Reflexões sobre a Lei Anticrime: a (in)constitucionalidade do juiz das garantias

22/05/2020

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Popularmente conhecida como “Lei Anticrime”, a Lei nº 13.964/2019 promoveu alterações relevantes na legislação penal e processual penal. Entre avanços e retrocessos, a introdução do juiz das garantias representa significativo reforço em direção ao modelo constitucional acusatório, agora expressamente consagrado no Código de Processo Penal (art. 3º-A).

A mudança já estava incluída na versão original do projeto de reforma global do CPP (PLS nº 156/2009), que tramita na Câmara sob o PL nº 8.045/2010. É caracterizada, basicamente, pela substituição da regra de prevenção como fixação da competência (art. 83 do CPP) pela seguinte regra de impedimento: o juiz que participar da fase de investigação ficará impedido de atuar no processo (art. 3º-D do CPP).

Considerando as diferenças inerentes às peculiaridades de cada sistema processual penal, a divisão de funções jurisdicionais entre a investigação e o processo já é adotada em diversos países, como França, Itália, Espanha, Portugal e Alemanha [1].

A figura do juiz das garantias representa, também, uma tendência das reformas processuais penais ocorridas a partir do fim do século anterior em países latino-americanos, como Paraguai, Colômbia, Argentina e Chile [2], modelo referência para a alteração legislativa no Brasil.  

Para MAYA, a designação de um magistrado com competência exclusiva para atuação na fase pré-processual pretende atender a dois objetivos principais: (i) aprimorar a atuação jurisdicional criminal própria da fase de investigação e (ii) minimizar os riscos de contaminação do juiz responsável pela instrução e julgamento do processo, inerente ao contato (necessário) com os elementos informativos colhidos durante a investigação [3].

Isso porque o fato de o juiz participar dos atos de investigação preliminar, decidindo sobre os requerimentos de interceptação telefônica, busca e apreensão e prisões cautelares, por exemplo, pode conduzir à formulação de “pré-juízos” cognitivos que fulminam a imparcialidade necessária ao exercício posterior da democracia processual [4].

Esse fenômeno é explicado por Schunemann, por meio da Teoria da Dissonância Cognitiva. A teoria é fundamentada na premissa de que todo ser humano tende involuntariamente a buscar um estado de coerência entre suas opiniões, crenças e atitudes. Na medida em que existirem incoerências ou dissonâncias, haverá também uma pressão automática para sua redução, buscando-se convalidar as decisões anteriormente tomadas [5].

Transportando os estudos da psicologia social para o processo penal, pode-se dizer que, ao formar sua decisão, o magistrado precisa lidar com duas hipóteses geralmente antagônicas (acusação e defesa). Nesse sentido, o juiz tendencialmente se apegará àquela hipótese já construída a partir da sua participação nos atos de investigação, superestimando as informações consoantes e menosprezando aquelas dissonantes [6].

Isso significa que os elementos informativos colhidos na investigação, de forma unilateral e sem a observância das garantias processuais do contraditório pleno e da ampla defesa, são as primeiras informações disponíveis ao juiz a respeito do caso penal, as quais inevitavelmente exercerão influência sobre a forma de recebimento e valorização de informações posteriores durante a fase processual [7].

No mesmo sentido, para Coutinho a separação entre os papeis de controle da investigação e realização da instrução e julgamento é fundamental para a mitigação do chamado “efeito confirmatório” de decisões anteriores. Isso porque tomada uma decisão, a tendência comum do comportamento humano é de tentar buscar elementos ou argumentos direcionados à sua posterior confirmação, não à sua revisão ou reconsideração [8].

Conforme estabelece o art. 3º-C do CPP, a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/95), e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa-crime.  

O juiz das garantias é, assim, responsável pelo controle da investigação criminal e tutela dos direitos fundamentais do investigado (art. 3º-B, caput, do CPP). Uma observação é necessária: vedada expressamente a sua iniciativa (art. 3º-A do CPP), o juiz não preside o inquérito e nem orienta os atos de investigação. 

