REFLEXÕES EPISTÊMICAS SOBRE O TESTEMUNHO DAS PESSOAS DISPENSADAS DE DEPOR NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO  

02/02/2021

O excelente texto, que publico nesta coluna do Site Empório do Direito, é da lavra de dois importantes professores de Direito Processual Penal. Trata-se de uma relevante contribuição doutrinária para melhor compreensão do nosso Processo Penal. São eles:

Flávio Mirza Maduro, Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, Professor da UERJ e da UCP.

Diogo Rudge Malan, Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, Professor da UERJ e da FND/UFRJ.

Resumo: O presente artigo busca estudar, sob o prisma epistemológico, a pertinência da parte final do artigo 206, do Código de Processo Penal, haja vista que, após assinalar o dever de testemunhar, dispensa pessoas que possuam laços consanguíneos com o acusado de fazê-lo. Adiante, entretanto, finda por impor-lhes o testemunho, quando necessário.

O trabalho estrutura-se na busca da verdade, por meio das provas, notadamente a testemunhal, pois no processo penal se reconstrói um acontecimento pretérito, com relevância penal, a fim de que se chegue à culpa ou inocência do acusado. Assim, discute-se a pertinência da parte final do sobredito artigo legal para tal finalidade.

Introdução e delimitação do tema: O processo penal é o instrumento civilizado destinado à apuração de um delito, fato típico, antijurídico e culpável, imputado ao réu.

Tal se faz por meio das provas que levarão à conclusão pela culpa ou inocência. E, a prova testemunhal é um dos meios de prova postos à disposição do julgador com vistas a se desincumbir do hercúleo mister que é julgar.

Nas linhas abaixo, nossa mirada estará nela (a prova testemunhal), mais precisamente na parte final do artigo 206 do Código de Processo Penal. Com efeito, a prova testemunhal foi, historicamente, objeto de desconfianças, mas sempre esteve presente em diversos tipos de procedimentos, em todos os tempos e povos, ao longo da história.

Nessa toada, o supramencionado artigo 206, do vetusto Código de Processo Penal, sempre nos causou estranhamento, haja vista desobrigar o depoimento de certo grupo de pessoas, que possuem laços consanguíneos e/ou maritais com o acusado e, ao depois, afirmar que deveriam falar quando “(...) não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias.”. Tais são as pessoas dispensadas de depor que, quando o fazem, são denominadas informantes. Em tais situações, a doutrina oscila sobre o cometimento (ou não) do crime de falso testemunho pelo informante.

O objetivo do presente artigo é discutir a eficácia da parte final do sobredito dispositivo, sob o aspecto epistêmico, à luz da busca da verdade e da prova, no processo penal. Isso, porque, como regra, essas pessoas, pelos laços que possuem com o acusado, podem não auxiliar (para dizer o mínimo) na apuração.

É de se mencionar que, antes de adentrar na discussão, faremos breve incursão no direito estrangeiro, visando a averiguar o estado da arte alhures.

Tal definição, ainda franciscana, será melhor detalhada em tópico próprio.

Como bem escreveu Carnelutti: “Nenhum homem, se pensasse no que é necessário para julgar outro homem, aceitaria ser juiz.” Cf. CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal, tradução de Carlos Eduardo Trevelin Millan, 3ª tiragem, São Paulo: Editora Pillares, 2009, p. 45.  Cf. TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal, volume IV. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 460.

À guisa de exemplo, é de se ver a explanação de Rogério Lauria Tucci, ao tratar do processo penal romano, de cariz, eminentemente, acusatório, quando dos instantes finais da República, perante a quaestio. Com efeito, ao tratar da instrução, ressalta o professor das Arcadas que as provas eram de três espécies, a saber, per tabulas, per testes e per quaestiones.

A segunda, seria a prova testemunhal. Cf. TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos do processo penal romano. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 153-154.

Posto que sem previsão legal, consagrou-se a denominação informante, para designar o indivíduo que depõe sem prestar compromisso. Cumpre esclarecer, por oportuno, que alguns conceitos (e discussões) não serão, exaustivamente, trabalhados, pois o trabalho não comporta.

Dispensas de depor no direito estrangeiro O estudo do direito estrangeiro é assaz importante como método comparativo, guardadas, obviamente, as peculiaridades dos diferentes ordenamentos jurídicos.

Nada obstante, os lindes do presente trabalho não permitem um estudo de direito comparado. Logo, far-se-á, tão somente, uma breve incursão em ordenamentos estrangeiros, visando a perquirir normas similares àquela prevista no artigo 206 do Código de Processo Penal. Os ordenamentos jurídicos possuem, em geral, normas que impõem o dever/obrigação de testemunhar.

É, igualmente frequente, a dispensa do depoimento de pessoas próximas ao acusado,  expondo, Clariá Olmedo, que as legislações evitam, absoluta ou relativamente, o depoimento de um parente contra o acusado.

