Até julho de 2010, quando da edição da Medida Provisória 497/10 (MP 497/10), que veio a ser convertida na Lei 12.350/10, receber um precatório judicial por servidor público, de modo geral, significava receber menos do que a metade do valor apurado. Isso porque, em regra, pagava-se 20% a título de honorários; 27,5% de imposto de renda e 11% de contribuição previdenciária – quase 60% de descontos.
O objeto deste artigo está atrelado ao imposto de renda que incidia naquelas ocasiões e que veio a ser alterada pelo diploma legal antes mencionado. Muitas vezes, no passado, cometiam-se injustiças. E algumas injustiças se perpetuam até os dias atuais.
Para desenvolver o raciocínio jurídico, faz-se necessária uma ilustração. Considere-se que num determinado setor de uma repartição pública, os servidores que lá estão recebem, mensalmente, R$ 1.000,00. São dez funcionários. Constata-se uma falha no pagamento desses servidores, pois a remuneração deveria ser de R$ 1.350,00. Há uma defasagem mensal, pois, de R$ 350,00. O ano é 2008 e o erro no pagamento se perpetuará até dezembro de 2009. Tanto um valor (R$ 1.000,00) quanto outro (R$ 1.350,00) estariam dentro da faixa de isenção de imposto de renda da época (R$ 1.372,81 em 2008 e R$ 1.434,59 em 2009).
Os servidores dividiram-se em dois grupos de cinco, procuraram o mesmo advogado e iniciaram a mesma ação judicial, na mesma data, para pleitear as diferenças remuneratórias que lhe são devidas. Em dezembro de 2009, o primeiro grupo ganha sua ação e recebe o respectivo valor, historicamente, de janeiro de 2008 a dezembro de 2009, com 13º salário, que alcançou R$ 9.100,00. Esta quantia já está acima da maior faixa da alíquota do imposto de renda da época (R$ 3.582,01 em dezembro de 2009) e será tributada, grosso modo, pela alíquota de 27,5%, que, após a parcela a deduzir, resulta em R$ 1.839,56 de imposto de renda a ser recolhido pelo contribuinte.
Note-se, todavia, que se o pagamento houvesse sido realizado nos momentos adequados (mês a mês), não teria ocorrido qualquer tributação pelo imposto de renda, pois se estaria dentro da faixa de isenção mensal – e isso é o que ficou denominado, pela jurisprudência, como “regime de competência” (o pagamento mensal) em contrapartida ao recebimento de uma só vez, por decisão judicial, denominado de “regime de caixa”. Em regra, quando os jurisdicionados recebiam suas diferenças salariais de forma acumulada (pelo “regime de caixa”), recolhiam muito mais tributos do que, de fato, deveriam ter recolhido. No exemplo citado acima, houve a retenção de R$ 1.839,59 indevidamente, com fundamento no art. 12 da Lei 7.713/88.
Essa retenção a maior levou centenas de milhares de contribuintes novamente ao Poder Judiciário, com o intuito de repetir esse tributo, sobretudo com lastro nos princípios – com conteúdo axiológico de regra – da isonomia tributária (art. 150, II, da Constituição Federal – CF/88) e da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, da CF/88). E os contribuintes obtiveram sucesso em suas demandas, em todas as Cortes do país, inclusive no Superior Tribunal de Justiça – STJ e no Supremo Tribunal Federal – STF. A vitória foi tão retumbante em favor dos contribuintes que o Poder Público se viu compelido a editar a MP 497/10, na qual “interpretou” a jurisprudência existente e explicitou uma sistemática para tributar as “Rendas Recebidas Acumuladamente” – RRAs sem gerar as distorções mencionadas acima, conforme se depreende da sua exposição de motivos:
“48. O disposto no art. 20 [que virou o art. 12-A da Lei 7.713/88] decorre do fato do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisões reiteradas, manter entendimento de que na apuração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física incidente sobre rendimentos recebidos acumuladamente devem ser levadas em consideração as tabelas e alíquotas das épocas próprias a que se referem tais rendimentos, devendo o cálculo ser mensal e não global.
