Por Jose Luis Bolzan de Morais - 21/03/2016
O problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam...
Gilles Deleuze
A perplexidade tem tomado conta do País. Experimentamos tempos sombrios. Nosso mais longo período de estabilidade democrática estremece. O desrespeito às regras mínimas do Estado de Direito, presentes naquela que nasceu como “Constituição Cidadã”, na exortação do falecido Dep. Ulisses Guimarães, parece não ter limites. Afinal, os próprios limites constitucionais se perderam ou foram “entregues” a um Sistema de Justiça que, pelo que se tem visto e lido, pode ganhar o epíteto “POP”. E quando nomeio Sistema de Justiça quero englobar todos aqueles que “atuam” – uma palavra bem apropriada – para a “realização do Direito”.
Sim, temos um “Judiciário POP”. E não se confunda isso com um Judiciário popular, acessível à população ou assegurador daquilo que a cidadania lhe entregou para “guardar” (Veja nosso texto REPE&C 19) – a Constituição. Temos também um “Ministério Público POP”. E não se confunda com um Parquet garantista, mas, cada vez mais, persecutório.
Temos, sim, atores do Sistema de Justiça que se assumem como se fossem, em realidade, “pop star”. Estrelas pop. Desfez-se a autocontenção[1] como uma característica exigida de seus membros. O que mais se vê são “estrelas pop” trafegando – lépidas e faceiras – em meio às câmeras de tevês ou microfones de rádios ou de jornalistas. Emitem-se os mais assustadores comentários sobre quais devem ser os destinos do País, como se deve agir, etc... A moral e a ética fazem parte de seus patrimônios pessoais e servem como padrões de “medição” dos temas que lhes são dados a tratar. Anuncia-se, via satélite, antecipadamente, as respostas para aquelas que poderão ser as questões que se lhes porão para decidir.
Esqueceu-se do Estado de Direito? As Constituições – afinal, como disse Paulo Bonavides, ontem os códigos, hoje as Constituições – já não “constituem” – como insiste o Lenio Streck – mas se transformam em textos interpretados e, muitas vezes, reescritos por estes senhores detentores da reserva moral do País. Tudo via satélite. Ao vivo e a cores....
O que aconteceu com o Estado de Direito? Afinal, ele está aí. No texto constitucional. No conjunto de garantias ali presentes. Nos direitos fundamentais reconhecidos e integrantes de nosso catálogo. Nos Tratados Internacionais, pois, bem ou mal, temos uma Carta “aberta”....
Muito já se disse sobre o momento atual. Vários campos de análise foram repassados. A estes queremos sugerir outro: o Estado de Direito não combina com “sujeitos mediatizados”.
Para isso vamos dialogar com as novas figuras de subjetividade sugeridas por M. Hardt e A. Negri, tomadas emprestadas, aqui, de seu “Declaração. Isto não é um manifesto”. Para eles, operou-se uma transformação social e antropológica que produziu novos sujeitos: (1)o endividado a partir da hegemonia das finanças e dos bancos – a “dívida exerce um poder moral cujas armas principais são a responsabilidade e a culpa”, dizem -; (2)o securitizado como consequência do regime de segurança e do estado de exceção permanente, em busca constante de proteção em razão do medo a que está submetido – “atualmente, ..., a vigilância total é cada vez mais a condição geral da sociedade”; (3)o representado, produto da corrupção da democracia – “o representado atua na sociedade destituído de inteligência e manipulado pela imbecilidade ensurdecedora do circo midiático, sofrendo a opacidade da informação como ausência de virtude e resgistrando apenas a transparência cínica do poder da riqueza, tornada mais vulgar pela falta de responsabilidade”.
A partir destas três figuras de subjetividade já se pode ter algumas pistas das difculdades que cercam o Estado de Direito, pelo menos tomando-se-o como referência “positiva” de civilidade. Como construir e fazer valer um Estado de Direito com sujeitos submetidos ao massacre da dívida, ao medo - real ou construído – e à falácia da representação política.
Já aqui teríamos elementos suficientes para temermos pelas condições e possibilidades para que tal sujeito – posto que não se pode, de regra, segmentá-lo, sendo, ao mesmo tempo, endividado, securitizado e representado – atue como elemento de suporte do e para este Estado de Direito, com todas as suas limitações.
