Coordenador: Ricardo Calcini
1. INTRODUÇÃO
A “Reforma Trabalhista” entrará em vigor no dia 11 de novembro de 2017.
Não é nenhuma novidade para os que acompanharam o trâmite legislativo ou já analisaram o conteúdo da Lei 13.467/2017 que, sob o pretexto de “modernizar as relações de trabalho”, foram implementadas diversas modificações visando, em vários aspectos, flexibilizar direitos dos trabalhadores, extinguir direitos laborais, dificultar o acesso à Justiça e diminuir a efetividade da execução trabalhista.
O pacote de alterações, salvo pontuais exceções, teve como escopo inverter a lógica clássica do Direito do Trabalho e inaugurar algo como um “Direito Patronal do Trabalho”.
A partir dessas constatações, natural que variadas disposições estipuladas pela reforma sejam incompatíveis com os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República. Pretende-se, neste artigo, abordar a compatibilidade constitucional do prazo extravagante de “carência” de 45 dias, criado pelo novo artigo 883-A da Consolidação das Leis do Trabalho, para protesto ou inclusão do devedor trabalhista no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas ou em outros cadastros de proteção ao crédito.
2. O DIREITO FUNDAMENTAL À TUTELA EXECUTIVA EFETIVA E CÉLERE
A Constituição Federal de 1988 outorga a todos o amplo Acesso à Jurisdição, por meio da norma contida em seu artigo 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Somado a isso, além de outras garantias decorrentes da cláusula geral do Devido Processo Legal (art. 5º, LIV, CF), temos, ainda, a previsão expressa que assegura “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXVIII, CF).
Sobre o tema, asseverou-se em outra oportunidade (BRUXEL, 2017)[1]:
A “abertura” do sistema processual em prol da concretização dos direitos reconhecidos das partes é medida essencial em um ordenamento que veda a autotutela e garante – em imensa medida impõe - o acesso ao Judiciário para a pacificação de conflitos (art. 5º, XXXV, Constituição Federal). Se o Judiciário possui tal finalidade “pacificadora”, não é aceitável que o legislador, por meio de excessivo protecionismo ao devedor, esvazie ou limite desproporcionalmente a efetividade da execução.
Nesse sentido, percebe-se que do Princípio do Acesso à Justiça deriva o Princípio da Efetividade Jurisdicional. Aprofundando o tema, Schiavi (2017)[2] aponta que, atualmente, a doutrina tem defendido a existência do “direito fundamental à tutela executiva” que seria concretizado, à luz do devido processo legal, por meio da utilização da meios razoáveis, de modo que a obrigação estipulada no título executivo venha a ser fielmente satisfeita, com a entrega do bem da vida ao credor a quem pertence o direito. Já Didier Jr. et al. (2017)[3] explica que o Princípio da Efetividade Jurisdicional decorre do Princípio do Devido Processo Legal (processo devido é processo efetivo) e assegura que os direitos devem ser concretizados e não apenas reconhecidos.
Deduz-se, assim, que, a partir de uma combinação do Princípio da Efetividade da Jurisdição com o Princípio da Razoável Duração do Processo, existe um dever estatal de efetivar, em lapso temporal razoável, o título executivo (judicial ou extrajudicial) que demanda a atuação imperativa da Justiça.
A partir dessa premissa, percebe-se que, assim como o devedor não pode agir deslealmente nem protelar o deslinde da atividade executiva, o Poder Público não pode, por meio de sua atuação legiferante (ou até mesmo judicial), criar prazos excessivamente longos, excluir aprioristicamente meios executivos, estipular procedimentos demasiadamente complexos ou dificultar a efetivação da execução sem que isso encontre sólida justificativa e mantenha estrita proporcionalidade com a efetivação de outros princípios constitucionais processuais (tais como o do Contraditório e da Ampla Defesa). Esse raciocínio é respaldado, ao menos em parte, por Guerra (2003)[4]:
Em face do que já se expôs sobre os direitos fundamentais, nomeadamente sobre o seu regime jurídico próprio e a força especial das normas que os definem, é fácil compreender a importância de se identificar a existência de um direito fundamental à tutela executiva, nos termos acima. É que a exigência de um sistema completo de tutela executiva passa a gozar desse regime especial dos direitos fundamentais, devendo ser concretizado pelos órgãos jurisdicionais, independentemente de qualquer intervenção legislativa.
Apresentado, ainda que sucintamente, o arcabouço jurídico supra, já é possível avançar.
