Reflexos da “guerra às drogas” nas medidas socioeducativas de internação

20/04/2017

Por Luanna Tomaz de Souza, Grant Davis de Souza Lima Junior e Paulo Henrique Pinto Santiago - 20/04/2017

A política de proibição às drogas tornou-se o combustível para a expansão do poder punitivo em nível global. Hoje, no Brasil, um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas[1], crime previsto na Lei 11.343/2006, a Lei de Drogas. Observa-se que com o advento da Lei, dentre outros fatores, aumentou-se em mais de 339% o número de pessoas presas[2], ampliando-se a intervenção penal sobre o problema das drogas. Este artigo pretende refletir se essa política proibicionista tem levado também a ampliação das medidas socioeducativas, aplicadas aos adolescentes.

As medidas socioeducativas, dispostas na Lei nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), integram a esfera de responsabilização de adolescentes que cometeram atos infracionais. Dentre as medidas, a de privação de liberdade com internação em estabelecimento educacional é uma das mais recorrentes. O ECA elenca, entretanto, alguns princípios a que o instituto é submetido, dentre eles o da excepcionalidade.

O princípio da excepcionalidade das medidas socioeducativas de internação está previsto no art. 122 do ECA, que determina as condições sem o quais a internação não poderia ser aplicada, são elas: tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; por reiteração no cometimento de outras infrações graves; e no caso de descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

Um dos elementos mais importantes do aludido dispositivo é a imprescindibilidade do ato infracional ser cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa para qualificar o adolescente a uma eventual medida de internação. Em que pese esse limite, tem se observado crescente aplicação da medida de internação para o comércio ilícito de drogas

A Secretaria de Direitos Humanos (SDH) identificou em seu levantamento nacional que no ano de 2012, 5.883 adolescentes permaneciam em restrição ou privação de liberdade por atribuição ao tráfico, de um total de 20.532[3]. Em pesquisa realizada em 2016[4], o Conselho Nacional de Justiça já aponta que esta é a principal infração cometida por adolescentes cumprindo medida de internação, causando a internação de mais de 49.717.

Verifica-se então um considerável número de adolescentes sendo submetidos à privação de liberdade por ato infracional cometido na ausência do requisito essencial para a aplicação da medida, a presença de grave ameaça ou violência à pessoa. Nesse sentido, ataca-se uma garantia dos adolescentes consolidada pelo ECA, que por sua vez, também desconsidera o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

O Superior Tribunal de Justiça, em sua Súmula nº 492, se posicionou no sentido de que o ato infracional relativo ao tráfico não implica na obrigatoriedade da submissão à medida socioeducativa de internação.[5] Trata-se de esforço importante para reduzir o contingente de adolescentes direcionados à privação de liberdade no regime socioeducativo.

A jurisprudência dos tribunais superiores, em que pese ter reformado algumas decisões[6] em outros, tem se mostrado relutante, considerando argumentos como a reiteração de infrações graves[7] ou a quantidade e variedade da droga apreendida[8].

Esse cenário de internação dos adolescentes por tráfico de drogas por questões diversas das determinadas no ECA viola também outros dispositivos, como a Lei nº 12.594/2012[9] e o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo que reiteram a importância da excepcionalidade da medida de internação e a necessidade de mecanismos alternativos de resolução de conflitos.

Percebe-se assim que um conjunto de fatores leva ao crescimento do número de adolescentes internos por tráfico de drogas. O primeiro, é um marcante decisionismo penal, que defende que um juiz não deve estar preso ao limites legais[10]. Além disso, há uma conjuntura internacional de expansionismo penal, tendo como catalisador a política global de guerra contra as drogas, decretada a partir da década de 70, nos Estados Unidos e propagada ao mundo. Por fim, Vera Malaguti Batista (2003, p.36) aponta que foi construído um estereótipo criminoso da juventude pobre, que levou a ampliação de sua marginalização. Os processos de criminalização das camadas populares, lado à estigmatização e consolidação de estereótipos provocam uma prévia rejeição da inserção da juventude às relações sociais e de trabalho, visto que passam a ser enxergados como uma espécie aquém da humana, que não satisfaz os padrões de normalidade impostos pela grande mídia.

Ao final, observa-se que a atual política de drogas atingiu sem freios a proteção da juventude do país. Enquanto não houver interesse na elaboração de uma política de drogas sensível, que atue para além das medidas de repressão, o atual modelo repressivo e estigmatizador continuará fazendo vítimas e fortalecendo um decisionismo penal pautado em uma suposta defesa da sociedade, mas que marginaliza nossos jovens.


Notas e Referências:

[1] PORTAL G1. Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-trafico-de-drogas.ghtml. Acesso em: 05 fev. 2017.

[2] PORTAL G1. Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-trafico-de-drogas.ghtml. Acesso em: 05 fev. 2017.

[3] BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. Levantamento nacional 2012. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2012. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/levantamento-sinase-2012>. Acesso em: 05 fev. 2017.

[4] PORTAL G1. Em 1 ano, dobra nº de menores cumprindo medidas no país, diz CNJ. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/em-1-ano-dobra-n-de-menores-cumprindo-medidas-no-pais-diz-cnj.html. Acesso em: 05 fev. 2017.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 492. O ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=SUMU&livre=@docn=%22000000968%22>. Acesso em: 05 fev. 2017.

[6] STJ - HC: 291076 SP 2014/0063986-1, Relator: Ministro Gurgel de Faria, Data de Julgamento: 23/10/2014, T5 - Quinta Turma, Data de Publicação: DJe 04/11/2014

[7] STJ - HC: 301028 SP 2014/0196640-9, Relator: Ministro Gurgel de Faria, Data de Julgamento: 28/04/2015, T5 - Quinta Turma, Data de Publicação: DJe 18/05/2015

[8] STJ - HC: 269244 SP 2013/0122788-8, Relator: Ministro Moura Ribeiro, Data de Julgamento: 17/09/2013, T5 - Quinta Turma, Data de Publicação: DJe 23/09/2013

[9] SINASE (Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente).

[10] CASTILHO, Ricardo. O decisionismo no midiático processo penal brasileiro: o Juiz-batman. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-decisionismo-no-midiatico-processo-penal-brasileiro-o-juiz-batman/14634. Acesso em: 05 fev. 2017.


Luanna Tomaz de Souza. Luanna Tomaz de Souza é Doutora em Direito (Universidade de Coimbra). Professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia e da Clínica da Atenção à Violência da UFPA. Autora do livro: “Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha”.


Grant Davis de Souza Lima Junior. . Grant Davis de Souza Lima Junior é Bacharel em Direito (Universidade Federal do Pará). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia. . .


Paulo Henrique Pinto Santiago. . Paulo Henrique Pinto Santiago é Bacharel em Direito (Universidade Federal do Pará). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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