Reincidência e vedação da bagatela: é reincidente quem cumpriu pena indecente?

24/06/2015

Por Rosivaldo Toscano Jr. - 24/06/2015

Hoje, o Supremo Tribunal Federal deve enfrentar novamente a questão envolvendo bagatela e reincidência. O caso trata de três condenados pelo furto de dois sabonetes, um par de sandálias e 15 bombons (aqui).

A questão hoje enfrentada pelo STF é o ponto de partida de uma reflexão subjacente ao que lá será discutido. Não se trata nem de saber se a reincidência deve ser considerada ou não na caracterização da bagatela. O instituto da reincidência, em si mesmo, no Brasil, é aceitável?

O presente texto põe na mesa a seguinte questão: se a forma com que é cumprida a pena no Brasil respeita o que a Constituição, os Tratados internacionais que ratificamos e as leis determinam. Parece haver um ponto cego que impede que muitos atores jurídicos questionem se é normativamente adequado considerar reincidente a quem não se oportunizou sequer um anterior cumprimento de pena dentro da legalidade. Quais os efeitos jurídicos negativos de um cumprimento de pena indecente?

Será que podemos aplicar os efeitos negativos da reincidência sem faticidade, alienadamente, desprezando ou abstraindo toda a perversidade da prática penal e penitenciária brasileira, conhecida e reconhecida não só por nós, mas por todos os profissionais que atuam na seara punitiva (aqui incluída também a justiça da infância e da juventude), bem como de todos os organismos internacionais, governamentais ou não, ligados aos direitos humanos? Não seremos coniventes com essa realidade brutal e nem assumiremos uma postura convenientemente formalista e hipócrita.

O Brasil ratificou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (Decreto nº 678/1992), que em seu art. 5º, 6, diz que “As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”. Isso nos obriga normativamente. Ocorre que a execução penal no Brasil se materializa de maneira completamente desumana e violadora dos direitos fundamentais mais básicos. Sendo assim, como ela pode ser fundamento para agravar a pena de quem volta a delinquir?

Se a prisão condenatória, da forma com que é executada no Brasil, assemelha-se a tortura ou a tratamento degradante, não estariam as autoridades do Executivo, incluído aí o Ministério Público, Legislativo e, principalmente, Judiciário, em certa medida, participando de uma tortura em massa? Estamos dando um exemplo de civilização ou barbárie? Ficam aqui os questionamentos.

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ – publicou um livro sobre o sistema penitenciário brasileiro,[1] uma verdadeira e aterradora visão da realidade brasileira – que utilizaremos na análise da lei 7.210/1984, conhecida como a Lei de Execuções Penais – LEP que, mesmo autoritária, pois gestada ainda durante o regime militar ditatorial, ainda assim sequer é cumprida.

Veja-se: determina ela a LEP seu art. 85 o seguinte:

Art. 85. O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade.

Mas na faticidade:

“Nos presídios de Rondônia, a média de ocupação chega a dois presos por vaga e as consequências da superlotação saltam aos olhos. Em algumas casas prisionais, quatro homens vivem onde só poderia estar um. No Pará, a situação é mais grave, já que o déficit de vagas corresponde a 75% da capacidade do sistema.”[2]

“[em Pernambuco] A superlotação é comum no Estado, constatou a força-tarefa do CNJ. No Município de Palmares, a casa prisional abrigava 540 detentos em espaço destinado a 74. Em Igarassu, havia 2.363 detentos no local projetado para 426.”[3]

“[No Piauí] A Casa de Custódia, única unidade do Estado destinada exclusivamente aos detentos provisórios, está superlotada. O estabelecimento abriga de dois a três detentos por vaga, situação que favorece a reincidência criminal.”[4]

“[No Distrito Federal] A capacidade das duas unidades destinadas a presos condenados a cumprir pena em regime fechado está esgotada – 4.433 detentos dividem 3.048 vagas.”[5] “[Em São Paulo] A superlotação supera os cem por cento em diversos centros de detenção provisória. A falta de assistência material na Penitenciária Feminina de Santana, na capital, obriga detentas a improvisar miolo de pão como absorvente íntimo.”[6]

Aliás, em raros casos os estabelecimentos visitados pelos juízes, nas dezenas de mutirões realizados durante os últimos anos, o art. 85 da LEP foi obedecido. Não fosse isso, para se entender o clima e a situação desumana de nossos presídios, o relatório do CNJ assim dispôs sobre a visita ao Rio Grande do Norte – que ilustra bem a realidade brasileira. Na Penitenciária de Alcaçuz, na grande Natal, o relatório descreve com o que os magistrados se depararam:

“Houve uma morte em que um preso, que já matou cinco na unidade, esfaqueou outro preso, decapitou-o e o estripou, espalhando suas vísceras pela cela e ainda comeu parte do fígado da vítima. Uma total selvageria sem controle ou punição.”[7]

