Coluna Por Supuesto
Como uma espécie de testemunho cruel e fatal da nossa época, a vida humana escoou nas águas do sul do Peloponeso, na tragedia de homens, mulheres e crianças a procura de abrigo e refúgio. Dias depois, a vida humana desaparece em um submarino no Atlântico, quando as vítimas, procuravam conhecer restos de outra tragedia histórica. E, não há como esquecer, que neste 24 de junho, cumpriu-se um ano do episódio trágico de Melilha, quando dezenas de refugiados africanos que intentavam ingressar na Espanha foram assassinados vilmente pela gendarmeria marroquina e a guarda civil espanhola.
À margem de qualquer paralelo que possa ser feito sobre a situação de cada uma das vítimas de tais acontecimentos, se trata de vidas humanas que desaparecem dentro da moldura de um planeta no qual as relações aparecem muito mais marcadas pelo signo do dinheiro e o mercado, que pela solidariedade e a tolerância.
E justo esta semana – no dia 20 de junho - se “comemorou”, mais uma vez, o Dia Internacional dos Refugiados, instituído pela Organização das Nações Unidas. Trata-se, na sua intenção, de uma data que deveria ser de reflexão, de expansão comunicacional e informação sobre o tema da migração forçada. Uma data de especial importância para repensar a formulação de iniciativas que permitam avançar a soluções duradouras, de maneira a atender os casos mais graves de deslocamento forçado no mundo. Uma data na qual deveria se celebrar a coragem daqueles e daquelas que lutam pela sua vida e sua liberdade, abandonando seu lar para partir à procura de segurança, teto e acesso aos direitos mais básicos.
Entretanto, custa pensar em algo a comemorar. Segundo o Relatório Tendencias Globais sobre Deslocamento Forçado publicado a começos deste mês e emanado do Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR -, até o final do 2022 o número de pessoas deslocadas por causa das guerras e violações aos direitos humanos em vários pontos do Planeta atingiu a cifra recorde de 108,4 milhões de pessoas, o que significa um aumento de mais de 19 milhões de pessoas quando comparada à cifra fornecida no Relatório do ano 2022.
Este aumento implica reconhecer que os esforços para efetivar o direito humano à paz, embora constantes, produziram resultados muito limitados; que as postulações jurídicas emanadas dos Acordos Climáticos de Paris do 2015 para combater as mudanças climáticas não conta ainda com a fortaleça suficiente para envidar esforços coletivos que permitam impedir o deslocamento forçado; e que em geral a prevalência dos direitos humanos, exposta incluso como princípio constitucional em 1988 não é, de forma panorâmica, algo tangível a ponto de modificar o espectro de violência que caracteriza as relações na sociedade internacional. Urgem, portanto, ações coletivas e maior empenho dos Estados, grupos econômicos e movimentos sociais para enfrentar o problema e propostas mais audaciosas para uma saída política, dialogada e não militar, aos conflitos na Ucrânia e Sudão, principais fatores de deslocamento.
No contexto regional, ademais do acompanhamento quase tradicional ao deslocamento forçado do conflito colombiano, que implica o apoio às conversações em curso para a chamada Paz Integral proclamada como objetivo do atual governo, se destaca o caso da Venezuela, país cuja situação se agrava pelo sufocamento ocasionado pelas mais de 900 sanções impostas pelos organismos internacionais, que produzem um cenário de extrema vulnerabilidade em várias regiões do país, produzindo-se deslocamentos frequentes, categorizados como migrações de “pessoas com necessidade de proteção internacional”, acolhidas por países vizinhos.