[...]
51. A proposta visa estabelecer forma de tributação mais justa para os rendimentos do trabalho e aposentadoria, pensão, transferência para a reserva remunerada ou reforma, pagos pela Previdência Social, quando recebidos acumuladamente.
52. Trata-se da tributação de pessoa física que não recebeu o rendimento à época própria, recebendo em atraso o pagamento relativo a vários períodos. Nos termos do art. 12 da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, esses rendimentos seriam tributados no mês do recebimento mediante a aplicação da tabela mensal, o que muitas vezes resulta em um imposto de renda muito superior àquele que seria devido caso o rendimento fosse pago no tempo devido.
53. O imposto será calculado sobre o montante dos rendimentos pagos, mediante a utilização de tabela progressiva resultante da multiplicação da quantidade de meses a que se refiram os rendimentos recebidos acumuladamente pelos valores constantes da tabela progressiva mensal correspondente ao mês do recebimento ou crédito.”
Em função disso, o diploma legal incluiu na Lei 7.713/88 o art. 12-A e seus parágrafos, cuja redação atual, para o que importa neste texto, é:
“Art. 12-A. Os rendimentos recebidos acumuladamente e submetidos à incidência do imposto sobre a renda com base na tabela progressiva, quando correspondentes a anos-calendário anteriores ao do recebimento, serão tributados exclusivamente na fonte, no mês do recebimento ou crédito, em separado dos demais rendimentos recebidos no mês.
§ 1º O imposto será retido pela pessoa física ou jurídica obrigada ao pagamento ou pela instituição financeira depositária do crédito e calculado sobre o montante dos rendimentos pagos, mediante a utilização de tabela progressiva resultante da multiplicação da quantidade de meses a que se refiram os rendimentos pelos valores constantes da tabela progressiva mensal correspondente ao mês do recebimento ou crédito.
[...]
§ 7º Os rendimentos de que trata o caput, recebidos entre 1º de janeiro de 2010 e o dia anterior ao de publicação da Lei resultante da conversão da Medida Provisória no 497, de 27 de julho de 2010, poderão ser tributados na forma deste artigo, devendo ser informados na Declaração de Ajuste Anual referente ao ano-calendário de 2010.”
O dispositivo legal criado, de fato, soluciona a questão das rendas acumuladas, porém não de forma satisfatória.
Voltemos à ilustração: foram dois grupos de servidores. O primeiro recebeu o que lhe era devido em dezembro de 2009 e se viu compelido a recolher o tributo indevido (os R$ 1.839,59). O segundo grupo, que se sentiu “azarado” por demorar um pouco mais para receber, em fevereiro de 2010, fez valer aquele ditado de que “quem ri por último, ri melhor” e logo percebeu que, na verdade, teve sorte na demora do recebimento. Isso porque, ao receber o que lhe era devido, beneficiou-se da “nova” regra trazida pelo art. 12-A da Lei 7.713/88 e não precisou recolher tributo algum, pois, ao dividir o valor recebido, de R$ 9.100,00, pelas 26 competências (24 meses e 2 décimo-terceiros), encontrou-se R$ 350,00, valor abaixo da faixa de isenção.
O primeiro grupo de servidores não pôde se beneficiar do “reconhecimento” realizado pelo Poder Público, em função do disposto no § 7º colacionado acima, que limitou a retroatividade dos efeitos daquela nova lei, criada em julho de 2010, a janeiro de 2010.
Em outras palavras, os mesmos contribuintes, que receberam idêntica verba, calculada no mesmo período, em função das mesmas razões, mas em momentos distintos, por motivos totalmente alheios a sua vontade, acabaram por ser tributados de maneira diversa.