3. A INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIAÇÃO DE UM PRAZO EXTRAVAGANTE DE “CARÊNCIA” PARA PROTESTO OU NEGATIVAÇÃO CADASTRAL DO EXECUTADO
A Lei 13.467/2017 acresceu à CLT o artigo 883-A, cuja redação é a que segue:
A decisão judicial transitada em julgado somente poderá ser levada a protesto, gerar inscrição do nome do executado em órgãos de proteção ao crédito ou no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT), nos termos da lei, depois de transcorrido o prazo de quarenta e cinco dias a contar da citação do executado, se não houver garantia do juízo
A inclusão no BNDT implica na inabilitação da parte executada em certames licitatórios (art. 29, V, da Lei 8.666/1993, com redação dada pela Lei 12.440/2011), enquanto a inscrição nos órgãos de proteção ao crédito (SPC, SERASA etc.) termina por restringir o acesso da devedora a crédito no mercado financeiro. Por sua vez, o protesto consiste em “ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida” (art. 1º da Lei 9.492/1997); em termos práticos, o protesto gera a ampla publicidade da dívida e resulta, por consequência, também na inclusão do devedor nos cadastros dos órgãos de proteção ao crédito, dificultando, segundo Shiavi (2017)[5], a realização de transações comerciais e a obtenção de crédito.
Trata-se, como se pode vislumbrar, de meios de execução indireta com elevado potencial de “estimular” o devedor a adimplir suas obrigações, garantindo a efetividade da execução. Afinal, somente o cumprimento das obrigações exequendas ou, ao menos, a garantia da execução, poderão afastar os efeitos nocivos do protesto ou das “negativações” referidas.
Consoante o art. 517 do Código de Processo Civil, basta que tenha expirado o prazo para pagamento voluntário (no caso do Processo Laboral seriam as 48 horas estipuladas pelo art. 880 da CLT) para que o título possa ser levado a protesto. Por outro lado, o art. 782 do CPC, ao autorizar a inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes, também não estipula nenhuma regra especial, bastando que, nos termos da lógica do sistema processual, a parte tenha sido citada ou intimada para cumprir com as obrigações contidas no título executivo e não tenha tomado nenhuma providência (pagamento ou garantia da execução) no prazo legal.
Porém o legislador reformista resolveu criar um entrave excepcional ao manejo desses instrumentos de coerção indireta no Processo Laboral: o prazo extravagante de “carência” de, pasmem, 45 (quarenta e cinco) dias. Citado ou intimado para pagar ou garantir a execução, o executado trabalhista somente poderá ser protestado ou negativado caso continue em seu estado letárgico por 45 dias.
O Deputado Rogério Marinho assim tentou justificar a inclusão do dispositivo (que originalmente estabelecia em sessenta dias o referido prazo de carência) na primeira versão de seu relatório[6]:
Com esse dispositivo, instituímos um prazo de sessenta dias, contados da citação do executado, para que o seu nome possa ser inscrito em órgãos de proteção ao crédito ou no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas.
Há que se ter em mente que a preocupação fundamental na execução trabalhista deve ser a satisfação da dívida. Contudo, caso o executado venha a ter o seu nome negativado, terá uma restrição automática de acesso a qualquer tipo de crédito, gerando um contrassenso, visto que ele não terá como honrar sua dívida.
A proposta confere ao executado um prazo razoável para que consiga os créditos necessários à satisfação da dívida. Não honrando o compromisso nesse prazo, aí sim poderão ser efetivadas as medidas necessárias para a inscrição do seu nome.
Apesar dos esforços do parlamentar em “disfarçar as evidências”, temos aqui uma verdadeira aberração, sob qualquer ângulo. Um exemplo manifesto de privilégio infundado concedido ao devedor com o único intuito de vilipendiar a Efetividade da Jurisdição (e outros princípios).
Em qualquer caso, seja na formação de um título executivo judicial ou no descumprimento de um título executivo extrajudicial, o devedor sabe, desde o início que, em caso de inadimplemento, poderá se sujeitar a um procedimento executivo. O momento processual solene em que é concedido o prazo derradeiro para pagamento ou garantia da execução não é consubstancia uma novidade espantosa ou uma surpresa.
Por esse motivo que o prazo para pagamento ou garantia da execução de título judicial ou extrajudicial no processo trabalhista é de 48 horas (art. 880 da CLT), enquanto no processo civil é de 15 dias úteis para o cumprimento de sentença (art. 523 do CPC) e de 3 dias úteis para o pagamento da execução de título extrajudicial (art. 829 do CPC).