No caso do Brasil, o estado de Roraima, que faz fronteira com a Venezuela, é a porta de entrada de imigrantes e solicitantes de refúgio. Os dados mostram que no ano 2014 houve 122 pedidos de refúgio de nacionais venezuelanos. No 2015 o número atingiu 868 pedidos. No primeiro semestre de 2016, mais 1.247 solicitações foram submetidas a polícia federal.[1]
A primeira atitude no 2017 do Estado brasileiro foi impedir o ingresso de novas ondas de migrantes e incluso houve tentativas de deportação que foram fortemente criticadas. Mas recentemente, vale a pena mencionar a ação civil pública nº 1001365-82.2021.4.01.4200 promovida pela Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal com o objetivo de condenar à União para não adotar medidas de deportação de pessoas migrantes hipervulneráveis, assim reconhecidos pela Força Tarefa Humanitária (Operação Acolhida) em Roraima e no Amazonas, garantindo-lhes a possibilidade de regularização documental e o acesso às demais políticas e estratégias de acolhimento. [2]
Importante lembrar também que no 2017 o ACNUR declarou a situação de Roraima uma emergência de nível 1. A medida caracteriza a necessidade de uma estratégia de preparação para uma provável emergência humanitária, conscientes, porém, da existência de dificuldades tão significativas em termos de recursos, pessoal ou perícia que o Estado de acolhida é incapaz de planejar ou implementar ações para um cenário de alto risco. Entretanto, a ativação desse nível desencadeia o apoio do Escritório Regional, da Divisão de Emergência, Segurança e Abastecimento (DESS no acrônimo em inglês) e de outras divisões. O apoio pode incluir missões e iniciativas de preparação para a obtenção de recursos humanos, financeiros e materiais.[3]
Em tal sentido, através do Conselho Nacional de Imigração foram criados mecanismos de regularização migratória, concedendo aos migrantes e refugiados a autorização de residência temporária. Contudo, os fluxos continuaram intensos, requerendo a instalação de escritórios do ACNUR em Boa Vista, Pacaraíma e Manaus. A participação da sociedade civil, ONGs, igrejas, setor privado e da academia na resposta humanitária elaborada juntamente com o ACNUR foi determinante para avançar na Operação Acolhida e prestar ajuda humanitária a refugiados e migrantes venezuelanos, visando sua interiorização e recolocando-os em outras cidades e estados brasileiros.
No Estado de São Paulo, na cidade de Presidente Prudente, localizada no oeste paulista, o Projeto Semear surgiu em 2020 com intuito de auxiliar famílias refugiadas. Atualmente o projeto tem 48 famílias cadastradas e muitas em situação de espera. Um dos objetivos do Projeto é aumentar os recursos para que seja possível atender mais famílias, através de diversas atividades ligadas à comercialização de alimentos. Além de ofertar aulas de língua portuguesa e cursos sobre os direitos trabalhistas dos imigrantes, auxílio na elaboração de currículo e uma parceria com o balcão de emprego do município que facilita o ingresso da população no mercado de trabalho. O Projeto fornece ainda cesta básica e auxílio financeiro as famílias. Hoje, 9 famílias já conseguem se manter sem o auxílio do projeto. Trata-se, assim, de uma experiência municipal importante que pode servir de espelho para outras cidades da região ou de outras regiões do país.
Observando dados do município paulista encontra-se que contava com 73 pessoas venezuelanas e 32 haitianas registradas em seus cadastros como refugiadas ou requerentes de refúgio. No entanto, tendo em vista o número de famílias do Projeto Semear os dados não são compatíveis, o que se explica pelo fato de que os entes municipais somente registram àqueles que os procuram ou quando as pessoas se encontram em situação de rua.
No campo da aplicação da legislação de acolhida, constante na Lei 9474 de 1997, que determina quem pode ser considerado refugiado, mas também estabelece seus direitos e as obrigações do Estado, começar pela integração de informações e dados que frequentemente possuem organizações humanitárias é um passo necessário para diagnósticos e possibilidades de avances em termos de políticas públicas.
Igualmente, mapear redes de atenção, identificando as necessidades das famílias, permite proceder com atendimentos adequados e articulados com secretarias municipais como as de educação e saúde e, ainda, promover o acesso ao emprego, em parcerias com o próprio Ministério Público do Trabalho.
A importância de projetos municipais é fundamental, porque regularmente não são exploradas as possibilidades de utilizar as competências constitucionais deste ente federativo municipal para afirmar direitos de pessoas refugiadas.
Veja-se que a crise é global, mas por supuesto, os princípios constitucionais da solidariedade e da tolerância, interpretados e efetivados pelos agentes dos entes federativos, podem contribuir de maneira decisiva à inclusão de refugiados e refugiadas, contribuindo assim a efetivação da dignidade.
Notas e referências
[1] 70 anos da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados: (1951-2021) perspectivas de futuro / Organizadores: André de Carvalho Ramos; Gilberto M. A. Rodrigues; Guilherme Assis de Almeida –. Brasília. ACNUR Brasil, 2021. 447 p. 15-22.
[2] https://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/acao-mpf-e-dpu-impedimento-a-deportacao-de-migrantes
[3] Carvalho Ramos, Rodriguez e Assis de Almeida. Op. Cit. p. 15-22.
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