Indivíduo: “o ser humano considerado isoladamente na comunidade de que faz parte; cidadão” (Houaiss). Isso é uma invenção da burguesia. O indivíduo, nesse sentido, como ente destacado da indistinção, é uma criação da Revolução Francesa. O sujeito de direitos, ou com direitos, pela tão só condição de estar no mundo, é uma construção intelectual do Iluminismo. Antes, em não sendo nobre nem clérigo, uma pessoa não era um sujeito; era vassalo, plebeu, um nada, um ninguém.
Qual a condição para ser sujeito? Além das afirmações de direitos, que vêm certificando com essa qualidade pessoas que não eram assim consideradas, sujeito, nas relações cotidianas, é o indivíduo com determinação sobre si, responsável e responsabilizável por seus atos. Ou seja, sujeito é o corpo com capacidade de pensar e de se determinar conforme seu pensamento. Se um corpo não tem capacidade de autodeterminar-se, não pode assumir compromissos, não responde por seus gestos. Onde há um sujeito, pois, há deliberação, há vontade.
Os burgueses, quando inventaram e afirmaram a individualidade, fizeram-no para opô-la aos nobres e ao clero. Hoje, com mais ou menos consciência disso, já nascemos indivíduos com uma lista de direitos, o que torna difícil compreender a nossa condição de objeto das condições sociais. É de se registrar que os burgueses iluministas foram traídos pela burguesia positivista e se estabeleceu outra ordem conservadora, com uma hierarquia social que releva a disposição do dinheiro; não obstante, restou um bom avanço.
Um desdobramento da individualidade foi a privacidade. A vida privada é a resguardada da vida pública. Associa-se vida privada à vida íntima, contudo, há uma diferença importante. A vida privada é aquela em que o Estado ou os governos não se devem meter; é aquela esfera da vida cidadã que não deve ser governada, sobre a qual deve incidir o mínimo de especificações legais. Já a vida íntima é o meu mínimo individual, no sentido de absolutamente particular, indevassável.
Nesse espaço meu que só a mim pertence nem mesmo outros indivíduos privados, ainda que de minha relação próxima ou mesmo afetiva, se deveriam imiscuir. Mas creio que a reserva da intimidade, ainda que seja coisa sobre a qual muito se fala, tem sido aviltada. As pessoas não se conservam o seu mínimo íntimo e não se furtam de invadir o âmago existencial de outrem.
Amiga minha, por suas queixas, seria vítima de um casamento machista típico. Mas, vista a coisa com olhos de querer ver, não era bem assim, ou isso não dizia tudo. É verdade que o marido exercitava bisbilhotices: controlava o hodômetro do carro, o celular, o combustível, o perfume, o GPS, o cheiro da calcinha, o lixo do banheiro; usava aplicativos cibernéticos e não descuidava das fofocas. Fazia o que podia (na verdade, não podia; ninguém pode).
Bem, mas, e daí? A mulher seria vítima disso? Nesse caso específico, mais ou menos. Primeiro, ela era bem instruída, trabalhava e tinha renda suficiente para viver com dignidade sem o marido; segundo, filhos não eram empecilho à sua liberdade; terceiro, o que tristemente importa: ela fazia a mesma coisa que o marido, ou pelo menos tentava: xeretava tudo da vida dele, e não era “retribuição”, era exercício de controle “independente”. Como ele, ela pretextava cuidados de amor.
Claro, o marido levava os benefícios de ser “macho” em uma sociedade machista. Então, dados os hábitos dominantes, ele tinha bastante vantagem relativa. Mas, estranhamente, a mulher não se rebelava contra o estado de coisas em si. Ela só lamentava não dispor de igual poder controlador. Despudoradamente, dizia que fazia o mesmo e, se pudesse, faria mais; também e igualmente, escarafunchava coisas e movimentos do marido.
Eis um ambiente compartilhado de invasão de intimidade. Esse casal tem cidadania, tem privacidade, mas cada parte sofre invasão de intimidade pela outra. Tem meios, tem esclarecimento, tem, enfim, condições de abdicar do que faz, mas nunca esteve em pauta revogar o fazê-lo. É como se houvesse um acordo canalha em que as partes se reconhecem na sua canalhice: sabem a indignidade em que vivem, vivem em acordo tácito a vida indigna.
A vida civilizada pede o conceito de pessoalidade. É imperativo que haja um conjunto de qualidades e de condições de viver que defina o humano além do macaco evoluído em bando. Um humano que meramente cumpre os costumes que o encerram é um humano como espécie, mas é pouco humano como cultura. Prender-se como escolha em pequenezes não é existencialmente humano.
Anoto que estou falando de quem pode fazê-lo. Quero, todavia, eu mesmo controverter o que digo. O feminismo não pode ser reduzido a uma noção individualista de empoderamento: “É importante que mulheres sejam financeira e emocionalmente independentes? Com certeza. Mas, considerando que esse estilo de vida é completamente inacessível para a maior parte das mulheres, nem contribui para que se torne acessível, não traz bem coletivo nenhum.
O empoderamento individual ainda não representa uma mudança concreta na violência doméstica e sexual que as mulheres sofrem enquanto grupo (apesar da ‘moda’ do feminismo de mercado, há índices assustadores de agressões a mulheres e o Brasil é destaque em feminicídio); não nos livra de ter os empregos e subempregos menos valorizados; não põe fim à tripla jornada de trabalho; nem, no caso das mulheres negras, faz com que elas deixem de viver em condições mais precárias do que todo o resto da população.
Essas são questões que não se resolvem quando decidimos que queremos ser donas das próprias bucetas ou afirmamos que ninguém manda em nós. São problemas sociais e políticos complexos que só podem ser enfrentados com luta política contínua, dentro e fora das instituições de poder. É isso que o feminismo representa: um movimento antissistêmico. Ou, pelo menos, é o que deveria representar” (Como o Feminismo de Mercado Engana Você, Bruna de Lara, The Intercept Brasil, 15jan19).
A questão é mesmo estrutural. Mas estruturas movem-se, ou são movidas. “A construção de um mundo de todos, mais livre e mais igual, não ocorrerá sem a construção de um mundo de cada um, que diga alguma coisa aos interesses concretos [...] Inobstante o ‘um’ depender do ‘todos’, cabe seleção do que vai ser utilizado para alicerce de si próprio, e exibir os resultados, influenciando pessoas próximas, na tentativa de desencadear processos que levem a formas de viver a vida e vê-la vivida que possam ser nomeadas democracia” (Léo Rosa de Andrade, Liberdade Privada e Ideologia, Acadêmica, 1993).
Na Tradição Ocidental não há humanidade como vida culturalmente construída sem privacidade e intimidade (um mínimo pessoal). A humanização dos humanos não adveio da repetição de maus hábitos, mas da invenção de modos inteligentes e dignos de viver. Nesta quadra em que as mulheres marcam sua independência, certos comportamentos não se autorizam mais. Restos de machismo, doenças da paixão, o que sejam, algumas atitudes, por quem pode fazê-lo, devem ser remetidas ao lixo da História.
Imagem Ilustrativa do Post: silhouette of a woman // Foto de: Sasha Freemind // Sem alterações
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