O motivo de tal dispensa reside, como leciona Jordi Nieva Fenoll, para alguns, na necessidade de se manter a higidez nas relações familiares e, para outros, na falta de credibilidade das declarações dos familiares.

Em sentido semelhante, Clariá Olmedo, renomado processualista argentino, alude à necessidade de se manter a coesão familiar, evitando-se a encruzilhada consistente em destruí-la ou mentir. 

Em França, diferentemente de outros países pertencentes à família da civil law, a exclusão do dever de testemunhar, conferida aos familiares e cônjuges, está prevista no Código Penal e não no de Processo Penal. O artigo 434-11, 1º, do Code Pénal, contém tal disposição excludente. Jean Pradel aduz que o “(...) devoir de témoigner n’est consacré en droit français par aucun texte penal d’ordre general.”.

Em verdade, é o artigo 10, do Código Civil Francês, que traz o dever geral (ou obrigação) de testemunhar, de acordo 6 No Brasil, artigo 206, CPP; na Itália, artigo 198, n. 1, CPP; na Espanha, artigo 410, LECrim; em Portugal, artigo 131, CPP.

No sentido do texto, confira-se NIEVA FENOLL, Jordi. Derecho procesal penal, Madri: EDISOFER, 2012, p. 250. O processualista de Barcelona aduz, ainda, que tal dispensa não é comum no Direito anglosaxão e cita o Direito inglês.

Sem embargo, como veremos, nos Estados Unidos da América existem normas que protegem relações de parentesco e maritais, dispensado o testemunho de pessoas próximas ao acusado.  Cf. CLARIÁ OLMEDO, Jorge A.. Derecho procesal penal, Tomo II, atualizado por Carlos Alberto Chiara Díaz, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, p. 315.  Nieva Fenoll, ibidem. Clariá Olmedo, ibidem. 11 Cf. PRADEL, Jean. Procédure pénale, 18ª ed., Paris: Éditions Cujas, 2015, p. 428. com a verdade. E, há raras exceções (uma delas está enunciada acima e, as outras, estão nos artigos 434-1 e 434-12, do Código Penal).

Na Itália, o artigo 199 do Codice di Procedura Penale isenta, como regra, os parentes próximos do acusado de deporem, salvo se eles tiverem apresentado a acusação ou forem vítimas do crime. Tal dispensa aplica-se, também, aos com vínculos adotivos (art. 199, n.3, CPPi). É imperioso que o juiz, sob pena de nulidade, advirta os parentes do acusado sobre o direito de se absterem de depor. Como bem salientou Franco Cordero, “(...) l'astensione mira a prevenire situazioni nelle quali l'eventuale falsa testimonanza sarebbe scriminata dall'art. 3841; e l'esimente compete anche a chi, avvertito, abbia deposto.”

Na Espanha, o artigo 416, n.1, da Ley Enjuiciamiento Criminal, isenta os parentes do acusado de deporem. E, o juiz os advertirá de tal dispensa. Entretanto, no dispositivo, há brecha para que a testemunha faça “(...) manifestaciones que considere oportunas, y el Secretario judicial consignará la contestación que diere a esta advertencia.”

Em Portugal, o artigo 134, do Código de Processo Penal, permite que familiares do acusado (arguido) se recusem a depor. E, o número 2, do mesmo artigo, prescreve que, sob pena de nulidade, devem ser advertidas sobre tal faculdade. Em obra específica sobre a prova testemunhal, Luís Filipe Pires de Sousa cita farta doutrina defendendo que não se leve a depor, contra o acusado, seus parentes. E, cita, acórdão do Tribunal Constitucional Português, acórdão n. 154/2009, de 25 de março de 2009, no mesmo sentido.

Verdade, prova (e prova testemunhal) e processo: uma aproximação necessária.

No presente tópico, serão apresentados os conceitos-chave a fim de que, no item 3, sejam feitas as conclusões pertinentes, fundadas nas premissas teóricas deduzidas. Aderimos, como se verá abaixo, à Tradição Racionalista da Prova, tal qual propugnada por William Twining.  Pradel, ibidem.  Cf. CORDERO, Franco. Procedura penale, 5a ed., Milão: Giuffrè, 2000, p. 660. Cf. PIRES DE SOUSA, Luís Filipe. Prova testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, p. 292-293.

O renomado tratadista inglês da prova leciona: “The characteristic assumptions of discourse about evidence within the Rationalist Tradition can be succinctly restated as follows: epistemology is cognitivist rather than sceptical; a correspondence theory of truth is generally preferred to a coherence theory of truth; the mode of decision making is seen as ‘rational’, as contrasted with ‘irrational’ modes such as battle, compurgation, or ideal; the characteristic mode of reasoning is induction; the pursuit of truth as a means to justice under the law commands a high, but not necessarily an overriding, priority as a social value.”. Cf. TWINING, William. The Rationalist tradition of evidence scholarship. In:____. Rethinking evidence: exploratory essays, Cambridge: Northwestern University Press, 1994, cap. 3, p. 32-91, p. 72- 74. 2.1)

A questão da verdade.  A busca pela verdade, ou pelo conhecimento verdadeiro, não é um desiderato jurídico. A rigor, é correto afirmar que ele se manifesta muito cedo nos seres humanos, como necessidade de acreditar nas coisas que percebem e de confiar no que as pessoas dizem.

