Reflexões sobre Esquecimento, Reputação e Dignidade da Pessoa Humana na Sociedade de Controle

18/09/2024

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas (Pierre Bourdieu).

Deixar algo eternamente disponível na internet, quando desnecessário ou prejudicial aos sujeitos, coloca-os em uma situação de punição contínua e mesmo perpétua (em tese, algo incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro).

Dito isso, sabe-se que o tema do (direito ao) esquecimento remete a uma questão controversa, na medida em que, apesar da presença (e reconhecimento) em julgados prévios (direta ou indiretamente), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria, que esse direito não existe no ordenamento jurídico brasileiro[i].

Será que o STF estruturalmente evita ou facilita violações à dignidade humana quando nega a existência (do direito ao) esquecimento, relativizando esse debate no Brasil? Esse poder jurídico de criar as coisas nomeadas, como na discussão se existe ou não um direito ao esquecimento, é demonstração do poder simbólico que impacta o real, estruturando o objeto, no caso, rejeitado (logo, não existindo). Coisas da artificialidade do campo jurídico e seus efeitos de sentido que vale, com Pêcheux (2014) e demais autores, analisar desde a Análise de Discurso Francesa.

Há que se considerar, ainda, a influência do contexto do julgamento nas condições de produção em sentido amplo e estrito. Por infelicidade, o caso discutido pela Corte estava relacionado ao âmbito criminal, o que trouxe um peso e apelo adicional ao debate, no sentido de maior convocação e recrutamento ideológicos dos juízes acerca da repetição da ideologia dominante no âmbito criminal[ii].

Dessa forma, contribuindo com (e consequentemente fomentando) um cenário de situações delicadas especialmente no ambiente digital, em tempos de matérias midiáticas alargadas despejadas nos sujeitos (como por exemplo, como foi o dia de Suzane von Richthofen no psiquiatra, fonte eterna de "notícias"), crescente entrada de informações falsas nas redes e mesmo dados vazados que se perpetuam radicalmente nas redes sociais e na internet.

Dados disseminados e tratados quase que indefinidamente remetem a um território pré-LGPD, que precisa ser constitucionalmente questionado, sobretudo agora que a Proteção de Dados é Garantia Fundamental prevista na Constituição Federal.

Sobre isso, acrescente-se que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da Constituição Federal, e a permanência de dados prejudiciais, inexatos ou mesmo irrelevantes sobre alguém nas redes pode gerar danos reputacionais e morais graves, incapacitando uma vida digna. A manutenção de dados, sobretudo quando falsos, inexatos, descontextualizados ou irrelevantes, se "eternizados", como defendem alguns para todos os casos em nome da liberdade de expressão (fantasia conveniente), viola a Constituição Federal e diversos dispositivos e legislações, inclusive ferindo a LGPD. Danificar perpetuamente a imagem de alguém mediante uma exposição desnecessária e cruel de dados tampouco comporta aval, sequer no âmbito criminal, também valendo os ditames da responsabilidade civil e da ausência de penas perpétuas[iii].

Hoje, o impacto subjetivo da vida registrada em rede é inegável, assim como a importância da reputação nela, que há muito deixou de ser um espaço trivial da vida. Na sociedade contemporânea, dados vazados podem ser compartilhados rapidamente e ataques de ódio podem viralizar em instantes. A velocidade disso é sem precedentes na história humana. O impacto de uma exposição negativa pode ser devastador (e amplificado digitalmente de forma absurda, inclusive com ataques coordenados). O esquecimento poderia atuar como uma proteção contra esse tipo de abuso, garantindo que, com o tempo, certas informações deixem de ser acessíveis, observando-se a ausência de relevância pública, bem como, zelando pela tutela da vida e integridade psíquica das pessoas.

Simplificadamente, tanto a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) ao prever o pedido de exclusão de dados, quanto o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia, ao dispor sobre o apagamento, reconhecem a importância do tema do esquecimento, dentro de seus limites, sendo possível abordar o tema juntamente à privacidade, segurança e dignidade dos cidadãos. O direito de solicitar que dados pessoais sejam apagados e removidos em certas circunstâncias, como quando não forem mais necessários para os fins em que foram coletados, apenas como exemplo, está presente em discussões em todo o mundo, não se tratando de invenção doméstica isolada. Internacionalmente se discute o direito e a necessidade dos sujeitos controlarem os seus dados, gerenciarem suas informações, retomando o controle de suas vidas.