Caberá ao magistrado responsável pela fase pré-processual, em síntese: o controle da legalidade da prisão em flagrante; a decisão sobre requerimentos de prisão provisória e outras cautelares, bem como a sua prorrogação (assegurado o exercício do contraditório em audiência pública e oral), substituição ou revogação; a decisão sobre os requerimentos de interceptação telefônica e afastamento dos sigilos fiscal e bancário; e a homologação de acordo de não persecução penal ou colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação (art. 3º-B do CPP).  

Outras previsões da Lei nº 13.964/2019 também indicam o abandono de procedimentos notadamente inquisitoriais, anteriormente previstos no Código de Processo Penal. A extinção da decretação de prisão preventiva de ofício pelo juiz (art. 282, §2º), a obrigatoriedade da audiência de custódia (art. 310, §4º), a necessidade de revisão da prisão preventiva a cada noventa dias (art. 316, parágrafo único) e a nulidade decorrente da ausência de fundamentação das decisões (art. 564, V) são exemplos interessantes.  

No mesmo sentido, destaca-se a exclusão (ou não inclusão) dos elementos informativos de investigação dos autos do processo, que já não poderiam ser utilizados de modo exclusivo para fundamentar a sentença (art. 155, caput, do CPP).

Conforme estabelece o art. 3º-C, §3º, do CPP, os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria deste juízo, à disposição da acusação e da defesa, e não serão apensados aos autos enviados ao juiz da instrução e julgamento, salvo os documentos relativos às provas irrepetíveis e medidas de obtenção ou antecipação de provas.

Com isso, garante-se a eficácia da regra de impedimento prevista no art. 3º-D do CPP. Não é difícil concluir que os objetivos da previsão restariam frustrados se os autos do inquérito fossem mantidos à disposição do juiz da instrução e julgamento, que continuaria passível de contaminação por elementos de valor probatório limitado, obtidos de forma unilateral durante a investigação criminal.  

Ocorre que, antes da entrada em vigor da Lei Anticrime, a eficácia dos artigos 3º-A a 3º-F do CPP foi suspensa por tempo indeterminado pelo Ministro Luiz Fux, que concedeu parcialmente as medidas cautelares pleiteadas nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade de nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.   

A decisão de Fux, de 22.01.2020, revogou a liminar proferida pelo Ministro Dias Toffoli na semana anterior, que havia suspendido a eficácia dos artigos 3º-A e 3º-F do CPP pelo período de 180 (cento e oitenta) dias.

A decisão, que aguarda referendo do Plenário do STF, também suspendeu a eficácia por tempo indeterminado das seguintes previsões: art. 157, §5º, CPP (proibição de o juiz que conheceu a prova declarada inadmissível proferir sentença); art. 28, caput, do CPP (alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial) e art. 310, §4º, do CPP (ilegalidade da prisão pela não realização de audiência de custódia no prazo de 24 horas).

Segundo o Ministro, a inconstitucionalidade do juiz das garantias reside, sumariamente, nos seguintes fatores: (i) no âmbito formal, pela violação às normas de organização judiciária (art. 96, CF/88) e (ii) no âmbito material, pela ausência de dotação orçamentária e de estudos de impacto prévios para sua implementação, além do “impacto da medida na eficiência dos mecanismos brasileiros de combate à criminalidade”.

As justificativas, contudo, comportam reflexões.

Primeiro, a introdução do juiz das garantias não significa a criação de um novo órgão do Poder Judiciário. Trata-se de cisão funcional de competência já existente [9], matéria de direito processual penal de competência privativa da União (art. 22, I, da CF/88), conforme consignado pelo próprio Ministro Luiz Fux nos autos da ADI nº 4.414/AL [10].