Nada obstante, hodiernamente, é extremamente tortuoso saber o que é verdade. Isso, porque vivemos um paradoxo, qual seja: temos jornais, revistas, a internet etc., a difundirem informações, mas filtrá-las é tarefa hercúlea.

De todo modo, como veremos, pensamos que não se pode abandonar a busca pelo conhecimento verdadeiro, pela verdade. Em linha de princípio, é correto afirmar, posto que com todas as limitações existentes, qualquer ciência, ou saber humano, almeja conhecer a verdade. Mas, sobre qual verdade estamos falando? Qual seria sua concepção?

Antes de adentrar na questão proposta, cumpre mencionar a existência de um grupo de filósofos, epistemólogos, juristas etc. que não acreditam que se possa chegar à verdade (como correspondência) ou que ela nem sequer exista ou, ainda, os que pensam ser ela desimportante. Na seara jurídica, Piero Calamandrei aponta inconsistências no processo de reconstrução da verdade, notadamente em virtude da prevalência do modelo dispositivo. Aury Lopes Júnior, parecendo assumir a função persuasiva da prova, em detrimento da demonstrativa, entende que se deve abandonar a ideia de verdade, devido a seu “excesso. Sobre o tema, confira-se MIRZA. Flávio. Notas sobre a questão da verdade no direito processual. In: SILVEIRA, Carlos Frederico G. C. da; SALLES, Sergio de Souza e ROSA, Waleska Marcy (Orgs.). Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II, Petrópolis: UCP, 2009, p. 101-121. Entretanto, novas considerações foram, agora, agregadas.

No sentido do texto, confira-se CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia, 14ª ed., 2ª impressão, São Paulo: Editora Ática, 2011, p. 112.

Friedrich Nietzsche e Arthur Schopenhauer negam, grosso modo, a existência da verdade. O primeiro, que se enquadra no grupo dos céticos, sustenta ser a verdade uma ilusão, e aduz: “(...) as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.” Cf. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdades e mentiras no sentido extra-moral (Obras incompletas), tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres filho, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 48.

No início da referida obra, o prussiano ilustra, por meio de uma fábula, a efemeridade do conhecimento humano. Arthur Schopenhauer, também um cético no que diz respeito à verdade objetiva, entende que as coisas existem apenas para o pensamento, como representação ditada pela vontade. Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p. 35.

Dardo Scavino, após negar que existam fatos(premissa da qual discordamos, como demonstraremos), aduz que há somente representações e que as coisas (o mundo), após o giro linguístico, são construídas por meio da linguagem. Eis as suas palavras: “(...) alguém pode chegar a certas conclusões poe meio do raciocínio ou das demonstrações matemáticas, e estas conclusões podem ser verdadeiras, o que não significa que alguém chegue a compreender ou a representar como isso pode ocorrer “na realidade”.”. Cf. SCAVINO, Dardo. A filosofia atual: pensar sem certezas, tradução de Lucas Galvão de Brito, São Paulo: Noeses, 2014, p. 185. epistêmico”. E, que a mesma não seria um elemento fundante do sistema processual penal.

Por fim, não se pode deixar de mencionar a posição de Carlo Lessona, em sua monumental obra sobre a prova, cético quanto à busca da verdade, para quem a sanção jurídica deveria ser aplicada, mesmo que não se chegasse à verdade, pois seria isso preferível a não aplicação do Direito à espécie.

Lenio Streck, em Verdade e Consenso, sustenta que, após o linguistic turn, não se pode falar em verdade como correspondência.

Salah Khaled, em obra na qual discute a verdade como correspondência no processo penal, trilha caminho semelhante, negando tal possibilidade e aduz que a verdade deve ser produzida e não desvelada pelas coisas.

Na conformidade do adiantado acima, não concordamos com tais posições. Primeiramente, pensamos que a verdade seja sim um elemento fundante do sistema processual penal (e cível, lato sensu) e pressuposto de feitura da Justiça, ou seja, ideologicamente, o processo deve produzir uma decisão justa. Como bem acentua Peter Häberle, em perspectiva axiológica, a verdade é (primeiramente) um valor humanitário.

Entretanto, não se pode perder de vista que a busca pela verdade, como bem leciona Bernard Bouloc, ao falar sobre os limites à liberdade probatória, não pode se dar em desrespeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e nem ao direito de defesa.

A questão da busca pela verdade remonta às preocupações filosóficas antigas, mais precisamente a Aristóteles.