O caso ilustrado, em proporções muito maiores, e envolvendo valores muito maiores, foi assaz corriqueiro, implicando, não raras vezes, na tributação pela “nova” sistemática de diferenças judiciais bem mais antigas do que outras, sem que estas recebessem o mesmo “benefício” – bastava que um processo demorasse, por qualquer razão, mais do que outro. Não foram poucos os processos iniciados em 2007, 2008, cujas diferenças salariais foram calculadas neste período, que se findaram até dezembro de 2009, e, por outro lado, também não foram poucos os processos que discutiam diferenças salariais da década de 90, cujos pagamentos acabaram por ocorrer depois de janeiro de 2010. Aqueles, com “fatos geradores” mais recentes, foram tributados pela maior alíquota, enquanto estes, em sua maioria, com “fatos geradores” bem mais antigos, ficaram “isentos” de tributação.
Ao “reconhecer o direito” dos contribuintes retroativamente limitado a janeiro de 2010, o Poder Público cometeu nova violação do princípio da isonomia tributária, pois potencializou a tributação distinta de contribuintes que estavam em situação idêntica, beneficiários de verbas calculadas no mesmo período, e apenas pagas em momentos distintos, normalmente por fatores alheios à própria vontade (varas judiciais mais lentas, recursos protelatórios, advogados mais ou menos ágeis, etc.).
Se o intuito da nova lei foi o de “interpretar” ou “regular” as decisões judiciais sobre a matéria e tornar a “tributação mais justa”, conforme explicitado na exposição de motivos colacionada antes, a hipótese se enquadraria no disposto do art. 106, I, do Código Tributário Nacional – CTN, aplicando-se a nova lei “interpretativa”, que estava em consonância com a jurisprudência pátria, para todos os casos não prescritos, e não apenas para aqueles posteriores a janeiro de 2010. Afinal de contas, poderia o Poder Público reconhecer tributação equivocada limitada em marco arbitrário? Por que não permitir a correção (“a tributação mais justa”) para todos os créditos tributários que ainda não estivessem prescritos?
A tese chegou a ser acolhida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no sentido de que a “nova regra”, do art. 12-A, não poderia ficar limitada a janeiro de 2010, mas deveria alcançar todas as situações ainda não prescritas, consoante se pode ver nos autos do processo 5010643-28.2011.404.7200, da Segunda Turma, justamente para se evitar a quebra da isonomia tributária. Todavia, encontra resistência nas Cortes Superiores, sobretudo no Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê no julgamento do Recurso Especial 1.491.939, da Primeira Turma, para quem o “tempo rege o ato” e não poderia haver a retroação da lei para alcançar situações anteriores a sua edição.
Ressalte-se, contudo, que a ação judicial pode ter começado em 2008 ou em 1990, a “nova metodologia” de cálculo será sempre utilizada, tanto para calcular um período retroativo de 3 ou 20 anos, desde que o seu pagamento tenha ocorrido após janeiro de 2010. Por que motivo, portanto, não poderia ser utilizada para calcular o tributo incidente também sobre aqueles valores já pagos, mas ainda não prescritos, anteriores a janeiro de 2010, se os “fatos geradores” dessas rendas acumuladas (o período no qual as diferenças foram calculadas) são todos anteriores a janeiro de 2010?
Mais curioso, no entanto, é que a própria lei, no caso, a MP 497/10, determinou sua retroação (de julho de 2010 para janeiro de 2010), o que, por si, já deita por terra a fundamentação jurídica do STJ. A ilegalidade, pois, é a limitação desta retroação, na medida em que se mostra um marco arbitrário e apto a quebrar a necessária isonomia tributária exigida pela Constituição Federal, conforme foi visto no exemplo que ilustra este artigo.
Portanto, por todo o exposto, e com fulcro no Princípio da Isonomia Tributária e no disposto no art. 106, I, do CTN, acredita-se que é plenamente viável a utilização da metodologia de cálculo criada pela MP 497/10 (convertida na Lei 12.350/10) inclusive para aquelas RRAs recebidas em data anterior a janeiro de 2010, e cujo suposto indébito seja objeto de ação judicial de repetição, especialmente em função do seu caráter estritamente interpretativo, com o intuito de “tornar a tributação mais justa”, e porquanto a própria sistemática do cálculo pressupõe sua retroação.
Imagem Ilustrativa do Post: budget - human resources - paperwork - office // Foto de: just works // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143906391@N07/28163316692
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode