REPE&C 17 – Em tempos de folia: L.A.W. e a carnavalização!

05/02/2016

Por Jose Luis Bolzan de Morais e Mariana Rodrigues Veras - 05/02/2015

(...)Mas é carnaval, não me diga mais quem é você Amanhã tudo volta ao normal, deixa a festa acabar, deixa o barco correr Deixa o dia raiar que hoje eu sou da maneira que você me quer O que você pedir eu lhe dou, seja você quem for Seja o que Deus quiser Chico Buarque – Noite dos Mascarados

O imaginário carnavalesco é repleto de riqueza e diversidade. No carnaval de Veneza, pessoas desfilam elegantemente com suas máascaras, abraçadas por uma luminosidade única. No Rio de Janeiro, as escolas de samba apresentam um cenário majestoso e os blocos de rua fazem a festa do folião. Em Recife, centenas transitam ao som do mais genuíno frevo. Na Bahia, uma multidão acompanha o trio elétrico, uma curiosa invenção de Dodô e Osmar, ou acompanham a passagem dos Filhos de Gandhy quando desfilam com suas vestes brancas e impregnam o cenário de pura magia.

Mas, o carnaval – a carnavalização - é também o mote para repensar a sociedade, o direito e a política.

Esta - a carnavalização - é um tema de inspiração recorrente no pensamento waratiano. Na obra A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos[1] (1985), Luis Alberto Warat (L.A.W.) abordou de diversas formas a ideia da carnavalização inspirado, dentre outros autores, por Mikhail Bakhtin. O livro é considerado o “embrião” da obra Manifesto do Surrealismo Jurídico (1988)[2]. Importantes articulações sobre o tema da carnavalização são tecidas, acolhendo as influências em seu pensamento dos movimentos antropofágico e do surrealista.

Acompanhando as ideias de Bakhtin[3], no carnaval não existem espectadores, mas protagonistas. O carnaval é regido pela “lei” da liberdade, as pessoas vivem plenamente a experiência carnavalesca. Neste sentido, o carnaval não possui palco ou diretor. Todos participam. Nele se supõe a eliminação das barreiras sociais, de idade, de sexo etc.... Desfazem-se os padrões fixos, os lugares previamente estabelecidos. Papéis tradicionais são invertidos. Há uma alternância incessante e a ocupação de lugares múltiplos.

O carnaval, nesta perspectiva, não é um espetáculo – embora às vezes se torne um, perdendo sua dimensão carnavalizada -, trata-se da própria vida, uma vida que não está sendo representada, mas vivida.

Uma de suas características fundamentais é sua relação com um tempo alegre. O que o carnaval abole, notadamente, é a própria hierarquia. Os símbolos carnavalescos são ininterruptamente apropriados por distintos participantes. O carnaval é uma festa de rico simbolismo, a máscara, por exemplo, elemento constante, remete a um processo de dissolução das identidades sociais rígidas, como na letra de Noite dos Mascarados, de Chico Buarque.

A carnavalização waratiana, em uma primeira aproximação, é compreendida como experiência que permite a reconciliação do homem com suas próprias paixões. Um estado de espírito livre.

No livro a Ciência Jurídica e seus Dois Maridos os personagens do romance de Jorge Amado são vislumbrados como metáforas, personagens de fuga. “[...] Dona Flor permite mostrar o imaginário carnavalesco. Vadinho e Teodoro, como Arlequim e Pierrot, refletem-se um no outro, seguindo as leis da ambivalência carnavalesca [...]”[4] e mostram as ambivalências da mesma Ciência Jurídica e, também, da Política.

Neste contexto, a carnavalização constitui a própria linguagem waratiana. Warat reconhece o seu discurso como um discurso polifônico, um discurso atravessado por múltiplas vozes. Barthes – apesar das reticências que aqui poderiam ser colocadas por alguns - é evocado em passagens constantes dos seus escritos[5]. Um texto seria sempre um tecido, uma rede de escrituras em busca de uma ordem carnavalizada de significação. Como diz L.A.W.: “Minha linguagem faz parte de minha versão do mundo. Isto é fundamental. A linguagem carnavalizada é já uma carnavalização do mundo. Não existe distância entre linguagem e mundo. As falas sobre o mundo fazem parte do mundo [...]”[6].

A ideia da carnavalização inspira, no campo da Política, uma reflexão contínua da ordem social democrática, como uma forma social onde o sonho e a fantasia são possíveis. A democracia remetendo à polifonia, à ideia de permanente enlaçamento de uma pluralidade de vozes, aproximando o imaginário democrático do imaginário do carnaval.

Warat enfatiza a inexistência de uma sociedade ordenada e orgânica. Ao contrário, aponta para a necessidade de abertura de espaços para instituição e escuta dos conflitos latentes. “[...] Trata-se então de reconhecer-se que o que impulsiona a produção do discurso democrático é a possibilidade de uma escritura que possa acolher o conflito, a heterogeneidade e a fragmentação dos acontecimentos do mundo (dos atos de sua compreensão e valoração).”[7] Ao contrário, o pensamento autoritário – que tem assombrado até mesmo as tradicionais conquistas demo-constitucionais no âmbito da jurisdição (e não só o Processo Penal, como denunciam aqueles – e não só estes - que mais de perto atuam na dita “Lava-Jato”, como se já não bastasse a irrealização ou a insuficiente realização do projeto constitucional), flerta com monólogos, com a posse de verdades.

