Reforma Trabalhista: a inconstitucionalidade do fim da incorporação da gratificação de função (Súmula 372 do TST) – Por Charles da Costa Bruxel

27/06/2017

Coordenador: Ricardo Calcini 

1. INTRODUÇÃO

A “Reforma Trabalhista” - mormente após a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do parecer do Deputado Federal Rogério Marinho – se transformou em um dos projetos mais “arrojados” de retirada de direitos de que já se ouviu falar. O atual Projeto de Lei da Câmara nº 38/2017, em trâmite acelerado no Senado Federal, desconstrói o Direito Material e Processual Laboral como os conhecemos. Em debates sobre o tema, alguns ironizam que a proposta, caso aprovada, criaria um “Direito Empresarial do Trabalho” ou um “Direito do Empregador”.

Exemplo da tragédia que a “Reforma Trabalhista” representa aos trabalhadores pode ser conferida no documento apresentado ao Senado Federal subscrito por dezessete Ministros do Tribunal Superior do Trabalho (DALAZEN et al., 2017)[1], em artigo de Jorge Luiz Souto Maior (SOUTO MAIOR, 2017)[2] e breve articulado de minha autoria (BRUXEL, 2017)[3].

Dentre inúmeras inconstitucionalidades constantes no texto reformista, o corrente artigo se proporá a, antecipadamente, apreciar uma delas, qual seja, o fim da denominada incorporação da gratificação de função.

2. O DIREITO À INCORPORAÇÃO DA GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO: A SÚMULA 372 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

O Tribunal Superior do Trabalho, por meio do inciso I de sua Súmula nº 372, consolidou:

GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO. SUPRESSÃO OU REDUÇÃO. LIMITES (conversão das Orientações Jurisprudenciais nos 45 e 303 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I - Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira. (ex-OJ nº 45 da SBDI-1 - inserida em 25.11.1996)

(...)

Assim, apesar de ser garantida, pelo art. 468, parágrafo único, da CLT, a possibilidade de a empregadora reverter o ocupante de função de confiança ao cargo de origem, os efeitos pecuniários da gratificação de função recebida por longo período (dez ou mais anos) permanecem caso a reversão ao cargo de origem se dê sem justo motivo.

Mister salientar que esse entendimento, incontestavelmente, já é solidificado desde 1996, ano em que foi editada a Orientação Jurisprudencial nº 45 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-I): “GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO PERCEBIDA POR 10 OU MAIS ANOS. AFASTAMENTO DO CARGO DE CONFIANÇA SEM JUSTO MOTIVO. ESTABILIDADE FINANCEIRA. MANUTENÇÃO DO PAGAMENTO”.

Maurício Godinho Delgado (DELGADO, 2017, p. 1166-1167)[4] ajuda a compreender o fundamento e a história da jurisprudência em torno da matéria:

A jurisprudência, contudo, também sempre buscou encontrar medida de equilíbrio entre a regra permissiva do parágrafo único do art. 468 mencionado e a necessidade de um mínimo de segurança contratual em favor do empregado alçado a cargos ou funções de confiança. A preocupação dos tribunais era de que a presença do empregado no cargo de confiança por longos anos tendia a produzir uma incorporação patrimonial e cultural efetivas, pelo obreiro, do parâmetro remuneratório próprio a esse cargo, tornando extremamente prejudicial a reversão e suas consequências. Nesse contexto, procurou a jurisprudência apreender na ordem jurídica uma fórmula que, embora preservando a direção empresarial sobre a condução das atividades laborativas (mantendo, portanto, a prerrogativa de reversão independentemente dos anos de ocupação do cargo), minorasse – proporcionalmente ao período de ocupação do cargo – as perdas materiais advindas da decisão reversiva. É o que se encontrou no antigo Enunciado 209 do TST: “A reversão do empregado ao cargo efetivo implica na perda das vantagens salariais inerentes ao cargo em comissão, salvo se nele houver permanecido dez ou mais anos ininterruptos(grifos acrescidos). Com o cancelamento da Súmula 209 (em novembro de 1985), a jurisprudência passou a oscilar entre os critérios temporais mais ou menos elásticos do que os 10 anos (verificando-se, até mesmo, decisões pela inviabilidade de qualquer garantia de estabilização salarial no contrato em tal caso). Entretanto, pela OJ 45 da SDI-I/TST, de 1996, confirmou-se o critério decenal para a estabilização financeira em situações de reversão: (…). Hoje tal critério está expresso na Súmula 372, I, do TST.

Mas, afora o senso de justiça, qual seria o fundamento jurídico da manutenção do pagamento (incorporação ao patrimônio jurídico do trabalhador) da gratificação de função percebida por longo período?