Faz algum sentido o executado poder, após decorrido o prazo de 48 horas da citação/intimação (art. 880 da CLT), sofrer a expropriação de seu patrimônio (coerção direta), mas não poder ter o título executivo protestado ou ser incluído no BNDT e nos cadastros de inadimplentes (coerção indireta)? Faz algum sentido o executado civil poder, após decorrido o prazo comum da citação/intimação, ter o título executivo protestado ou ser incluído nos cadastros de inadimplentes, enquanto o executado trabalhista (que deve, normalmente, um crédito de natureza alimentar - prioritário e especial, portanto) não? Faz algum sentido a estipulação do prazo excepcional no montante de 45 dias, quando tal lapso é manifestamente desproporcional e não encontra similar em nenhuma normatização processual comum? Faz algum sentido garantir um prazo extravagante ao devedor trabalhista para “tentar arranjar meios de adimplir sua obrigação” quando a dívida já era uma velha conhecida de longas datas? Faz algum sentido impor um tratamento privilegiado ao devedor trabalhista que não encontra similar em nenhuma normatização processual ordinária? Faz algum sentido que um credor comum possa, sem qualquer intervenção judicial, protestar a obrigação inadimplida originada em títulos ou outros documentos de dívida (Lei 9.492/1997) e um credor trabalhista, ao buscar o Judiciário, tenha que se submeter a um período enorme de carência para implementar a mesma medida?
A resposta é não para todas as perguntas.
O regramento previsto no art. 883-A é, portanto, incompatível com os Princípios Constitucionais da Efetividade da Jurisdição e da Razoável Duração do Processo, pois restringe injustificadamente os meios executórios e concede indevidamente prazo extravagante ao executado trabalhista. O novel artigo viola, também, o Princípio Constitucional da Isonomia (art. 5º, caput, Constituição Federal), uma vez que concede tratamento processual mais restritivo e rigoroso a um credor normalmente especial (de crédito de natureza alimentar) do que aquele deferido a um credor comum pela legislação adjetiva ordinária.
A natimorta estipulação deverá, desse modo, ter sua nulidade decretada pelos órgãos jurisdicionais trabalhistas, a fim de que prevaleça a supremacia da Constituição em face dos devaneios do legislador ordinário.
4. CONCLUSÕES
Diante de tudo que foi dito, podemos concluir que:
I) Com a inclusão do art. 883-A à Consolidação das Leis do Trabalho por meio da Lei 13.467/2017, o legislador reformista criou um entrave excepcional, no Processo do Trabalho, ao protesto do título executivo e à inclusão do executado nos cadastros dos órgãos de proteção ao crédito e no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT): a exigência de um prazo extravagante de “carência” de inacreditáveis 45 (quarenta e cinco) dias. Assim, citado ou intimado para pagar ou garantir a execução (art. 880 da CLT), o executado trabalhista somente poderá ser protestado ou negativado caso continue em seu estado letárgico por 45 dias;
II) Entretanto, o regramento previsto no art. 883-A é incompatível com os Princípios Constitucionais da Efetividade da Jurisdição (art. 5º, XXXV e LIV, CF) e da Razoável Duração do Processo (art. 5º, LIV e LXXVIII, CF), pois restringe injustificadamente os meios executórios e concede indevidamente prazo anormal ao executado trabalhista. O novel artigo viola, também, o Princípio Constitucional da Isonomia (art. 5º, caput, CF), uma vez que concede tratamento processual mais restritivo e rigoroso a um credor normalmente especial (de crédito de natureza alimentar) do que aquele deferido a um credor comum pela legislação adjetiva ordinária. A disposição natimorta deverá ter sua nulidade decretada pelos órgãos jurisdicionais trabalhistas, a fim de que prevaleça a supremacia da Constituição em face dos devaneios do legislador ordinário.
[1] BRUXEL, Charles da Costa. Novo CPC (art. 139, IV): revolução na execução trabalhista? Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4934, 3 jan. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/45604>. Acesso em: 2 nov. 2017.
[2] SCHIAVI, Mauro. Execução no Processo do Trabalho: De Acordo com o Novo CPC. 9 ed. Ltr: São Paulo, 2017.
[3] DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. 7 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017, p. 65.
[4] GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 103.
[5] SCHIAVI, Mauro. Execução no Processo do Trabalho: De Acordo com o Novo CPC. 9 ed. Ltr: São Paulo, 2017.
[6] Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=A38DC4506554423E02DE5C5720BD7A01.proposicoesWebExterno1?codteor=1548298&filename=Tramitacao-PL+6787/2016>. Acesso em: 2 nov. 2017.
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