REFORMA DO CPP E A DEFESA DO DIREITO DE DEFESA NO JÚRI

27/04/2021

De abril de 2009 e março de 2011, tramitou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 156/2009, com proposta de reforma do Código de Processo Penal. O Parecer nº 1.636/2010, da Comissão Temporária de Estudo da Reforma do CPP, foi aprovado em dezembro de 2010, sendo remetido para a Câmara dos Deputados, onde passou a tramitar como PL 8.045/2010 (21/12/2010). Em junho de 2018, o relator da matéria, Deputado João Campos, apresentou um substitutivo que trouxe mudanças significativas e que foi aprovado, com parecer pela constitucionalidade, juridicidade e adequada técnica legislativa.

Com os debates sendo interrompidos e reiniciados em função da pandemia, o PL 8.045 teve, agora, nova e importante movimentação. Na última terça-feira, dia 13 de abril de 2021, o relator Dep. João Campos colocou em votação um novo parecer substitutivo que foi, novamente, aprovado. Com mais de trinta novos pontos, o parecer altera vários tópicos do texto que vinha sendo debatido na comissão desde 2011, especialmente as questões trazidas pelo pacote anticrime e sugestões apresentadas pelo CNJ no tocante ao Júri.

Infelizmente, apesar do esforço dos estudiosos que compuseram a comissão de estudos e das tentativas de aprovação da reforma pelos parlamentares, o PL 8.045 representa um verdadeiro atestado do atraso da legislação processual penal brasileira, notadamente quando verificamos que todos os demais países que compõem o bloco latino-americano fizeram, de alguma forma, a transição do modelo inquisitorial para o modelo acusatório. No Brasil, inacreditavelmente, ainda trabalhamos com um Código de Processo Penal da década de 40, retalhado por dezenas de alterações pontuais.

Nem mesmo a surpreendente aprovação do pacote anticrime de 2019 foi capaz de mudar esse estado de coisas. A alegria não foi maior do que a surpresa e as duas, nem de longe, alcançaram a decepção que sentimos, quando os Ministros Toffoli e Fux, do STF, resolveram, cada um a seu modo, barrar a implementação do juiz de garantias e a mudança para o sistema acusatório. Depois do susto, pela notícia de que Jair Bolsonaro, realmente, havia mandado publicar um texto do pacote anticrime contra os interesses do Juiz-Ministro Moro, fomos saqueados por liminares em ações propostas pela associação nacional dos Juízes e dos membros do Ministério Público, além de partidos de ideologia marcadamente punitivista.

O sistema acusatório e o juiz de garantias dormem em berço esplêndido, mais precisamente na gaveta do ministro Luiz Fux.

A nova proposta trazida do juiz de garantias prevista nos arts. 14 a 18, mesmo que prevendo um lapso considerável para a adoção das mudanças (em vigor no Chile há mais de 20 anos), traz alguma esperança de que poderemos, ainda nessa década, ver implementada a ética, a decência, a lisura e tudo aquilo que concorre para atuação de um juiz imparcial no processo penal brasileiro.

O projeto prevê com maiores detalhes a atuação da polícia, abre espaço para a investigação defensiva, dedica um longo espaço para a justiça restaurativa, enfim, traz inúmeras alterações que merecem detido estudo e manifestação em momento oportuno.

Como em toda e qualquer reforma, há motivos para comemorar e pontos que reclamam imediata discussão.

Vamos falar de Tribunal do Júri.

O parecer propõe uma alteração significativa daquela primeira fase do procedimento bipartido criado em 40 e mantido em 2008. Pela nova sistemática, o procedimento deixa de ser dividido em duas fases, pois a decisão de recebimento da denúncia já vale como admissão da acusação de crime doloso contra a vida, nos termos do art. 391 do substitutivo (O recebimento da inicial acusatória é decisão que, reconhecendo a adequada descrição fática da imputação e indicando a materialidade do fato e indícios suficientes de autoria ou de participação, autoriza o exame da ação penal pelo Tribunal do Júri). Com isso, num só artigo, a proposta elimina a audiência de instrução, as alegações finais e a pronúncia. Nos termos do art. 385, a defesa ganha prazo para realizar a investigação e apresentar a resposta à acusação (Oferecida a inicial acusatória por crime doloso contra a vida, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará que o réu seja citado e intimado para oferecer resposta escrita, no prazo de quarenta e cinco dias).

Com a resposta escrita apresentada, oportunidade em que podem ser arroladas oito testemunhas, e denúncia por crime doloso contra a vida recebida pelo Juízo, o processo é diretamente encaminhado para julgamento pelo Conselho de Sentença. Estaria, portanto, extinta a antiga noção de duas fases. Recebida a acusação, a pessoa já poderá ser julgada pelos jurados, já que tal decisão será irrecorrível, nos termos do art. 393 do substitutivo (A decisão de recebimento da inicial acusatória é irrecorrível).

Embora houvesse ampla possibilidade de demonstração de causa excludente de ilicitude ou de hipótese de desclassificação para crime da competência do juiz togado, é certo que o modelo bipartido causa enormes dificuldades para um julgamento célere.

Como temos nos manifestado, se alguma mudança deve ser feita para buscar maior celeridade do procedimento, esta deve, sim, recair na simplificação ou supressão da primeira fase. Isso quer dizer que, no geral, andou bem a comissão ao propor um modelo que privilegia a originalidade cognitiva dos jurados, ampliando o número de testemunhas de plenário para oito.

