Por Jose Luis Bolzan de Morais – 17/05/2016
"Ó Pai Zeus! És o mais cruel de todos os deuses! Os homens são tua prole, mas não tens piedade deles, fazendo-os conhecer a dor e as tribulações!"
Homero – Odisseia
Aqueles que me dão a honra de acompanharem esta coluna – Sconfinato – talvez tenham percebido que houve uma parada estratégica. A quinzena passada ela não circulou. Um silêncio reflexivo. Uma “mudez” originária da estupefação diante dos fatos.
Tal interrupção eventual teve, além do assoberbamento de tarefas, um motivo circunstancial: a sequência de eventos que vimos experimentando no Brasil nestes tempos de impeachment e de “governo transitório”– por sua permanência estar condicionada à futura decisão deste procedimento – embora pareça já, como se diz popularmente, “favas contadas” – ou “governo curto”, por ser, se for o caso, um governo de complemento de mandato.
Esta turbulência nos impôs um certo distanciamento para tentarmos, embora presentes nos fatos, irmos avaliando, a partir dos campos que nos interessam em particular e que fundamentam as análises presentes nesta Sconfinato, as circunstâncias e repercussões que se podem apreender de tudo isso.
Muito se tem dito e escrito a respeito. Compartilho muitas das posições críticas que se apresentaram. E, a estas quero fazer coro trazendo algo que me parece relevante ser considerado por todos os que nos dedicamos ao Direito.
Olhando ao redor, percebemos que o “impeachment” a que está sendo submetida a Presidente da República, para além dos “déficits operacionais” e “usos estratégicos” que foram apontados, tem trazido – ou refoçado - para a e na cena jurídica, dois fenômenos relevantes: de um lado, a proemInência e o protagonismo do Sistema de Justiça – em especial, no caso, da Procuradoria-Geral da República, ladeada pela Polícia Federal, e, de outro, mas conectado, do Supremo Tribunal Federal – que tem se colocado como instigador – via a nomeada Operação Lava Jato, a nossa “mãos limpas” tupiniquim – ou como regulador e afiançador das fórmulas a serem adotadas ao longo do mesmo.
Tudo isso tem sido objeto de um sem número de análises e conjecturas. Nos úlitmos dias, alguns de nossos acadêmicos têm chamado a atenção para isso, bem como muitos analistas externos apontam para o ineditismo deste protagonismo.
Como já tive oportunidade de chamar a atenção – veja o nosso REPE&C 20 – nossos “atores” – e a palavra “casa” bem com a situação – do Sistema têm se esmerado em promover entrevistas coletivas ou individuais dando conta das diversas operações, das ações propostas, até mesmo de votos antecipadamente anunciados ou de exortações políitico-morais acerca de fatos sob suas responsabilidades.
Nisso tudo chama a atenção, o caráter midiático e a postura não convencional de tais atores. O ostracismo deu lugar à exibição e, como dito em outro momento, não em nome de um Sistema que se populariza, indo ao encontro do povo – como na canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, afinal Todo artista tem de ir aonde o povo está -, como uma Justiça Popular, mas como uma Justiça Pop – ver REPE&C 20 – que se apresenta sob holofotes, propagando não só máximas jurídicas, mas também “conselhos” morais à Nação.
Para além disso, todo esse imbróglio nos faz reconhecer que no encontro entre direito e política o primeiro tem perdido a batalha.
Veja-se, aqui não se está tratando do que se covencionou como judicialização da política, como expressão do recurso ao Sistema de Justiça para resolver conflitos de interesses em torno à direitos sociais – algumas vezes, expresos como desejos individuais - e políticas públicas, em particular. Mas, no sim, da judicialização do político, como a disputa no âmbito da democracia substrada pelo pressuposto do combate à corrupção.
Neste campo, até mesmo em razão do apelo midiático-moral do tema, o que temos visto é o esgarçamento dos limites do Direito frente à moral e, inclusive e conectadamente, frente às práticas políticas.
Dito de outro modo, reconhece-se, aqui, um processo de perda dos limites do Direito em nome de valores morais ou de estratagemas políticos.
O que se observa é, em verdade, um processo de ruptura das fórmulas do Estado de Direito patrocinada por diversos setores, desde os meios de comunicação – que não respondem àquilo que Ferrajoli sugere em seu Poderes Selvagens (veja o REPE&C 21) – até as diversas instituições do Sistema de Justiça, em especial aquelas que seriam responsáveis por o “guardarem” – a jurisidição constitucional, em particular, passando pelos atores políticos em sentido estrito que, contrariados em seus interesses ou operando em perspectiva futura, se apropriam de fórmulas de controle da política – no caso, de um instrumento clássico do presidencialismo brasileiro (Impeachment), usando-as para atenderem interesses os mais variados.
Neste quadro, o combate à corrupção tem servido como mote para por-se em pauta muito daquilo que se construiu ao longo da experiência do constitucionalismo moderno como projeto civilizatório característico de um certo projeto de sociedade, com todos os vínculos, por óbvio, que tal modelo carrega. Tem-se ouvido, inclusive, falar em uso abusivo de direitos e garantias e, não sem outro motivo, o nosso Supremo Tribunal Federal, ao arrepio do texto expresso da “Constituição Cidadã”, decidiu recentemente, que a presunção da inocência não mais se mantém até o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas restringe-se à proferida em segundo grau de jurisdição, o que foi reinterpretado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em caso envolvendo o foro privilegiado de um Deputado Distrital, que como consequência deste, tal se daria de imediato com a decisão do mesmo tribunal.
Em tal ambiente, temos a discussão em torno ao processo de impeachment referendada pelo Parlamento brasileiro que, ao que parece, busca responder a uma questão de governabilidade e não de responsabilidade – como próprio deste procedimento -, ao mesmo tempo que se adapta à velocidade das sociedades contemporâneas – afinal, no ritmo da “pós-modernidade” o tempo de um mandato parece muito longo. Utiliza-se da legitimidade de exercício (P. Rosnavalon) – ante a perda da maioria parlamentar – como instrumento para contrastar a leigitimidade de acesso. A próxima eleição parece muito distante. Uma “certa” economia – aquela de cassino, na expressão do Prof. Avelãs Nunes - não pode esperar. A urgência toma o lugar do procedimento democrático.
Diante de tudo isso, a pergunta que emerge é a de saber, afinal, qual é o papel do Direito e de seus atores em tal contexto? No encontro entre direito, moral e política, qual o papel a ser desempenhado pelos primeiros?
Pelo que se tem visto, estamos perdendo a disputa, ajudados por todos aqueles que, apesar de suas responsabilidades aderem à primeira hora ao canto das sereias ao invés de amarrarem-se mais fortemente aos mastros da embarcação, neste caso, figurativamente representada pelo velho e frágil, nunca concretizado Estado de Direito.
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
Imagem Ilustrativa do Post: Manifestant pro-impeachment, axio monumental Brasilia, Brasil // Foto de: krishna naudin // Sem alterações
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