O Brasil faz parte dessas discussões e em algum momento precisará enfrentar o tema do direito ao esquecimento com maior percepção do que está em jogo. Sem gerenciamento constitucional e, quando necessário, sem que o sujeito consiga remover informações desatualizadas ou prejudiciais das redes, o ambiente digital tende a se tornar ainda pior, sobrando para a panaceia do poder punitivo, criação de novos tipos penais e velhas ideias de reforma que remontam diversos séculos desse poder prejudicial.

Enquanto efeitos de fim, embora a referida Corte tenha por maioria decidido que inexiste direito ao esquecimento aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro, há argumentos sólidos que apontam para a necessidade de aprofundamento teórico da importância do esquecimento em uma sociedade que coleciona dados e realiza práticas abusivas das mais diversas, gerando danos enormes.

Deixar dados permanentemente disponíveis, sem mecanismos constitucionais de controle, especialmente quando prejudiciais à dignidade, segurança, privacidade e reputação de uma pessoa, pode ser visto como uma pena perpétua das sociedades contemporâneas[iv].

O que contraria o discurso de direitos e garantias fundamentais, afetando marcantemente a dignidade humana.

Possivelmente, a Corte jogou fora uma ferramenta e linha de fuga, de saída justa para casos onde a exposição contínua de certos tratamentos dados se torna excessivamente desproporcional e prejudicial, notadamente ilícita.

A possibilidade de esquecimento visa proteger as pessoas de danos permanentes que podem ser ampliados e perpetuados sobretudo no ambiente digital, e na atualidade das novas tecnologias e realidades dependentes de dados.

Se não é juridicamente correto defender uma punição que nunca termina, um dano que nunca cessa, criando uma espiral de sofrimentos, igualmente parece equivocada a decisão da Corte, sendo seguro que a Constituição não permite danos irrestritos à reputação, à vida social e até profissional, ainda que para condenados criminalmente, é dizer, mesmo diante do Aparelho Repressivo de Estado materialmente exercido por excelência(s), existem limites jurídicos. Que nem sempre funcionam, nem sempre são aplicados. Na verdade, o estudo das criminologias indica como nossas contenções jurídicas são falhas, especialmente tratando-se do poder punitivo. A falha (formal) enquanto regularidade (material). Mecanismos constitucionais de gerenciamento da irracionalidade (na acepção zaffaroniana) são bem-vindos.

 

Notas e referências

ANITUA, Gabriel Ignacio. Historias de los pensamientos criminológicos. Prólogo de E. Raúl Zaffaroni. 2a reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

RODAS, Sergio. Direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição, decide STF. CONJUR. 11/02/2021. Disponível em: / Acesso em: 12 set. 2024.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Cuestión Criminal. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2011.

[i] Em Rodas (2021), a partir de texto publicado no Consultor Jurídico intitulado Direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição, decide STF, foram explicadas as nuances do julgamento. Mesmo existindo questões similares na LGPD e na GDPR (logo, contexto nacional e internacional) acerca do controle de dados, destaca-se que o entendimento firmado por maioria do STF (parcialmente vencidos os ministros Nunes Marques, Edson Fachin e Gilmar Mendes), é de que inexiste algo assim na Constituição brasileira. Nesse sentido: "A corte aprovou a seguinte tese com repercussão geral: 'É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais'." (RODAS, 2021). A resistência frente ao (direito ao) esquecimento pela Corte não constitui exatamente uma surpresa, na medida em que nem mesmo coisas bem estabilizadas à luz da Constituição Federal parecem valer de alguma coisa para a maioria dos juízes, a exemplo da presunção de inocência, massacrada diariamente com aval jurisprudencial, e na fixação de verdadeiras teratologias, monstruosidades teóricas (o STF recentemente conseguiu entender que vale afastar a presunção de inocência em nome de decisão soberana do Júri). Os freios constitucionais frente ao ímpeto do poder punitivo são mínimos no Brasil. O mesmo vale sobre os freios contra a destruição de reputações eternizadas (com aval de juízes, prevalentemente). Assim, impressionante como o apego punitivo à memória discursiva dominante pode aprisionar ao invés de libertar as pessoas do sofrimento, reproduzindo danos. Zaffaroni (2011) demonstra que a questão criminal (como abordada por memória em nome da segurança pública) é midiaticamente representada de modo desproporcional e radicalmente distorcida do real, de modo que fantasiar uma memória social salvadora pode atuar ao contrário do pretendido se ancorada nas premissas do poder punitivo, que não solucionam conflitos, agravando-os.