Pedimos vênia para indicar artigo, já citado (nota de rodapé), de um dos autores, com amplas notas explicativas. Cf. MIRZA. Flávio. Notas sobre a questão da verdade no direito processual. In: SILVEIRA, Carlos Frederico G. C. da; SALLES, Sergio de Souza e ROSA, Waleska Marcy (Orgs.). Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II, Petrópolis: UCP, 2009, p. 101-121 (sobre o assunto, especialmente, p. 106-108).  Cf. LESSONA, Carlo. Trattato delle prove in materia civile, volume I, 3a ed., Florença: Casa Editrice Livraria Fratelli Cammelli, 1922. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014.

Eis as suas palavras: “(...) a verdade terá que fundamentalmente ser tida como produzida (signo do Análogo) e não encontrada ou extraída das coisas, mesmo sob a forma relativa (signo do Mesmo).” Cf. KHALED JR., Salah H.. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial, São Paulo: Atlas, 2013, p. 596.

No sentido do texto, cf. BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, n. 47, jul./set., 1987, p. 92-98. Michele Taruffo, em lição que vem ao encontro da nossa, aduz: “La ideologia de los objetivos del proceso que aqui se destaca sostiene que éste debe tender a producir decisiones justas.”. Cf. TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, tradução de Jordi Ferrer Beltrán, 2ª ed., Madri: Editorial Trotta, 2005, p. 63. Cf. HÄBERLE, Peter. Diritto e verità, Turim: Einaudi, 1995, p. 105. 26 Eis a lição: “Quoique la manifestation de la vérité soit l’objectif capital du procès répressif, cette vérité ne peut être recherchée par n’importe quelmoyen. Il importe à la dignité de la justice et au respect qu’elle doit inspirer, de ne mettre en oeuvre aucun moyen qui attente aux droits fondamentaux de la personne humaine ou aux droits de la défense.” Cf. BOULOC, Bernard. Procédure pénale, 20a ed., Paris: Éditions Dalloz, 2006, p. 114. Cf. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: una contribución a la epistemologia jurídica, 2ª ed., Buenos Aires: Del Puerto, 2011, p. 49. Nesse percorrer pelos séculos, é lícito agrupar a ideia da verdade em três grandes concepções, a depender da língua que derivaram (hebraica, latina ou grega, respectivamente).

Assim, podemos falar em: i) verdade como consenso (predomínio da emunah); ii) verdade como coerência interna ou lógica (predomínio da veritas) e iii) verdade como correspondência (predomínio da alétheia).

A concepção de verdade como consenso, muito comum nas ciências exatas e biológicas, está alicerçada na dependência de um acordo entre pesquisadores e estudiosos. Havendo confiança entre eles, define-se um conjunto de convenções universais a serem respeitado por todos. São inúmeros os exemplos, a saber, estudos antigos afirmaram que a ingestão de doses elevadas de vitamina C seria benéfica, depois entendeu-se que não, pois o corpo só absorveria uma certa quantidade (60 mg). Discutiu-se a quantidade de cafeína que poderia ser ingerida, de ovos etc.

A ciência assim se movimenta, ou seja, as teorias, as explicações, as certezas vão se modificando, conforme os consensos vão mudando, baseados em novos experimentos e estudos.

Esse aspecto foi percebido, dentre outros, por Karl Popper e, no Direito Processual Penal, por Paolo Tonini. Entretanto, tal visão da verdade encontra-se, igualmente presente no Direito. Com efeito, Roberto Kant de Lima ensina que a verdade, como “(...) fruto de uma decisão consensual sistematicamente negociada”, predomina no sistema de administração da justiça criminal dos Estados Unidos da América.

E, isso valeria tanto para os casos em que há acordo (plea bargain) quanto para os que vão à Júri (quando o acusado se declara not guilty).

Não é o pensamento por nós adotado. Com efeito, num processo democrático, em que se busca descobrir a verdade, como pressuposto de aplicação da sanção penal, beyond a reasonable doubt, a prova deve espelhar o acertamento das alegações fáticas. Não se pode admitir uma verdade  Cf. Chaui, op. cit., p. 122.

Há outras formas de classificação, expostas por Nicolás Guzmán. Cf. Guzmán, op. cit., p. 49-67. 30 Cf. Chaui, op. cit., p. 122-124. 31 Há, ainda, uma quarta teoria sobre a verdade que é a pragmática. Trata-se de uma vertente da verdade como correspondência, mas que define “(...) o conhecimento verdadeiro por um critério que não é teórico, e sim prático.”. Cf. Chaui, ibidem. Cf. POPPER, K. R. Conjecturas e refutações, Brasília: UNB, 1972, p. 129.