Em prosseguimento, diz o livro publicado pelo CNJ, ainda, que

“Embora a legislação brasileira determine a aplicação de medidas socioeducativas a adolescentes que cometeram infrações, em Minas Gerais muitos deles dividem espaço com detentos em presídios comuns com estrutura inadequada até mesmo para adultos. No Mutirão do CNJ, realizado no Estado em 2010, constatou-se que mais de 200 adolescentes estavam nessa situação irregular.”[8]

“No Rio Grande do Sul, as unidades prisionais viraram terreno fértil para a atuação das organizações criminosas. O Estado lida atualmente com o “monstro” que criou ao permitir que facções dominassem o sistema prisional. Quando cruza a porta de um presídio, o novo detento é forçado a trabalhar para a organização a qual está “filiado” e, em troca, recebe o que o Estado não fornece, como segurança e complemento alimentar. A insegurança criada dentro da prisão – laboratório do crime – atravessa muros e torna-se pública."[9]

“Estar preso no Paraná também pode ser uma experiência humilhante. É o caso das 15,8 mil pessoas detidas nas carceragens das delegacias, cadeias públicas ou centros de triagem do Estado. Amontoadas em celas, onde deveriam permanecer por no máximo 24 horas, amargam o gélido inverno paranaense coando o café nas próprias meias.”[10]

O sistema ca(os)rcerário brasileiro, via de regra, é um flagrante exemplo de violação dos direitos humanos. Isso sem falar na literal e franca desobediência de quase todos os ditames da LEP.

Em termos de controle de convencionalidade, o Pacto de São José da Costa Rica também é violado em seu art. 5º, 1 (“Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”), 2 (“Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” e 6 (“As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”).

Por fim, a Constituição da República é flagrantemente afrontada quando determina em seu art. 5º, que “III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; “XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; (...) e) cruéis”; “XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”; “XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

O cenário bárbaro acima narrado, porém, é desprezado, velado, esquecido ou ignorado no habitus da prática forense criminal. É posto como natural, no ser-no-mundo do um-juiz submetido ao senso comum teórico. E assim, tal realidade gritante, imersa na cotidianidade, é menosprezada em sua dimensão de violação do Estado Democrático de Direito.

Por que os promotores de justiça pedem e magistrados aplicam a agravante da reincidência ou impossibilitam o reconhecimento da bagatela ou do furto minorado ao reincidente, desconsiderando a flagrante inconstitucionalidade do seu fundamento, no caso, da pena que o reincidente cumpriu ou está cumprindo?

Uma explicação, talvez, esteja no fato de que as responsabilidades legais e éticas individuais terminam por se diluir nas Corporações que formam o Judiciário e o Ministério Público, em que cada ser humano se funcionaliza, transforma-se em uma espécie engrenagem dentro da grande máquina. Assim como Arendt aponta em Eichmann in Jerusalem, é o espaço da burocracia que desumaniza o homem e dessignifica a barbárie.[11]

A atuação individual, muitas vezes acometida de pequenos sacrifícios à ética (muitas vezes nem percebidos), isoladamente não é significativa, mas feita de maneira coletiva e ao longo do tempo (velada pela cotidianidade), produz resultados impactantes. Assim, o certo é que esse verdadeiro exército de “pessoas de bem”, muitas impecavelmente vestidas e educadas, não raras vezes armadas com suas belas canetas Montblanc, sem que alguém se sinta diretamente responsável, contribuem ativamente para o agravamento da situação existente no sistema ca(os)cerário brasileiro.  E no momento em que a reincidência é reconhecida, agrava-se a pena e se aumenta a superlotação, num círculo vicioso vil.

Talvez o pior de tudo seja o fato de que muitos desses atores jurídicos, ao lerem um texto como este, ao invés de uma reflexão, escandalizam-se, põem-se em uma posição defensiva e pessoalizam a crítica. Sentem-se pessoalmente atingidos (talvez porque se identificam, inconscientemente, com o que foi retratado).

Como já dito, se discurso do sistema penal é o de que a prisão se justifica para ressocializar o condenado, quando ele volta a delinquir se trataria de uma falha da pessoa ou do sistema? Ficou bem claro que no Brasil o Estado viola as regras mais básicas de direitos humanos. É ele o causador desse índice de reincidência tão alto que não consegue esconder que o sistema carcerário do Brasil degenera quem a ele é submetido.

O apoio ao egresso é uma piada de mal gosto. Punir o reincidente é novamente ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, pois a ele não foram dadas as condições mínimas de ressocialização. Pelo contrário. Passar pelo sistema penal é afundar num poço profundo, escuro, onde jogamos entulhos e não colocamos escadas para dele sair. Depois ficamos nós do alto bradando contra o pobre diabo porque ele não conseguiu de lá sair para nosso nível.