Situação diversa é a da previsão contida no art. 3º-D, parágrafo único, do CPP, ao determinar que “[n]as comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízios de magistrados”.

A Lei deve apenas fixar a regra de impedimento, a forma pela qual se dará a substituição do juiz impedido é matéria reservada à organização judiciária de cada Tribunal (art. 96 e art. 125, §1º, da CF/88) [11]. Mas ainda que seja o caso de se reconhecer a inconstitucionalidade da referida previsão, a regra de impedimento prevista no caput do art. 3º-D continua válida.

De forma diversa, o art. 3º-E do CPP corretamente estabelece que “[o] juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”.

No âmbito da (in)constitucionalidade material, as reflexões se fundamentam na premissa de que o espaço jurisdicional do controle de constitucionalidade parece ser mais restrito do que aquele invocado pelo Ministro Luiz Fux.

Não bastasse o fato de que o suposto “impacto da medida na eficiência do combate à criminalidade” constitui um argumento meramente pragmatista, a discussão parece tratar-se menos da inconstitucionalidade da lei e mais da viabilidade prática da sua aplicação.  

Ocorre que, mesmo no plano prático, os desafios podem ser superados com boa gestão judiciária e regras de transição que possibilitem a introdução do juiz de garantias em âmbito nacional no sistema de justiça criminal.

Conforme relatório recentemente divulgado pelo CNJ [12], as comarcas de juízo único receberam apenas 17% dos processos criminais e 14% dos procedimentos investigatórios da Justiça Estadual em 2018, apesar de representarem 59% das unidades judiciárias de todo o país. Além disso, sete Tribunais de Justiça já contam com centrais de inquéritos policiais na capital (TJAM, TJGO, TJMA, TJMG, TJPA, TJPI e TJSP).  

Com efeito, o problema de maior relevância sobre a viabilidade de aplicação do juiz das garantias parece ser a vacatio legis da Lei nº 13.964/2019, de apenas 30 (trinta) dias (art. 20).

Um maior prazo de transição e implementação das medidas talvez seja necessário, possibilitando que os Tribunais possam implementar a figura do juiz das garantias com o devido planejamento orçamentário e de acordo com suas peculiaridades locais, a partir das diretrizes de organização judiciária que vierem a ser fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça. O problema é que não estabelecer um prazo também é decidir.

O Conselho Nacional de Justiça já instituiu grupo de trabalho voltado à elaboração de estudo sobre os efeitos da aplicação da Lei nº 13.964/2019 (Portaria nº 214/2019) e recebeu 111 (cento e onze) propostas de implementação do juiz das garantias [13]. Entre as sugestões, destacam-se a e criação de centrais de inquérito regionais para atender as comarcas pequenas da mesma região, a distribuição cruzada de processos em comarcas vizinhas.

Mas para a implementação eficiente do sistema de duplo juiz, toda solução passa pelo caminho da digitalização dos processos. Enquanto a Justiça do Trabalho lidera a migração de processos físicos para o meio digital [14], a informatização de processos criminais caminha a passos lentos em alguns estados, como Minas Gerais.

Um conselho final, dos colegas chilenos: a tarefa prioritária é a transformação cultural de abandono de resquícios inquisitórios “sin la qual cualquier reforma legal, por muy profunda que sea, no tendrá éxito. Ello exigirá un fuerte compromiso de los futuros jueces de garantia[15].

Trata-se, enfim, de uma modificação sistêmica em direção ao encontro do “lugar constitucionalmente demarcado das partes”, permitindo-se que caminhe no sentido do sistema acusatório e da democracia processual [16].

Sabe-se que não há solução simplista para a concretização desse conjunto de normas, e que há um longo percurso a ser percorrido. Mas a reorganização do sistema de justiça criminal já era necessária e urgente há tempos. Talvez este seja o primeiro passo.