Eis a lição do italiano: “Oggi è mutata la nozione di scienza. Come si è accennato, il post-positivismo ci insegna che la scienza è limitata, incompleta e falibile; ne deriva che ciascuna parte del processo penale ha un nuovo diritto: quello di mettere in dubbio l’ipotesi che è stata formulata da un’ altra parte o dal perito nominato dal giudice.” TONINI, Paolo. Manuale di procedura penale, Milão: Giuffrè, 2006, p. 289-290.  Cf. KANT DE LIMA, Roberto. Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. In: KANT DE LIMA, Roberto e MISSE, Michel (Coords.). Ensaios de Antropologia e de Direito, 4ª tiragem, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, cap. 5, p. 161-198, p. 173. consensual, pois, dentre outros aspectos, teríamos uma construção que não corresponde à realidade, levando o réu à condenação.

A verdade como coerência interna ou lógica tem como base o uso preciso da linguagem. A coerência é importante, mas não esgota o problema, notadamente quanto a questões que dizem respeito à matéria fática (ou melhor, à sua reconstrução no processo penal).

Pensemos numa história de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, por exemplo, não há que se duvidar de sua coerência interna, de sua lógica narrativa. Nada obstante, não se concebe que o narrado seja verdade. Valendo-se de outro exemplo, Michele Taruffo, ao trabalhar os conceitos de narrativa boa e verdadeira, consigna que “(...) Un giornalista può preferire una buona narrazione senza preoccuparsi troppo della sua veridicità, mentre un giudice potrebbe prefere una narrazione veritiera, anche se narrativamente infelice.”36 Ou seja, uma narrativa pode ter coerência lógica, mas, caso ela não espelhe, por meio das provas, a realidade, será imprestável para fins de condenação.

Como se não bastasse, tal concepção teórica pode servir ao arbítrio, na medida em que se pode construir uma narrativa lógica (interna, no texto), prescindindo das provas, e pugnar pela condenação.

Por fim, temos a verdade como correspondência/evidência. As raízes encontram-se nas lições de Aristóteles. Suas ideias foram sendo discutidas e elaboradas ao longo do tempo e São Tomás de Aquino falou em adequatio rei et intellectus, ou seja, de uma adequação entre a coisa e o intelecto.

Trata-se de concepção da verdade que a liga à realidade, ou seja, deve haver adequação entre o nosso intelecto e a coisa, a realidade e vice-versa. Giovanni Tuzet aduz: “(...) intendiamo la corrispondenza come una relazione fra linguaggio e mondo, fra enunciati da una parte (entità linguistiche) e fatti dall’altra (entità extralinguistiche). C’è verità quando un enunciato corrisponde al fato su cui verte6 .”  Cf. BUNGE, Mario. La ciencia. Su método y su filosofia, Buenos Aires: Sudamericana, 2001. 36 Cf. TARUFFO, Michele. La semplice verità. Il giudice e la costruzione dei fatti, Roma: Editori Laterza, 2009, p. 73.  

A teoria correspondentista será tratada em suas linhas principais, ou seja, não serão abordadas suas variáveis, desenvolvidas, dentre outros, por Tarski (teoria semântica) ou Austin (que em sua teoria se aproxima de Tarski e Russel).  Cf. Guzmán, op. cit., p. 49. Cf. TUZET, Giovanni. Filosofia della prova giuridica, Turim: G. Giappichelli Editore, 2003. Cf. Tuzet, op. cit., p. 71.

Pensamos que a verdade como correspondência seja a que se adequa ao que se busca no processo penal, em que a condenação precisa espelhar o que ocorreu no mundo fático. Nada obstante, sustentar a concepção teórica supra, não implica postura naive.

Não se está a falar de uma verdade tout court. Com efeito, o fato não se conseguir chegar a uma verdade absoluta, plena, não significa a relativização do conceito de verdade correspondentista ou uma postura de ceticismo quanto à sua existência. Como bem anotou Michele Taruffo, “Naturalmente nessuno parla di verità o di certezze assolute, che sono 34, e che infatti si riscontrano solo in alcune metafisiche e in alcune religioni integraliste.”

Luigi Ferrajoli, que defende a teoria correspondentista da verdade para o processo penal, alcunhando-a de verdade aproximativa, sustenta que a verdade, certa, absoluta ou objetiva, representa um modelo ideal, porém irrealizável. E, pontua suas limitações.

Diante do exposto, pensamos que a concepção teórica que melhor se coaduna com a noção de justo processo é a de verdade como correspondência, que assenta-se, metafisicamente, no pressuposto que o mundo real existe, independentemente do sujeito cognoscente e, gnosiologicamente, na possibilidade de conhecer o mundo real, posto que com imperfeições.

Prova testemunhal: Há um quê de lugar comum na afirmação de que a prova é o cerne do processo. Isso, porque é da análise dela, ou, mais precisamente, da correta verificação fática, que depende o resultado justo do processo penal. É dizer: tão somente o arcabouço probatório  Cf. Taruffo, La semplice…, p. 78. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: Teoria del garantismo penale, 7a ed., Roma: Editori Laterza, 2002, p. 23. Cf. Ferrajoli, op. cit., p. 24-36.