Nos dias atuais convive-se com rupturas institucionais, muitas vezes, “legitimadas” por tais sujeitos “assujeitados” por estas figuras. Se, de um lado, o Estado de Direito se vê confrontado com poderes – incluindo, aqui, os poderes selvagens de que fala L. Ferrajoli - que lhe condicionam, por outro, por vezes é o próprio Estado que se utiliza destas subjetividades para agir em contradição aos limites e garantias que conferem identidade ao mesmo. Veja-se a edição das legislações fundamentadas na “luta contra o terror” ao redor do mundo, inclusive agora, por aqui, com a votação pelo Parlamento do PL nº 2016/2015 – agora Lei 13206/16 -, com o agravante de esta ser uma legislação que, ao mesmo tempo que criminaliza movimentos e movimentações sociais, responde à ingerência de instituições externas[2].
Se, pontualmente, não bastasse a figura do representado, que, por si só, aponta para a fragilização do Estado de Direito, mistificado em sua falta de acesso à ação política eficaz, como afirmam Hardt e Negri, conjugando-o com a quarta figura de subjetividade – (4)o mediatizado – percebemos o quanto a fórmula Estado de Direito se enfraquece.
Para Hardt e Negri, “na figura do mediatizado reside a inteligência humana mistificada e despotencializada.” O sujeito mediatizado é aquele resultante de uma sociedade que prima pelo excesso. Excesso que lhes absorvendo impede que tenham algo a dizer, muito embora estejam constantemente convocados. É um sujeito “pleno de informação morta, sufocando...poderes de criar informação viva”.
Assim, como esperar que este sujeito - para além de endividado, securitizado e representado - mediatizado, seja capaz ou esteja apto a funcionar como um ator eficaz em um ambiente de garantias próprio do Estado de Direito.
Ao contrário, o mediatizado permite-se ser enganado, acreditando naquilo que se lhes apresentam como verdades. Acreditam porque não são capazes de “criar informação viva”. Isto faz lembrar L.A.Warat que, nos idos dos 1990 já alertava para o excesso que informação que, em realidade, significada a ausência de informação...
São estes sujeitos que temos visto por aí, bradando verdades que lhes são entregues pasteurizadas. Incapazes de perceber que estão apenas reproduzindo “informação morta”.
Ora, diante deste quadro, começa a fazer sentido o que vem ocorrendo no Brasil. Como não fomos capazes de por em pauta, neste campo em particular, entre outras questões, o debate em torno da produção e divulgação de informações – a discussão, e.g., de uma Lei de Meios – experimentamos, hoje, os resultados da incompatibilidade do Estado de Direito com esta figura de subjetividade, o mediatizado. Este sujeito, assujeitado, não consegue sequer perceber que com sua visão mistificada está contribuindo para a desconstrução daquilo que, ao final da última experiência autoritária, resultou da luta cidadã em torno da reconstrução democrática do País, o Estado Constitucional alicerçado nas mais tradicionais conquistas “liberais” – isso mesmo – conjugadas em torno dos direitos e das garantias fundamentais.
O Estado Democrático de Direito, inscrito no art. 1º da CRFB/88, que precisa de atores capazes de se reconhecerem enquanto “figuras de poder”, ficou refém destas novas “figuras de subjetividade”. E, também por isso, todos os “pops” têm liberdade para agir, em nome e com o beneplácito daqueles que sequer sabem o que são...
Com sujeitos mediatizados não se faz um Estado de Direito!
Notas e Referências:
[1] Veja-se o que disse o Min. Teori Zavascki, em recente solenidade em Ribeirão Preto/SP: O juiz resolve crises do cumprimento da lei. O princípio da imparcialidade pressupõe uma série de outros pré-requisitos. Supõe, por exemplo, que seja discreto, que tenha prudência, que não se deixe contaminar pelos holofotes e se manifeste no processo depois de ouvir as duas partes....
[2] Sobre esse tema, ver nosso, com Elias Jacob Neto, aqui publicado: Liberté, egalité, fraternité et ... surveillé: o leviatã contra-ataca
. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
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