O direito em epígrafe, essencialmente, é garantido pelo Princípio da Estabilidade Financeira, decorrência lógica da combinação do Princípio da Irredutibilidade Salarial (assegurado pelo art. 7º, VI, da Constituição Federal[5]), do Princípio da Proteção da Confiança[6] (sendo este um corolário do Princípio da Segurança Jurídica – artigos 1º, caput[7], e 5º, caput e XXXVI, da Constituição Federal) e do Princípio da Boa-fé Objetiva (artigos 1º, III, e 3º, I, da Constituição Federal[8]).

A prolongação do exercício da função de confiança no tempo induz legitimamente o ocupante a confiar que permanecerá ocupando a função e que, por conseguinte, manterá o patamar remuneratório. A cada ano em que o trabalhador permanece ocupando a função de confiança a confiança é justificadamente reforçada. À medida que a confiança aumenta, concomitantemente o plus salarial decorrente da função gratificada vai naturalmente se incorporando, cada vez mais, ao patamar de vida do laborista.

Elegendo como razoável o marco de dez anos de exercício de função de confiança, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, então, fixou que, atingindo tal termo, a condição financeira superior advinda do exercício da função gratificada se estabiliza, incorporando-se ao patrimônio jurídico obreiro e ficando imunizada de eventuais supressões injustificadas promovidas pelo empregador.

Em síntese, a confiança do trabalhador, neste caso, é tutelada pelo instituto da supressio, classicamente enquadrado, pela doutrina, como um dos vetores decorrentes do Princípio da Boa-fé Objetiva:

A suppressio é a inadmissibilidade do exercício de um direito (ou seja, a sua supressão, daí a denominação), por ter o seu titular deixado de exercê-lo durante algum tempo, e, em virtude das circunstâncias da situação concreta, essa omissão teve o efeito de gerar na contraparte a confiança de que esse referido direito não mais seria exercido. Como se vê, trata-se, de uma certa forma, dos efeitos do tempo sobre as relações jurídicas, razão pela qual se deve tomar redobrado cuidado para evitar a confusão com outras situações similares, tais como a prescrição e a decadência.

A ligação do instituto com a boa-fé reside no fato de que não é suficiente, para caracterizá-lo, o simples retardamento no exercício do direito, sendo além disso indispensável que em virtude dessa delonga tenha surgido no outro sujeito a confiança, em termos objetivos, de que não mais haveria o seu exercício, o que significa dizer que o lapso temporal deve vir acompanhado de outras circunstâncias objetivas, capazes de fazer surgir essa confiança, de modo tal que o exercício posterior e súbito do direito venha a contrariar a boafé. Trata-se, portanto, da “inadmissibilidade de exercício de um direito por seu retardamento desleal. Na realidade, como veremos adiante, nem sempre o resultado será a perda do direito, podendo ser a redução do seu conteúdo. (DANTAS JÚNIOR, 2006)[9]

Temos a confiança legítima do trabalhador - nascida do longo lapso (dez ou mais anos) sem que a empresa exercitasse o direito de retirada da função de confiança - de que o patamar financeiro obreiro não sofrerá, injustificadamente, modificações abruptas. Como consequência, opera a supressio do direito da empregadora de suprimir, sem justo motivo, a gratificação de função. Todo este processo jurídico é resumido e condensado sob a alcunha do Princípio da Estabilidade Financeira.

Compreendidos os fundamentos do direito à incorporação da gratificação de função de confiança, avancemos para a apreciação da proposta contida na “Reforma Trabalhista”.

3. A INCONSTITUCIONALIDADE DA ANIQUILAÇÃO DO DIREITO PELA REFORMA TRABALHISTA

O PLC nº 38/2017 propõe a destruição do direito à incorporação da gratificação função, conforme se infere da redação do novo parágrafo segundo do art. 468:

A alteração de que trata o § 1º deste artigo[10], com ou sem justo motivo, não assegura ao empregado o direito à manutenção do pagamento da gratificação correspondente, que não será incorporada, independentemente do tempo de exercício da respectiva função.

Nos termos do tópico anterior, a pretensa norma viola o Princípio da Estabilidade Financeira, espécie de norma-síntese decorrente de uma interpretação combinada dos Princípios da Irredutibilidade Salarial, da Proteção da Confiança e da Boa-fé Objetiva. Tendo em vista a base constitucional de todos os princípios referidos, constata-se que a proposição legislativa fere frontalmente a Carta Magna, razão pela qual, caso aprovada, essa supressão de direito deverá ser reputada inconstitucional e expurgada do ordenamento jurídico.

O ímpeto de favorecer o empresariado fez com que o Legislador perdesse a linha (nesse e em muitos outros pontos). Eventual tentativa de restringir, moderadamente, o direito à incorporação da gratificação de função poderia até ter a sua juridicidade reconhecida, haja vista a costumeira reverência que é concedida à legitimidade popular emanada do processo legislativo. Mas a pura e simples aniquilação do direito não sobrevive a uma análise minimamente técnica e consistente da Constituição Federal.

