RELAÇÕES NEGOCIAIS ENVOLVENDO DADOS PESSOAIS, BOA-FÉ OBJETIVA E ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

21/10/2020

Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira

O regime jurídico de enfoque específico do tratamento de dados pessoais é marcado pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).[1] Em vigor a partir de 18 de setembro de 2020, a LGPD, desde a sua anterior publicação, têm suscitado intensas discussões a respeito de conceitos jurídicos indeterminados havidos no âmbito dos requisitos para o tratamento de dados pessoais, inclusive dados sensíveis; da natureza da responsabilidade civil e respectivo ressarcimento de danos por parte dos agentes de tratamento; dos padrões de segurança, boas práticas e governança em privacidade; da estrutura, efetivo funcionamento e espectro de regulação da Agência Nacional de Proteção de Dados.

Enquanto tais dimensões de proteção de direitos fundamentais de liberdade, de privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade ainda desafiam questionamentos, talvez caiba lançar luzes sobre as orientações legais direcionadas à disciplina dos comportamentos firmados para conformarem o tratamento de dados pessoais.

O objetivo do presente ensaio, portanto, parece ser antecedente aos embates apontados, na medida em que pretende promover reflexões sobre o papel da boa-fé para as relações negociais envolvendo dados pessoais, valendo-se, para tanto, do recurso a algumas perspectivas da análise econômica do direito.

No Direito Civil e, mais recentemente, no Direito Processual Civil, a boa-fé é vista como princípio geral. A boa-fé objetiva tem a si reconhecidas funções que costumam se relacionar com dispositivos legais previstos no Código Civil.[2] Dessa feita, tem-se, sobretudo a partir do art. 113, a função interpretativa, segundo a qual os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. A função de controle encontra eco na disposição do art. 187, uma vez em que a boa-fé, ao lado do fim econômico ou social e dos bons costumes, delimita a licitude do exercício do direito. Ademais, juntamente com a probidade, a boa-fé, pelo art. 422, desempenha o papel de promover, nos contratos, a integração de deveres de conduta, ditos anexos, que comandam o comportamento pautado em padrões ético-jurídicos.

            A boa-fé apresenta-se, na LGPD, como de observância necessária para o tratamento de dados, ao lado dos demais princípios da finalidade, da adequação, da necessidade, do livre acesso, da qualidade dos dados, da transparência, da segurança, da prevenção, da não discriminação, da responsabilização e prestação de contas. Com efeito, a LGPD define o conteúdo deôntico mínimo desses  princípios, que, de certo modo, refletem repercussões das funções da boa-fé objetiva, na proporção em que há alusões a propósitos legítimos, devidamente esclarecidos, proporcionais e não excessivos, que garantam a consulta e o acesso gratuito e facilitado; bem como a prevenção da ocorrência de danos. O tratamento de dados pessoais deve ocorrer em conformidade com finalidade bem delimitada (vedados os fins discriminatórios ilícitos ou abusivos), com relevo à sua exatidão, clareza e segurança.

Partindo-se de algumas perspectivas da análise econômica do direito, busca-se, com a boa-fé no campo negocial, evitar o oportunismo, que é o comportamento de um dos contratantes que, por astúcia ou força, tenta obter para si vantagem na repartição dos ganhos conjuntos do contrato, em detrimento do outro contratante.[3]

O negócio jurídico deve, em regra, gerar ganhos para todas as partes envolvidas, algo que poderia se aproximar da caracterização do ganho de Pareto. Em outras palavras, não há razão de contratar se a pessoa não buscar uma situação melhor que a que estava anteriormente. Uma mudança socioeconômica é considerada eficiente quando o novo cenário produz um produto superior ao status quo ante, sem que ocorra perdas para nenhum dos atores socioeconômicos envolvidos.[4] É possível dizer que há uma melhora de Pareto quando pelo menos um agente auferir ganhos sem que outros apresentem perdas.[5]

Se da relação contratual uma das partes sofre perda, e não apenas um ganho aquém do esperado, o contrato não reflete um ganho de Pareto, de modo que tal troca não mais pode ser vista como avanço do bem-estar social. Portanto, a ação oportunista mostra-se tentadora em no campo individual e isolado, mas é apta a perturbar o interesse geral.

Os agentes racionais, ao contratarem, tomam, em contrapartida, medidas para prevenir o risco de oportunismo. Em resposta a tais precauções os potenciais oportunistas aumentam sua sutileza, o que, por seu turno, exige fiscalização mais intensa pelas eventuais vítimas. Tudo isso representa aumento dos custos de transação e, consequentemente, redução das trocas.[6] Verifica-se, assim, que as precauções aumentam os custos associados ao contrato e podem impedir a sua conclusão que, a princípio, seria vantajosa.