Em sentido semelhante, após importante resenha sobre as teorias acerca da verdade, a chilena Martina Cociña Cholaky, assim se manifesta: “En suma, la teoría de la verdad como correspondencia al exigir la concordancia del pensamiento con el objeto pensado, para aducir que se está frente a un enunciado verdadero, resulta consistente con lo que se requiere para instaurar un proceso penal racional.”. Cf. CHOLAKY, Martina Cociña. La verdad como finalidad del proceso penal, Santiago: AbeledoPerrot, 2012, p. 22-23.

No sentido do texto, confira-se Tuzet, op. cit., p. 81. 46 Sobre o tema (prova), os autores já se manifestaram alhures. Cf. MIRZA. Flávio. Reflexões sobre a avaliação da prova pericial. In: BASTOS, Marcelo Lessa e AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho (Orgs.). Tributo a Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 205- 223. 47 Cf. COSTA, Alfredo de Araújo Lopes da. Direito processual civil brasileiro, volume III, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 73. beyond a reasonable doubt poderá ilidir a presunção de inocência, de cariz constitucional e convencional.

Posto que a prova possua cariz metajurídico, seu uso na processualística apresenta diversas peculiaridades que, pelos limites do trabalho, não serão exploradas. Jordi Ferrer Beltrán aponta que as especificidades são derivadas de três limitações, quais sejam, as decorrentes do próprio processo judicial, as impostas pela coisa julgada e, por fim, as impostas pelas regras probatórias.

Ao que nos interessa, esclareceremos dois pontos, a saber, a incidência da prova e a sua função. A prova incide sobre a matéria fática. A bem da verdade, não sobre os fatos (fenômenos do mundo real/natural), que são eventos que ocorreram no passado e, a toda evidência, não podem ser provados, pois já ocorreram, esgotaram-se, findaram-se. Assim, provam-se alegações sobre fatos, com relevância penal, delimitados, objetiva e subjetivamente, pela imputação. E, em linha de princípio, tais alegações devem coincidir com os fatos.

Quanto à função da prova, não se nega que o destinatário direto da atividade probatória seja o Estado-juiz (talvez por isso, alguns autores sustentem que finalidade/função precípua da prova seja formar a convicção do juiz).52 Entretanto, o convencimento judicial deve espelhar a verdade, em sua concepção correspondentista. O juiz não pode estar “convencido” de algo que não ocorreu, sob pena de, odiosamente, condenar um inocente.

Nessa toada, é lícito afirmar que a função persuasiva da prova não pode ser acolhida, em detrimento da demonstrativa. Afirmar que a prova  No sentido do texto, confira-se GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flavio Luiz e MORAES, Maurício Zanoide (Coords.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover, São Paulo: DPJ, 2005, p. 303.

Dizer que a prova é uma categoria metajurídica, significa afirmar que ela não pertence ao “mundo do Direito”, ou seja, que não se trata de uma categoria jurídica, stricto sensu, como o comodato, o processo, dentre outras categorias.

Trata-se de ferramenta que o Direito se utiliza, mas que pertence à realidade da vida (a física, a matemática, a química, só para ficar com alguns exemplos, dela se utilizam). No mesmo sentido, BENTHAM, Jeremias. Tratado de las pruebas judiciales, Granada: Comares, 2001, p. 15.

Para uma visão mais detalhada, confira-se BÉLTRAN, Jordi Ferrer. Prova e verdade no direito, tradutor Vitor de Paula Ramos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 60-65. 51 No sentido do texto, UBERTIS, Giulio. Fatto e valore nel sistema probatorio penale, Milão: Giuffrè, 1979, p. 90.

A propósito, Hélio Tornaghi: “A atividade probatória tem como finalidade principal formar a convicção do juiz.”. Cf. Tornaghi, op. cit., p. 198.

Para mais esclarecimentos sobre as funções persuasiva e demonstrativa da prova, veja-se TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, tradução de Jordi Ferrer Beltrán, 2ª ed., Madri: Editorial Trotta, 2005, p. 349-357. O italiano filia-se à corrente que entende ter a prova função demonstrativa; ter função demonstrativa significa fundar sua ideia na evidência, “(...) concebida como a força diante da qual todo pensamento do homem normal tem de ceder.”

Noutro giro, prestigiar a função persuasiva da prova pode levar ao arbítrio, na medida em que o julgador pode “ter certeza” de que os fatos se passaram de uma maneira, pois aderiu “ao melhor argumento” ou “o discurso mais palatável” ou, ainda, ao mais “coerente”.

Enfim, é correto afirmar que é tênue a linha entre persuasão e arbítrio, pois não se poderá verificar, empiricamente, a matéria fática.55 Sendo assim, a prova deve demonstrar que o fato típico, antijurídico e culpável, com todas as suas circunstâncias, ocorreu beyond a reasonable doubt, em qualquer caso penal.