[ii] Como o tema do (direito ao) esquecimento foi analisado no âmbito constitucional mas também criminal, ideologicamente existe uma inclinação em favor da memória perpetuada em nome da verdade, liberdade de expressão e dever de informar, um recrutamento acerca da memória discursiva resgatada Na ideologia dominante, “crime” é visto como um tema de interesse público perpétuo, muito embora inexista prisão perpétua (formal). A simples hipótese, exemplificativa, de que os sujeitos envolvidos em uma situação-problema – sejam vítimas, autores ou familiares – possam pleitear o esquecimento de algo, parece destoar do funcionamento sacrificial da justiça, dominantemente associada à vingança, conforme historiado por Anitua (2010), verificando a dominância do significado hegemônico moderno de justiça como equivalente à vingança (tornando inclusive complicado resgatar outros significados substanciais, tamanha a dominância e hegemonia da vingança). Enfim, é difícil negar que o caso julgado pelo STF (acerca de existir ou não um direito ao esquecimento) ligado ao âmbito criminal, não trouxe um fator de peso adicional ao debate. E como explica Pêcheux (2014), a ideologia recruta a nós todos, não sendo exceção com os juízes. Dito de outro modo, o contexto específico em que a discussão foi inserida potencialmente influenciou o resultado (uma infelicidade ou azar no contexto da abordagem do tema, explorado logo na seara criminal). Isso porque na ideologia dominante, a questão criminal é vista como algo que deve permanecer acessível à sociedade eternamente, ainda que em violação a diversos institutos, dispositivos e princípios. Mas esse apego à cristalização de algo potencialmente gerador e multiplicador de sofrimento não leva em conta os efeitos intrinsecamente danosos que a exposição contínua pode causar, especialmente quando a informação perpetua um estigma que afeta a vida dos envolvidos e terceiros, indefinidamente. Ao negar a possibilidade de esquecimento, acaba-se por criar um dano perpétuo à reputação e dignidade dos que dependem de esquecimento para viverem com dignidade. Ignorar isso, especialmente na sociedade contemporânea, contradiz princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a proibição de penas perpétuas. Seja como for, o contexto criminal prejudicou o debate mais amplo sobre o (direito ao) esquecimento, que deveria ser analisado sob uma ótica mais ampla e menos restritiva. Contudo, quando o STF não respeita sequer a presunção de inocência, fica difícil imaginar reconhecendo novos desdobramentos de direitos e garantias fundamentais existentes, mesmo acerca das reflexões sobre a efetivação da dignidade da pessoa humana na Sociedade de Controle e Era de Dados. Para além da origem do julgamento, diversas são as possibilidades de que a exposição de informações se torne desproporcional ao seu valor público (mesmo em caso de crimes com trânsito em julgado). A hipótese, portanto, é que a questão do esquecimento, embora existente, foi prevalentemente mal apreciada nesse contexto, atravessada pelas circunstâncias onde os tribunais filiam-se ao punitivismo estadocêntrico: os tribunais enxergam o âmbito criminal majoritariamente como território de vale-tudo onde deve existir exposição praticamente perpétua. Contudo, essa visão ignora os danos permanentes que podem ser causados pela manutenção indefinida de informações que, após determinado período, não têm mais relevância justificada e lícita para o interesse público, senão para entretenimento criminológico midiático. Ignorar genericamente a importância do esquecimento de informações em certos casos significa potencialmente contribuir com que reputações sejam danificadas indefinidamente. É preciso reconhecer que, mesmo em casos criminais, deve haver um limite para a exposição pública contínua, sendo o esquecimento uma ferramenta disponível para tanto, seja no direito público ou privado.