A fim de diminuir os referidos custos de transação e de combater o oportunismo, a boa-fé no Direito Contratual mostra-se como ferramenta genérica. O Direito dos Contratos possui, como uma de suas importantes funções, a de promover a boa-fé entre as partes.[7]

Nesse sentido é a lição de Maria Helena Diniz,[8] para quem o princípio da boa-fé deve estar ligado “ao interesse social das relações jurídicas, uma vez que as partes devem agir com lealdade, retidão e probidade, durante as negociações preliminares, a formação, a execução e a extinção do contrato”. Evidencia-se, nessa linha, o papel da boa-fé:

Na fase pré-contratual é invocada para delimitar a liberdade de interromper as negociações. Está subjacente na obrigação de informação sob dois de seus aspectos: o dever de informar a contraparte e o dever de se informar e, na fase pré-contratual, as obrigações de aconselhamento e confidencialidade. Na formação do contrato, a força obrigatória da oferta é analisada como resultante da boa-fé. Na execução do contrato a boa-fé é utilizada para completar o contrato, mas tem também, função de modulação e papel de adaptação e interpretação.[9]

A noção de boa-fé em acepção objetiva, para que cumpra suas funções, deve ser analisada de acordo com critérios intersubjetivos, vale dizer, que não estejam ligados unicamente às percepções individuais, mas que levem em conta também os anseios da sociedade. Uma fórmula adequada é a de que não se leve vantagem da inexperiência ou vulnerabilidade de outrem, para impor-lhe condições draconianas, para lhe subtrair vantagens que não correspondam ao que se lhe entrega na relação contratual. Quem adota esse comportamento age em desacordo com a boa-fé e, em leitura econômica, de forma oportunista. Pela via negativa, age-se de boa-fé conforme se adotem tais padrões ético-normativos de conduta, o que, efetivamente, significa considerar, em alguma medida, as vulnerabilidades da outra parte.

Embora a economia de mercado possa experimentar o aperfeiçoamento por meio do tratamento de dados pessoais, deve-se cuidar para que comportamentos oportunistas não gerem minimização dos ganhos nas trocas. Tão relevante quanto o fornecimento do consentimento pelo titular para autorizar o tratamento de seus dados, conforme previsto no artigo 7º, I, da LGPD, é seu uso de acordo com a ótica da boa-fé. Torna-se, dessarte, imprescindível o cumprimento do dever de cooperação entre os agentes de tratamento e os titulares de dados. Do princípio da boa-fé decorrem as obrigações de adoção de procedimentos de segurança no armazenamento, eliminação e descarte dos dados, para evitar que terceiros tenham acesso a essas informações.

O oportunismo consiste, desse modo, em tirar proveito de outrem, com uma redistribuição pouco equilibrada dos ganhos conjuntos. Ele só é possível por conta de alguma assimetria entre as partes, seja no plano informacional, por monopólio situacional ou temporal, ou uma falha no poder de negociação (força).

No que tange às relações negociais envolvendo dados pessoais, a boa-fé mostra-se, portanto, determinante para o equilíbrio dos interesses envolvidos. Isso porque pode haver temor por parte do titular de dados por não conhecer a fundo quem os solicita, tampouco haver possibilidade de avaliar todos os riscos advindos com o tratamento de dados, que podem ser usados de forma ilícita.

Do exposto, é possível concluir, por meio da análise econômica do instituto da boa-fé nas relações negociais envolvendo dados pessoais, que uma de suas mais importantes repercussões diz respeito à contribuição para disciplinar e, consequentemente, para coibir comportamentos oportunistas. A boa-fé implica confiança, que exerce importante papel na economia de mercado e permite economizar precauções (redução de custos de transação) que seriam adotadas caso ela não existisse.

Firma-se, dessa sorte, verdadeiro padrão de licitude para o tratamento de dados pessoais e para negócios correlatos. As discussões outras, indicadas no introito do ensaio, tendem a ser, prevalentemente, desdobramentos da necessidade de compreensão de ilícitos, seus elementos e seus efeitos. Logo, é mister definir esses marcadores de licitude das condutas (comportamentos), que podem fornecer adequado encaminhamento de soluções às questões que são objeto de embate doutrinário mais acalorado.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Brasília: Diário Oficial da União, 15 ago. 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acesso em: 16 out. 2020.

[2] BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Diário Oficial da União, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 16 out. 2020.

[3] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Sthéphane. Análise Econômica do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

[4] COASE, Ronald Harry. The problem of social cost. In: Journal of Law and Economics, v. 3, n. 1, p. 1-44. Chicago, 1960.

[5] BOTELHO, Martinho Martins. A eficiência e o efeito Kaldor-Hicks: a questão da compensação social. In: Revista de Direito, Economia e Desenvolvimento Sustentável, v.2, n.1, p. 27-45. Brasília, 2016.

[6] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Sthéphane. Análise Econômica do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

[7] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Sthéphane. Análise Econômica do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

[8] DINIZ, Maria Helana. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 195.

[9] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Sthéphane. Análise Econômica do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 426-427 apud LOUSSOUARN, 1992, p. 15.

 

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