dessas conferências.
Esses três princípios formam o que o autor chama de democracia de apropriação, dando sentido à ideia de que o poder não seja outra coisa que não uma relação e, portanto, de que são as características dessa mesma relação as que definem a diferença entre uma situação de dominação e a de uma simples distinção funcional, dentro da qual se pode desenvolver uma forma de apropriação cidadã do poder.
2. O segundo eixo constitutivo de uma democracia de exercício refere-se às qualidades pessoais requeridas para que se possa ser “um bom governante”. São características que, longe de traduzirem uma idealização de todos os talentos e de todas as virtudes, servem para o estabelecimento de uma relação de confiança entre governantes e governados, fundando assim uma democracia de confiança, definida esta (a confiança) como uma das “instituições invisíveis” cuja vitalidade possui uma importância decisiva na era da personalização das democracias. Rosanvallon examina duas dessas qualidades pessoais dos governantes: a “integridade” e o “falar veraz”.
Vale referir, a essa altura, uma outra interessante aposta do autor. Para ele esses princípios de bom governo – capazes de gerar uma democracia de apropriação e uma democracia de confiança – não devem ser aplicados somente ao Poder Executivo em suas diferentes instâncias. Rosanvallon é textual ao referir que “também estão destinados a reger o conjunto das instituições não eletivas que possuem função de regulação (as autoridades independentes), as diversas categorias de magistraturas e todo o universo da função pública”. Cuida-se, com efeito, “de pessoas e instituições que de uma maneira ou outra exercem poderes de mando sobre os outros e, de tal modo, participam de órgãos governamentais”.
Como podemos notar, a preocupação de Rosanvallon é acerca da prática democrática em si, situando-se muito além da representação e do ato eleitoral, questionando não tanto as instituições, mas os comportamentos políticos (a legitimidade democrática como o comportamento democrático de uma instituição). Valeria indagar por fim: quais as implicações desse ponto de vista para o instituto do impeachment brasileiro?
Da leitura desta obra, que, dentro dos seus limites, indica muitas das experiências e vicissitudes experimentadas por nós, emergem, para além de eventuais contradições quanto à “leitura” sugerida, duas interrogações que mereceriam, quem sabe, uma atenção maior.
De uma lado, embora Rosanvallon aponte para a incidência deste modelo de “bom governo” para além da função de governo em sentido estrito, ele não enfrente algo sensível para nós, qual seja, a emergência de uma, se não completa, quase “juristocracia”em nada submetida aos princípios e qualidades da democracia pelo mesmo sugerida, atuando, ainda, sob o que poderíamos nomear como “espaço monárquico”. Num espaço/tempo onde o Sistema de Justiça, ladeado pelo “Sistema de Controle”, dominam a cena política, seria de perguntar quais as condições e possibilidades para que haja uma qualificação democrática a partir, igualmente, da relação “jurisdicionantes”/jurisdicionados(?)
De outro, ao que transparece do texto, para o autor não se vislumbra uma necessária revisão da democracia em um contexto onde, a emergência de “poderes selvagens”- aqueles todos não submetidos aos controles construídos na tradição das democracias constitucionais – e de poderes “para além” do Estado Nacional põem a nú a insuficiência das fórmulas democráticas, mesmo que qualificadas pela relação governante/governado, quando sequer sabe-se quem e de onde partem as “decisões de governo”.
Estas, são questões que merecem nossa atenção, sob pena de mantermo-nos obnubilados pelas formas modernas quando seus marcos clássicos já não funcionam mais.
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
. Guilherme Valle Brum é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/DF). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Pesquisador do GP e Rede de Pesquisa CNPQ “Estado e Constituição”. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. .
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