A prova testemunhal é uma das mais usadas em processo penal e, segundo alguns, a mais importante. A testemunha, que não é parte e não pode, evidentemente, ser interessada no resultado do processo, depõe sobre fatos ocorridos no passado e que foram percebidos por seus sentidos.

Trata-se de pessoa alheia às pretensões veiculadas pelas partes e que tem o dever de falar a verdade. Nada obstante, a prova testemunhal apresenta problemas epistêmicos importantes.

A bem da verdade, a existência de testemunhas imparciais é a exceção (e não a regra). A testemunha, no mínimo, conhece a parte que a arrolou, salvo em casos raros, como, por exemplo, acidentes em locais públicos. Cumpre mencionar que, mesmo nesses casos, suas emoções, empatias, dentre outros sentimentos, podem turvar sua narrativa (que deveria ser imparcial).

Imagine-se, agora, tal situação trasladada para o seio familiar, 54 Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 324. Conforme Tuzet: “(...) quello che interessa nell’ambito del processo e della prova giuridica sono le pretese fattuali suscettibili di essere verificate o falsificate empiricamente.”. Cf. TUZET, Giovanni. Filosofia della prova giuridica, Turim: G. Giappichelli Editore, 2003, p. 78.

Equivocadamente, encontra-se quem entenda que “(...) o nível de convicção exigido para a condenação variará de acordo com a complexidade do crime, (...)”. Cf. DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. As lógicas das provas no processo: prova direta, indícios e presunções, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 286. Aliás, o autor parece confundir conceitos, pois diz filiar-se à teoria correspondentista da verdade e, em seguida, sustenta que provar é argumentar.

Ora, a verdade como correspondência impõe a visão demonstrativa da prova, haja vista serem conceitos complementares. Cf. TSCHADEK, Otto. La prueba: estudio sobre los medios de prueba y la apreciación de la prueba, tradução de Ernesto Volkening, Bogotá: Editorial Temis Libreria, 1982, p. 23.

Esse aspecto é mencionado, também, por Mario Chiavario, que aduz ser a testemunha a “(...) persona chiamata a narrar le proprie percezioni relative ai fatti da accertare processualmente (...)”. Cf. CHIAVARIO, Mario. Diritto processuale penale, 5ª ed., Turim: Utet Giuridica, 2012, p. 241.

Hélio Tornaghi leciona: “O testemunho é a fonte por excelência da certeza histórica.”. Cf. Tornaghi, op. cit., p. 460. 60 Cf. GOLDMAN, Alvin I. e McGRATH, Matthew. Epistemology: a contemporary introduction, Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 205-223 ou seja, para a necessidade de se depor contra um parente.

Por tal razão, é lícito concordar com Luis Muñoz Sabaté quando aduz ser inaceitável pensar num estado químico de pureza quanto à neutralidade do testemunho.61 Entretanto, ao relatar suas percepções, a testemunha transmite conhecimento e o Direito vê suas palavras como um meio de prova, apto a (conjuntamente com outros) condenar o acusado.

Diante disso, aderimos à lição de Giovanni Tuzet que propõe duas diretrizes epistêmicas quanto ao valor probatório do testemunho, a saber:

principio di credulità e ii) principio di diffidenza. O primeiro pressupõe que se acredite em tudo que foi dito, salvo se houver razões para duvidar. O segundo é o oposto, ou seja, não creio no que foi dito, “(...) salvo che ci siano ragioni per ritenerlo correto.”.

No processo (penal), o principio di diffidenza deve prevalecer, sendo certo que o valor do testemunho deve ser aferido caso a caso, atendendo a diversos critérios, tais como sinceridade, capacidade de memória, objetividade e sensibilidade da testemunha.

Ao trabalho, importa o aspecto da sinceridade que, como regra, não se observa em declarações de familiares contra seus entes queridos. Isso, porque é difícil crer, por exemplo, que uma mãe testemunhará contra seu filho, falando a verdade. Trata-se de conduta antinatural que, quando ocorre, é noticiada pela mídia com estardalhaço e estupefação. A toda evidência, estamos diante de um comprometimento epistêmico.

0 processo penal: Em perspectiva técnico-jurídica, o processo penal define-se como um conjunto ordenado de atos, realizados em contraditório, que cria uma relação jurídica intersubjetiva, gerando direitos, deveres, ônus e faculdades, visando a dar satisfação à pretensão deduzida em Juízo.

Em verdade, cria-se uma relação jurídica, visando, primordialmente, à satisfação de uma pretensão.65 61 Cf. SABATÉ, Luis Muñoz. Técnica probatoria: estudios sobre las dificultades de prueba en el processo, 3ª ed., Barcelona: Praxis, 1993, p. 336. Cf. Tuzet, op. cit., p. 212. 63 Cf. Tuzet, ibidem.