4. CONCLUSÕES

Diante de tudo que foi dito, podemos concluir que:

I) O direito à incorporação da gratificação de função consolidado na Súmula 372, I, do Tribunal Superior do Trabalho, encontra respaldo no Princípio da Estabilidade Financeira, decorrência lógica da combinação do Princípio da Irredutibilidade Salarial (assegurado pelo art. 7º, VI, da Constituição Federal), do Princípio da Proteção da Confiança (sendo este um corolário do Princípio da Segurança Jurídica – artigos 1º, caput, e 5º, caput e XXXVI, da Constituição Federal) e do Princípio da Boa-fé Objetiva (artigos 1º, III, e 3º, I, da Constituição Federal);

II) A proposta, contida no PLC nº 38/2017 (“Reforma Trabalhista”), de pura e simples aniquilação do direito à incorporação da gratificação de função encontra obstáculo nos princípios referidos no ponto anterior. Assim, tendo em vista a base constitucional de todos os princípios aludidos, constata-se que a proposição legislativa fere frontalmente a Carta Magna, razão pela qual, caso aprovada, essa supressão de direito deverá ser reputada inconstitucional e expurgada do ordenamento jurídico.


Notas e Referências:

[1] DALAZEN, João Oreste et al. [Consideração jurídicas acerca do Projeto de Lei da Câmara n. 38/2017]. Brasília, 2017. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/trabalhista-reforma-tst.pdf>. Acesso em: 19 jun. de 2017.

[2] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Análise do Projeto de Reforma Trabalhista. [S.l.], 2017. Disponível em: <http://www.jorgesoutomaior.com/blog/analise-do-projeto-de-reforma-trabalhista>. Acesso em: 19 jun. de 2017.

[3] BRUXEL, Charles da Costa. O fim do Direito e processo do trabalho! A destruição proposta pelo relator deputado Rogério Marinho na reforma trabalhista (PL 6.787/16). Fortaleza: JusBrasil, 2017. Disponível em: <https://charlesbruxel.jusbrasil.com.br/artigos/449249003/o-fim-do-direito-e-processo-do-trabalho-a-destruicao-proposta-pelo-relator-deputado-rogerio-marinho-na-reforma-trabalhista-pl-6787-16>. Acesso em: 19 jun. de 2017.

[4] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 ed. São Paulo: LTr, 2017.

[5] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(…)

VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

[6] “O princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança são, pois, facetas que se completam semanticamente: a segurança é a faceta geral da confiança; a confiança, a face particular da segurança. (…) O princípio da proteção da confiança impõe que se tutele a confiança de um determinado sujeito, concretizando-se, com isso, o princípio da segurança jurídica”. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 137-138.

[7] “O princípio da proteção da confiança é um subprincípio do princípio da segurança jurídica. O princípio da proteção da confiança é a dimensão subjetiva do conteúdo do princípio da segurança jurídica. O fundamento de ambos é o Estado de Direito. Como não há na Constituição texto expresso nesse sentido, afirma-se que se trata de princípio constitucional que decorre do §2º do art. 5º da CF/1988.” (DIDIER JÚNIOR, 2015, p. 137). A despeito da balizada doutrina citada, entende-se que, além desse fundamento, o direito à segurança previsto no art. 5º, caput, da CF, pode perfeitamente tutelar e abranger o direito à segurança jurídica. Como se não bastasse, a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido (art. 5º, XXXVI, CF) também indica a intenção constituinte de tutelar a segurança jurídica.

[8] A confiança também é protegida por meio do Princípio da Boa-fé Objetiva. Este, por sua vez, igualmente encontra fundamento constitucional: “A Constituição Federal em seu artigo 1º, III, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, esse princípio irradia-se por todo o ordenamento jurídico, bem como é possuidor de várias faces, dentre elas encontra-se a exigência de tratamento digno para com terceiros, ou seja, deve-se tratar com boa-fé. Outro princípio constitucional que garante a boa-fé é a igualdade e solidariedade social, pois se exigimos que nos tratem com boa-fé, devemos tratar os outros da mesma forma visto que segundo a Carta da República todos somos iguais em deveres e obrigações (art. 3º , II e art. 5º, caput e inciso III, da CF/88).” MARTINS, Eduardo Almendra. Boa fé e segurança jurídica é uma relação necessária. [Fortaleza], 2014. Esclareça-se que houve equívoco na referência ao art. 3º, II, CF. A referência correta é ao art. 3º, I, da Constituição Federal: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”. A interconexão do Princípio da Boa-fé Objetiva com o Princípio da Segurança Jurídica é evidenciada em: FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Contratos. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 161-162.

[9] DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. A Teoria dos Atos Próprios: Elementos de identificação e cotejo com institutos assemelhados. 2006. 463 p. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006, p. 422.

[10] No PL, o atual parágrafo único do art. 468 é renumerado para §1º, cuja redação é a que segue: “Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança”.


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