Um dos pontos que merece uma discussão mais profunda, no entanto, é a questão do número de jurados. Infelizmente, o substitutivo mantém o número de sete jurados (art. 421), quando poderia ter ampliado para oito ou doze. A proposta prevê, ainda, hipótese de diminuição desse número para cinco jurados, de acordo com o parágrafo único do mesmo art. 421 (O recebimento da inicial acusatória que não tratar de crime de homicídio qualificado, consumado ou tentado, homicídio simples consumado ou aborto praticado por terceiro, consumado ou tentado, acarretará a formação de Conselho de Sentença composto por cinco jurados, sorteados dentre os alistados).

Outro ponto a ser discutido, é a proposta de redução do tempo de sustentação para os chamados casos menos complexos, nos termos do art. 451, com proposta de diminuição do tempo de sustentação em trinta minutos. A proposta prevê, ainda, a possibilidade de o juiz diminuir o tempo pela metade, caso haja concordância expressa das partes (§3º).

É muito importante que a advocacia criminal faça ver que esses trinta minutos significam uma gota d´água no oceano do julgamento, mas pode representar a possibilidade de absolvição de um inocente, diante da abertura para a apresentação adequada da tese defensiva e das provas que a sustentam. Quem é do Júri sabe que são feitas várias pausas durante a sessão, muitas delas superiores aos miseráveis trinta minutos que se quer tirar da defesa. Não há, verdadeiramente, motivo para essa diminuição.

Ademais, quem é do Júri também sabe que uma acusação de tentativa de homicídio pode ser bastante complexa, não sendo possível trabalhar o critério do tipo penal como indicativo de simplicidade do caso. Para quem é acusado, a gravidade, complexidade, importância da imputação não se mede pelo artigo de lei. E como dito anteriormente, não são trinta minutos que irão tornar o rito mais célere. É importante que a Comissão reveja a diminuição do tempo e o número de jurados. Todos os acusados merecem tratamento igualitário, porque é seu estado de inocência que está em jogo.

Ao acatar as propostas do CNJ, a comissão aceita um discurso irreal, segundo o qual o procedimento do júri seria atrasado, arcaico, demorado, para ficar apenas nessas palavras utilizadas pelo Ministro Toffoli. Na verdade, a ser realmente instaurado o sistema acusatório, com o juiz de garantias, com a exclusão física do inquérito policial, dentre tantas outras mudanças que provocam a aparição de um juiz verdadeiramente imparcial, não há motivo para fazer essas restrições ao direito de defesa no momento em que os jurados têm contato com a prova dos autos, com as teses, com as versões apresentadas pelas partes, ou seja, quando devem ser capacitados para o julgamento condenatório ou absolutório do acusado.

A diminuição e simplificação da primeira fase, não deve vir acompanhada dá mesma diminuição dos espaços de defesa da segunda fase, porque o Tribunal do Júri acontece, de verdade, é na presença dos jurados, sendo fundamental permitir que as partes possam apresentar as provas e os argumentos com plena liberdade, isto é, com o tempo necessário.

Tornar célere o procedimento do Júri, por meio da lesão à garantia da plenitude de defesa, significa fazer valer a máxima neoliberal da produtividade em matéria de justiça, como se fosse preferível lançar nas tabelas que definem as metas do Poder Judiciário o maior número de julgamentos possível, independentemente de quantas cabeças inocentes possam ter rolado para dentro do cesto.

A proposta de tornar mais rápido o julgamento pelo Júri está contemplada no substitutivo, pela extinção do modelo bipartido. É na primeira fase que o procedimento demora para ser concluído, diante da abertura de espaço probatório e postulatório. O julgamento pelo Conselho de Sentença, de outra parte, em raríssimas ocasiões demora mais do que um dia. Depois de anos de tramitação na primeira fase, em até 24 horas as provas são produzidas, o réu é interrogado, as partes apresentam seus argumentos e o caso é finalizado, com um julgamento pelos juízes leigos e pelo juiz togado, tudo isso acontecendo de forma ininterrupta.

A experiência chilena, com as suas três fases, mostra que é possível fazer um procedimento para o Júri Brasileiro, no qual haja a primazia da originalidade cognitiva pelos jurados, ou seja, podemos admitir a redução da primeira fase, mas é fundamental ampliar os espaços de exercício do contraditório na sessão de julgamento.

O que se quer da comissão é a preservação dos espaços nos quais a acusação e a defesa podem expor as suas convicções e demonstrar o cabimento das teses apresentadas. Não há plenitude de defesa ou contraditório numa sessão de julgamento em que são cassadas a possibilidade de inquirição de testemunhas, o tempo de debate é reduzido e, até mesmo, o número de jurados diminuído.

O esforço dos nobres deputados deve ser reconhecido, mas, da mesma forma, é imprescindível que ouçam a advocacia criminal, pois nós somos a voz da bancada defensiva, ou seja, queremos o respeito às garantias constitucionais que conformam o devido processo legal.

Os equívocos devem ser apontados, especialmente nessa fase da tramitação do projeto de reforma em que se permite a participação externa para levar o esclarecimento dos pontos cruciais aos Deputados e Deputadas, apontando aquelas mudanças que significam lesão ao direito de defesa.

Por tudo isso, é urgente que a advocacia criminal esteja unida e vigilante, atenta aos movimentos de setores que pretendem a destruição do Tribunal do Júri ou a sua transformação em uma verdadeira praça pública de execuções sumárias. A impunidade não se resolve com condenações, mas com condenações justas.

Mais não digo!

 

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