REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MÃES EM SITUAÇÃO DE RUA E MEDIDAS PROTETIVAS DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS

11/01/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A grande maioria dos países da América Latina e do Caribe reformaram sua legislação de acordo com a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC). Algumas das mudanças incluem a reforma da organização dos sistemas de proteção de crianças e adolescentes e a oferta de programas de fortalecimento familiar e de cuidados baseados no protagonismo familiar (HOPE AND HOMES FOR CHILDREN, 2020).  Ainda há, entretanto, progressos necessários à garantia dos direitos das crianças, uma vez que formas de cuidado institucional continuam sendo a resposta predominante de alternativas aos cuidados parentais (LUMOS, 2020). A CDC foi incluída no Brasil em 1990 (com reformas posteriores), com grande apoio do governo e da sociedade civil. Nos últimos anos, entretanto, o país transcendeu de um movimento de reforma no cuidado da proteção à criança e melhoria das condições de vida das famílias empobrecidas, para privilegiar a adoção como uma política de proteção à criança (FONSECA, 2019). Um exemplo é o avanço das leis que visam facilitar os processos de perda de guarda de crianças por das famílias empobrecidas.

Nota-se que, na prática, a proteção às crianças no Brasil privilegia a separação familiar, em lugar do desenvolvimento de políticas públicas para reduzir desigualdades. Além disso, a pandemia está destacando as consequências das políticas de austeridade fiscal, pois desde 2016 a emenda constitucional estabeleceu um limite para o investimento público em saúde, educação, ciência e tecnologia e assistência social. Como a desigualdade social e econômica desempenha um papel importante na separação forçada das famílias empobrecidas, as mães em situação de rua estão entre as mais afetadas por essa realidade.

Cabe salientar que as mães solo estão mais susceptíveis ao empobrecimento, desemprego e a se tornarem beneficiárias dos serviços de assistência social (GOBIERNO DE ESPAÑA, 2021; CEPAL, 2020; STRUFFOLINO; MORTELMAN, 2017). No Brasil, a predominância de famílias chefiadas por mulheres nos registros dos programas de bem-estar do governo corresponde a 90% do total (MDS, 2018). Além disso, apenas 54,6% das mães com filhos até três anos de idade têm uma ocupação (IBGE, 2021). A vulnerabilidade social destas famílias coloca suas/eus filhas/os em risco de serem institucionalizados, pois a ligação entre pobreza e aplicação de medida protetiva de acolhimento é comum no país (GONÇALVES; GUZZO, 2020; PAIVA; MOREIRA; LIMA, 2019). Além disso, as mães em situação de rua enfrentam barreiras no acesso aos serviços públicos, por razões relacionadas à falta de serviços de saúde específicos apropriados e ao medo de perder crianças; e ao trauma da separação das crianças.

Essas mulheres, são recorrentemente tidas como incapazes para o exercício da maternidade, devido à falta de alinhamento com o ser uma “boa mãe”: acesso à moradia,  não estar associada ao uso de drogas, ter um cônjugue dentre outras caracteríticas alinhadas com o ideal de família burgesa. Estes parâmentros, por vezes, são cobrados com base na defesa do princípio do interesse superior da criança. Contudo, esse princípio não pode anular os direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres (Castila, 2014). Assim, é essencial superar a perspectiva individualizadora do cuidado infantil e valorizar as potencialidades das suas comunidades e contextos sociais. É preciso questionar as estratégias de ação baseadas na presunção do fracasso materno das mulheres em situação de rua. A literatura aponta que novos olhares são necessários e possíveis, principalmente diante da capacidade marental e parental de protegerem suas crianças mesmo diante dos desafios da vivência de rua (BRADLEY et al., 2018).

Ainda sobre os estigmas sociais, destaco que sua presença nos serviços de atendimento está associado negativamente à autoconfiança e auto-conceito na maternagem. Além disso,  pode impor barreiras para a busca por ajuda, especialmente devido ao estresse e medo de perder a guarda da criança (BRADLEY et al., 2018; FEANTSA , 2021; HOPE AND HOMES FOR CHILDREN, 2020; PHIPPS et al., 2018). Mães e crianças podem se beneficiar de propostas de atendimentos que considerem suas especificidades de gênero, estejam sensíveis às suas necessidades, valorizem sua voz e envolvimento na concepção e prestação de serviços (FEANTSA, 2021).