 

Notas e Referências

[1] SILVA, Larissa Marila Serrano da. A construção do juiz das garantias no Brasil: a superação da tradição inquisitória. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Minas Gerais, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUBD-99QJAH/1/dissertacao_juiz_das_garantias.pdf. Acesso em: 08 mai. 2020.

[2] MAYA, André Machado. O juizado de garantias como fator determinante à estruturação democrática da jurisdição criminal: o contributo das reformas processuais penais latino-americanas à reforma processual penal brasileira. Novos Estudos Jurídicos, v. 23, n. 1, p. 77-78, abr. 2018. ISSN 2175-0491. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/13036. Acesso em: 05 mai. 2020.

[3] Ibidem, p. 74.

[4] LOPES JR., Aury; RITTER, Ruiz. A imprescindibilidade do juiz das garantias para uma jurisdição penal imparcial: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 13, n. 73, p. 14-15, ago./set. 2016. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=132262. Acesso em: 9 mai. 2020

[5] Ibidem, p. 18.

[6] Ibidem, p. 21.

[7] LOPES JR., Aury; RITTER, Ruiz, Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta que existe igualdade cognitiva... Boletim IBCCRIM, Ano 28, nº 330, p. 30, mai. 2020. ISSN 1676-3661.

[8] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas; CANI, Luiz Eduardo; BALTAZAR, Shalom Moreira. Do projeto de reforma do CPP ao projeto de lei “anticrime”: mirando a Constituição. CONJUR, ano 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-12/limite-penal-projeto-reforma-cppao-projeto-lei-anticrime. Acesso em: 07 mai. 2020.

[9] STRECK, Lênio Luiz. Juiz das garantias: do neoconstitucionalismo ao neo-inconstitucionalismo. CONJUR, ano 2020. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2020-jan-02/senso-incomum-juiz-garantias-chegamos-neo-inconstitucionalismo. Acesso em: 07 mai. 2020.

[10] A ADI questionava a constitucionalidade criação de uma vara criminal na capital do estado de Alagoas com competência exclusiva para processar e julgar delitos praticados pelo crime organizado. Conforme o Ministro Relator, Luiz Fux: “(...) a lei processual é aquela que cuida da delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, da coordenação de sua atividade, da ordenação do procedimento e da organização do processo – envolve, basicamente, a tríade jurisdição, ação e processo” (STF, ADI nº 4.414/AL, Min. Relator Luiz Fux, DJe: 17/06/2013).

[11] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Juiz das garantias: muito barulho por nem tanto. CONJUR, ano 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-28/eugenio-pacelli-juiz-garantias-barulho-nem-tanto. Acesso em: 05 mai. 2020.

[12] CONSELHO Nacional de Justiça. Dados estatísticos de estrutura e localização das unidades judiciárias com competência criminal. Ano 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/01/Relatorio-Estrutura-das-unidades-judiciarias-com-competencia-criminal.pdf. Acesso em: 11 mai. 2020.

[13] CONSELHO, Nacional de Justiça. CNJ divulga sugestões recebidas sobre juiz das garantias. Ano 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-divulga-sugestoes-recebidas-sobre-juiz-das-garantias/. Acesso em: 10 mai. 2020.

[14] Conforme o Relatório “Justiça em Números” do CNJ, a Justiça Trabalhista representa o segmento com maior índice de virtualização dos processos, com 100% dos casos novos eletrônicos no TST e 97,7% nos Tribunais Regionais do Trabalho. Em CONSELHO Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números. Ano 2019. Disponível em:  https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 11 mai. 2020.

[15] FRÍAS, Eduardo Gallardo. La Reforma Al Proceso Penal Chileno Y el Juez de Garantia. Boletim IBCRRIM, Ano 28, nº 330, p. 10, mai. 2020. ISSN 1676-3661.

[16] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente adequado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 46, n. 183, p. 103-115, jul.-set. 2009. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/194935. Acesso em: 12 mai. 2020.

 

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