[iii] Mesmo no sistema penal brasileiro, inegavelmente sem contenções jurídicas fortes diante do poder punitivo, tem-se a proibição de penas de caráter perpétuo. Manter uma informação que macula a imagem de alguém para sempre, mesmo que essa pessoa já tenha cumprido sua dívida em tese com a sociedade (mesmo dentro do discurso legitimante da pena que mescla declaradamente a ressocialização e reintegração, entre outros nomes do leque de ideologias re), ou mesmo depois de superado determinado episódio, configura uma espécie de pena perpétua social, que obviamente anula a prometida reintegração constitucional para a continuidade da vida. O discurso jurídico é estruturalmente carregado de efeitos de sentido dos mais hipócritas, algo que atinge seu suprassumo quando se aborda a denominada questão criminal. O esquecimento irrestrito de fato pode ser um aspecto negativo apagador da historicidade, contudo, não se deve tratar o esquecimento intrinsecamente como um mal, pois ao contrário, ele também pode se mostrar particular e socialmente relevante. Particularmente, pode ser crucial para pessoas que cometeram erros no passado e buscaram a prometida função de ressocialização, ou mesmo vítimas que não querem "remoer" detalhes em matérias midiáticas de sempre, condenadas a superar diariamente o que já experimentaram, obrigadas a reviver o passado na forma de um presente que se repete. Enfim, socialmente, a exposição contínua de um fato passado também pode ser benéfica à coletividade, exemplificativamente, quando não existe contemporaneidade ou interesse público relevante e real (não bastando o mero entretenimento e sensacionalismo escamoteado sob as vestes do dever de informar). Eternizar pontos delicados geradores de sofrimento para os envolvidos pode inviabilizar uma vida digna, bem como, pode minar as chances de (re)construir uma reputação. Para muitos, a reputação ferida é pior do que a dor física. É evidente que o esquecimento não é socialmente positivo de modo irrestrito, não se defendendo, por exemplo, que se apague experiências genocidas ou coisas do tipo, acontecimentos discursivos de historicidade e relevante valor enquanto memória a não ser repetida. Mas o mesmo não vale para qualquer coisa. Ao invés de uma negativa genérica acerca do direito ao esquecimento, melhor era até nada decidir, do que errar tanto. O direito ao esquecimento resgata a possibilidade de buscar uma vida livre dos estigmas do passado, não deveria ser entendido genericamente como uma censura à liberdade, sendo em muitos casos, efetivação e concretização real, material, da dignidade da pessoa humana diante de prejuízos manifestos, que geram um abalo incompatível com a continuidade da vida em sociedade, com um mínimo de respeito ao ser humano.

[iv] O funcionamento digital, marcado por vazamentos, armazenamento contínuo e replicação de dados, amplia e redimensiona significativamente o impacto negativo de uma informação prejudicial (inclusive em ataques de ódio). Uma vez que algo é disseminado, pode ser copiado, armazenado, compartilhado, redistribuído, inclusive com alterações / adulterações, criando uma realidade penosa em que a informação errônea ou danosa nunca desaparece totalmente. Assim, os danos e sofrimentos acumulam-se velozmente, tornam-se perpétuos, o que fere diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana. Diante do exposto até aqui, por si só, tem-se que o esquecimento (enquanto um direito) se encaixa perfeitamente na dimensão de proteção constitucional já existente no Brasil e no mundo, atuando como uma via necessária na efetivação da dignidade da pessoa humana, evitando-se uma perpetuação desmedida de danos, cenário de punição contínua. A cristalização de certos dados e registros pode se tornar desproporcional e desleal frente ao sujeito real, mesmo no direito penal. O “esquecimento” deve ser pensado enquanto possibilidade absurda em razão da mencionada decisão por maioria? Apenas se entendermos que tribunais não erram, que o direito é neutro e alheio às relações de poder, prática pura e científica, asséptica, bem como, que inexiste um atravessamento e subordinação na ordem do discurso (e consequentemente do sujeito) que envolvem ideologia e inconsciente, como demonstra Pêcheux (2014). Inclusive, brincando com as palavras da epígrafe (de Bourdieu ao abordar as especificidades do campo jurídico e seu discurso), cumpre perguntar, inexistiria subordinação envolvendo a ideologia e inconsciente se um juiz assim o anunciasse? O real mudaria? A resposta é negativa, havendo ainda uma diferença entre realidade e real. Enfim, pensar o esquecimento pode ser crucial para evitar danos permanentes e proteger os sujeitos da perpetuação de informações falsas, negativas e desnecessárias, que apenas acrescentam danos eternizados. O esquecimento enquanto desdobramento lógico da dignidade nas sociedades digitais contemporâneas é uma via que não deveria ser rasgada tão precocemente, mesmo porque, cada novo dia explicita os estragos da farra de dados pessoais e informações reproduzidas nos meios físico e digital.

 

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