Há de se considerar também, a posição contraditória em que as/os trabalhadoras/es da assistência social estão, pois cumprem a dupla função de subsidiar decisões sobre a separação forçada da família, através de relatórios requeridos pelo Sistema de Justiça; para, em seguida, trabalhar para reunir a mesma família que subdisidiaram o processo de separação (MOREIRA et al., 2020; ROBERTS, 1999). Não por acaso, muitas mães em situação de rua demonstram desconfiança em relação às equipes socioassistenciais. Além disso, as/os trabalhadoras/os ficam numa posição delicada em que são visualizadas/os como culpadas pela separação familiar. Na verdade, elas/es também são afetadas por um sistema que cada vez menos investe em programas de apoio para apoiar famílias empobrecidas com vistas a evitar separações desnecessárias mãe-filho (GONÇALVES; GUZZO, 2020; MOREIRA et al., 2020; ROBERTS, 2012).

Como resultado, o Estado recorre a mecanismos de vigilância e punição que penalizam as mães em situação de rua, enquanto as culpa por sua situação socioeconômica. Em outras palavras, essas mulheres são privadas de seus filhos não por serem violentas, mas por serem empobrecidas pelo sistema econômico vigente, principalmente diante do histórico de separações familiares forçadas prevalente em países com histórico de escravidão como o Brasil (MOREIRA et al., 2020; PASSOS, 2020; ROBERTS, 2012; WILLIAMS, 2020). É urgente ampliar a discussão sobre estratégias de cuidados às crianças e adolescentes fundamentadas na compreensão do superior interesse da criança, não como um ser individualizado. Mas como alguém que tem uma família e uma comunidade que precisam ser reconhecidas e valorizadas nas suas estratégias de sobrevivência.

 

Notas e Referências

BRADLEY, C., et al. How Does Homelessness Affect Parenting Behaviour? A Systematic Critical Review and Thematic Synthesis of Qualitative Research. Clin Child Fam Psychol Rev 2194–108. 2018. https://doi.org/10.1007/s10567-017-0244-3

CASTILLA, K. A proteção dos direitos humanos das crianças no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In J. F. Beltrão (Orgs.). Direitos Humanos dos Grupos Vulneráveis. Manual (pp. 43-70). Rede Direitos Humanos e Educação Superior:  Universitat Pompeu Fabra. 2014.

FEANTSA. Guide for developing effective gender-responsive support and solutions for women experiencing homelessness. 2021. http://bit.ly/Womensguide

FONSECA, C. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Runa, 40(2), 17–38. 2019.

GOBIERNO DE ESPAÑA. Alto Comisionado Contra la Pobreza Infantil del Gobierno de España. Informe Madre no hay más que una: monoparentalidad, género y pobreza infantil. Madrid: Gobierno de España. 2021.

GONÇALVES, M. A. B.; GUZZO, R. S. L. “Best Interests of the Child in Brazil and Theft of Children by the State”. CYC-Online 257, 38–48. 2020.

IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas, Informação Demográfica e Socioeconômica n.38. Rio de Janeiro: IBGE. 2021.

HOPE AND HOMES FOR CHILDREN. Beyond Institutional Care: A roadmap for child protection and care system reform for governments in Latin America and the Caribbean. 2020.

MDS. (2018). Boletim Mulheres no SUAS (Vol. 5). Brasília, DF: Autor.

MOREIRA, T. A. S. et al. Sobre ser mulher e mãe em situação de rua: invisibilidade na sociedade brasileira. Revista em Pauta 19, 121-137. 2020. doi: http://doi.org/10.12957/rep

PAIVA, I. L. de; MOREIRA, T. A. S.; LIMA, A. DE M. Acolhimento Institucional: famílias de origem e a reinstitucionalização”. Revista Direito e Práxis 10(2), 1405–29. 2019. doi:10.1590/2179-8966/2019/40414.

PASSOS, R. G. Mulheres negras, sofrimento e cuidado colonial. Revista em Pauta 18(45), 116-129. 2020. Doi: https://doi.org/10.12957/rep.2020.47219

Phipps, M., Dalton, L., Maxwell, H. & Cleary, M. (2018). Women and homelessness, a complex multidimensional issue: findings from a scoping review, Journal of Social Distress and the Homeless. doi: 10.1080/10530789.2018.1534427

ROBERTS, D. E. Poverty, Race, and New Directions in Child Welfare Policy, 1 WASH. U. J. L. & POL’Y 63 (1999). https://openscholarship.wustl.edu/law_journal_law_policy/vol1/iss1/7

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STRUFFOLINO, E.; MORTELMAN, D. Lone Mothers in Belgium: Labor Force Attachment  and Risk Factors. Lone parenthood in the life course: SpringerNature, pp 257-284. 2017.

WILLIAMS, E. P. Dreaming of Abolitionist Futures, Reconceptualizing Child Welfare: Keeping Kids Safe in the Age of Abolition. Honors Papers. 712. 2020. https://digitalcommons.oberlin.edu/honors/712

 

 

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