Com a metáfora do carnaval Warat explicita que inexiste uma autoridade incontestável, detentora do poder e do saber. Na esfera democrática não existe o detentor do sentido do poder, da lei ou do conhecimento. Inspirando-se nas lições de Lefort, L.A.W. afirma que o saber e o poder não são mais apropriáveis[8].

A ordem social democrática é a aquela que se aproxima do imaginário carnavalizado, sustentando uma ambiência com uma pluralidade de vozes e a necessidade permanente de resistência às dimensões simbólicas autoritárias a partir de uma prática coletiva descentralizada e participada de produção discursiva. A prática simbólica da democracia passa incessantemente pelo confronto com o instituído. Na incessante invenção democrática[9], novas formas de convivência política emergem e recriam os poderes instituídos, sem o silenciamento dos conflitos latentes dos antagonismos sociais.

Mas, há que reconhecer que o totalitarismo e a democracia são formas do acontecer simbólico, e, por vezes, dentro de cenários democráticos camuflam-se lógicas totalitárias, lógicas que preferem os monólogos perenes ao barulho ensurdecedor das ruas gritando Dionísio – como no título de um dos últimos textos waratianos. E, dentro de cenários carnavalescos podem surgir práticas de negação da instância democrática. Esta concepção de democracia como esfera simbólica está comprometida com a instância dos desejos. O desejo acolhendo todas as formas de viver e inventar uma outra sociedade, uma outra percepção de mundo ainda necessária no presente em distintos sentidos, acolhendo a esfera dos afetos, de Eros, reconhecendo os desejos e o amor como uma instância política.

E, portanto, carnavalização faz parte e inspira o projeto constitucional democrático. Assim, tomando emprestados os ensinamentos de L.A.W. é possível fazer a leitura da ordem constitucional como uma ordem polifônica e carnavalizada. E, por isso, a materialização desta esfera constitucional vem eivada por vezes de contradições, torna-se um desafio. Um desafio no acolhimento dos múltiplos desejos.

Isto nos remete para uma leitura alargada do fenômeno jurídico, ao mesmo tempo da busca por uma compreensão dos laços sociais de reconhecimento da esfera da eticidade, o que nos leva à dimensão do ensino do Direito e do ato pedagógico entendido como um ato carnavalizado - a possibilidade da carnavalização da própria sala de aula, transgredindo regras fixas. Há possibilidade de aprender onde ninguém ensina unilateralmente, onde ninguém detém em absoluto o discurso legítimo, pois se trata de um aprendizado compartilhado por todos; onde o lúdico tem vez. “Não vacilo em afirmar que o ato lúdico, como o poético, estimula a afetividade permitindo uma grande apologia da diferença. É o momento de recuperação dos desejos.”[10] A dita relação ensino-aprendizagem e os lugares nela postos ganham sentido e significados novos e abertos.[11]

No pensamento waratiano, a reflexão da esfera epistemológica é central, interpelando as condições e possibilidades de produção de um conhecimento incessantemente. Warat procura subverter as ideias do campo epistemológico e, a partir da carnavalização, reflete sobre a necessária mudança capaz de enfrentar o desencanto – epistêmico - das ciências sociais e das estratégias de ensino, na produção do saber. Um saber forjado no campo onde já não resistem antigas certezas. Certezas de um paradigma esgotado.

A imaginação carnavalizada seria capaz de interpelar o próprio imaginário cientificista. “[...]Nessa direção, desideologizar é tomar consciência do caráter mítico e das funções fetichizadas da ideia de unidade do real e univocidade da verdade. Estou falando da carnavalização como estratégia desalienadora [...]”[12], alerta L.A.W.

É certo, existem muitos carnavais em um mesmo carnaval, existe o carnaval de camarote, o carnaval de bloco, o carnaval de salão etc. Um bloco, por vezes, é separado por uma corda real segurada por uma corda humana. Existe na festa a “pipoca”, a pipoca não tem bloco, a pipoca seria uma espécie de flâneur do carnaval, que segue o livre devir. A rua é o espaço genuíno do carnaval, a rua é o espaço de produção coletiva de desejos, significações e alteridade[13]. No carnaval existem belezas e antagonismos.

E, em tempos de folia de Momo, é sempre bom retomar Warat – o grande jurista argentino-brasileiro-baiano – como expressão material de uma carnavalização política e epistemológica, necessária para entendermos estes “tempos de cólera”....


Notas e Referências:

[1] WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos. 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. [2] WARAT, Luis Alberto. Primeiro Manifesto do Surrealismo Jurídico (1988). In: Manifestos para uma ecologia do desejo. São Paulo: Acadêmica, 1990, p.71. [3] BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. [4] WARAT, 2000, p.21. [5] Ibid., p.87. [6] Ibid., p.160. [7] Ibid., p.103. [8] Ver, nesta mesma coluna: http://emporiododireito.com.br/a-democracia-como-incerteza/ [9] LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Trad. Eliana M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. [10] WARAT, 2000, p.151. [11] Sobre o tema, aqui mesmo: http://emporiododireito.com.br/repec-16-conhecimento-juridico-e-ensino-do-direito/ [12] Id., 1990, p.75. [13] WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e Cartografia. Trad. e Org. Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Editora Lu   men Juris, 2010.


Mariana Rodrigues Veras. Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB). Professora do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Membro da REPE&C. .


José Luis Bolzan de Morais

. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

 

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