Nem mesmo os acachapantes resultados oriundos da diversidade do tratamento na Execução Penal, como no exemplo de Minas Gerais, onde o CNJ verificou que nos poucos estabelecimentos em que os presos tinham seus direitos respeitados a reincidência era de apenas 15%, enquanto que entre os que eram submetidos a tratamento desumano o índice foi cinco vezes mais alto, atingindo absurdos 70%.[12]

Mais uma vez deixando de lado a cotidianidade e o formalismo idealizador e alienante que a encobre, vê-se que o sistema penal termina por etiquetar (labelling approach[13] o criminalizado, gerando a chamada delinqüência cíclica [14], isto é, a reincidência contumaz. Cria-se um estigma, principalmente em relação àqueles que entram no ciclo de criminalização e possuem vários processos. Inconscientemente, o senso comum dos juristas é de predisposição à condenação. Maiores são as chances de aplicação de pena àquele indivíduo que se expressa usando gírias que se identificam com o discurso dos “marginais”. Candidatos potenciais também são os mestiços de características afrodescendentes ou índias, os dependentes químicos ou os que possuem um fenótipo de “marginalizado”, como a presença de tatuagens no corpo.

Somente para fechar essa questão, dando-me ainda mais certeza de que penas longas são apenas formas de degenerar ainda mais o criminalizado, informo os seguintes dados do último Censo Penitenciário Nacional[15]: Custo médio de cada vaga: 35 mil reais; custo mensal de um preso: 3,5 salários mínimos; mandados de prisão não cumpridos: 275 mil. Crimes: roubo (33%), furto (18%), homicídio (17%), tráfico (10%), lesão corporal (3%) estupro (3%), atentado violento ao pudor (2%), extorsão (1%). Idade média: 53% com menos de 30 anos (no auge da força de trabalho); ociosos por falta de trabalho dentro do sistema prisional: 55%; sem o 1º grau completo: 87%; pobres: 95%; sem condições financeiras de constituir um advogado: 85%.

Reincidência? Que responda o indivíduo por cada crime que cometeu e não pelo “conjunto da obra” do qual a sociedade termina por ser sua coautora, mas que se põe na posição de julgadora ou de Pilatos. Que essa sociedade extremamente desigual e que menospreza seu próprio sistema carcerário, antes de julgar moralmente o reincidente, tire a toga que cinicamente veste e se sente no banco dos réus de sua consciência. Não há reincidente se ele não cumpriu a pena anterior de maneira decente, e se, ao contrário, a pena o empurrou à criminalidade cíclica e à fossilização.

Já quanto ao Estado e a seus atores jurídicos, é bem mais simples. Por conhecerem a realidade do sistema carcerário, basta que compreendam que todo texto só existe em seu contexto e que são inafastáveis os controles de constitucionalidade e de convencionalidade.


Notas e Referências: 

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário do Estado do Rio Grande do Norte: relatório final 2013. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2013. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?url=http%3A%2F%2Fwww.cnj.jus.br%2Fimages%2Fprogramas%2Fmutirao-carcerario%2Frelatorios%2Frelatorio_final_rn_2013.Pdf. Acesso em 24 jun. 2015.

_________. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf. Acesso em: 24 jun. 2015.

ARENDT, Hanna. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil. New York: Penguin Books, 2006.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf. Acesso em: 24 jun. 2015.

[2] Ibid., p. 11.

[3] Ibid., p. 97.

[4] Ibid., p. 103.

[5] Ibid., p. 115.

[6] Ibid., p. 162.

[7] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário do Estado do Rio Grande do Norte: relatório final 2013. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2013. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?url=http%3A%2F%2Fwww.cnj.jus.br%2Fimages%2Fprogramas%2Fmutirao-carcerario%2Frelatorios%2Frelatorio_final_rn_2013.Pdf. Acesso em 24 jun. 2015.

[8] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf. Acesso em: 24 jun. 2015, p. 161.

[9] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf. Acesso em: 24 jun. 2015, p. 169.

[10] Ibid., p. 169.

[11] “Of course it is important to the political and social sciences that the essence of totalitarian government, and perhaps the nature of every bureaucracy, is to make functionaries and mere cogs in the administrative machinery out of men, and thus to dehumanize them.” (ARENDT, Hanna. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil. New York: Penguin Books, 2006. p. 289).

[12] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf. Acesso em: 24 jun. 2015, p. 151.

[13] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 74.

[14] Processo individual e social pelo qual o criminalizado fica o estigmatizado, não mais conseguindo se readequar à vida em sociedade, retornando ao cárcere.

[15] Ibid., p. 671-674.


ROSIVALDO

Rosivaldo Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.    

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