Em sentido semelhante, veja-se Afrânio Silva Jardim, in verbis: “Conceituamos o processo como um conjunto de atos jurídicos, unidos forma orgânica e teleológica, necessários ao julgamento ou atendimento prático da pretensão do autor, ou mesmo, de sua admissibilidade.”. Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Estudo sobre os pressupostos processuais (processo penal). In:____. Direito processual penal, 11ª ed., rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, cap. 3, p. 51-58, p. 52. 65 Cf. GUASP, Jaime. La pretensión procesal, Madrid: Ed. Civitas, 1981.

Impõe-se consignar que, para além do aspecto técnico, o processo penal possui significado ético e político,66 sendo um fenômeno cultural. E, como bem salienta Claus Roxin, trata-se de um verdadeiro sismógrafo de um Estado.

Nessa toada, é lícito afirmar, na conformidade das normas constitucionais e convencionais, que o processo penal deve ser um garante dos direitos e garantias fundamentais, como expressão última da dignidade da pessoa humana.

Deve, portanto, ser uma faceta democrática, num Estado que se queira Democrático e de Direito. O processo orienta-se ao futuro, rumo ao provimento final, de modo linear. Entretanto, é um instrumento de reconstrução de um fato histórico. É, por conseguinte, comum a afirmação no sentido de que o juiz atua como historiador.

É certo que há autores, como Larry Laudan, que entendem não ser o processo penal um motor epistêmico apto à correta reconstrução fática. Escrevendo sobre o processo penal estadunidense, aduz, em linhas gerais, que as regras probatórias, feitas para beneficiar o réu, impediriam a descoberta da verdade. Aduz, ainda, que o alto grau de subjetividade do julgamento pelo Júri atrapalharia a descoberta da verdade, pois não se prestigiaria a evidência, mas a persuasão na apresentação das provas pelos advogados. Consequentemente, haveria comprometimentos epistêmicos.

Não se olvida que o processo, tanto lá quanto aqui, possua imperfeições. Mas, isso não pode levar a uma postura cética. É preciso que se usem todas as técnicas e saberes humanos disponíveis na reconstrução do fato histórico-penal, deduzido na acusação. E, é a prova que irá nortear/demonstrar como tudo se passou, espelhando, no processo, a concepção correspondentista da verdade.

 

Conclusão: Em face do exposto, é lícito esposar nossas conclusões.

No mesmo sentido, SILVA, Germano Marques da. Direito processual português: noções gerais: sujeitos processuais e objecto, 7ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 18. Cf. CHASE, Oscar G.. Law, culture, and ritual: disputing systems in cross-cultural context, New York: New York University Press, 2005, p. 1.  “(...) el Derecho procesal penal es el sismógrafo de la Constitución del Estado.”. Cf. ROXIN, Claus. Derecho procesal penal, tradução de Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor, 25ª ed., Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2000, p. 10. Cf. Cordero, op. cit., p. 377.

Conforme observa Michele Taruffo: “La analogía se basa habitualmente en el hecho de que el juez y el historiador tienen frente a sí el problema de reconstruir un hecho individual del passado, no repetible y no directamente conocido, (...)”. Cf. Taruffo, La prueba..., p. 336. Cf. LAUDAN, Larry. Truth, error, and criminal law: an essay in legal epistemology, New York: Cambridge University Press, 2006. Jordi Nieva Fenoll, leciona que a dispensa do depoimento de familiares: i) é um resquício de prova legal (ou tarifada), vindo desde a Roma antiga; ii) que, hodiernamente, não se pode admitir tal dispensa, pois é inadmissível que razões familiares sirvam a encobrir crimes horríveis e iii) diz, ainda, que não raro, os familiares são os únicos conhecedores das condutas criminosas praticadas por seus parentes, notadamente, em casos de violência doméstica.

Assim, conclui o barcelonês, que deve desaparecer a dispensa do testemunho de familiares, salientando que eles devem ser ouvidos como interessados. E, tal fato deve ser levado em conta pelo julgador, quando da valoração do depoimento.

Não aderimos a tal ensinamento. Com efeito, é um dos escopos sociais da jurisdição a feitura da justiça, ao ensejo do julgamento do caso penal.  E, o processo penal, posto que imperfeito, é o instrumento apto a tal fim. Mas, para isso, é necessário que se chegue à verdade, em sua concepção correspondentista.

Longe de representar uma visão ingênua, a verdade, enquanto valor humanitário e componente da feitura da justiça, deve ser perseguida, valendo-se os sujeitos do processo de todos os saberes (e técnicas) postos à disposição, em determinada quadra histórica.

Evidentemente, tal pretensão deve respeitar os direitos e garantias fundamentais do processo (vedada, pois, práticas como a hipnose, o ministramento de soro da verdade etc.).

Sustentar tal noção (de verdade como correspondência), impede que decisões sejam “(...) fruto de una suerte de loteria o de la mera discrecionalidad de los jueces, sino que se atienen al ideal de justicia, (...).”

Assim, ou as alegações fáticas estão provadas e tal testemunho será despiciendo, ou não será com o depoimento de um parente que se chegará à verdade. Nessa toada, não parece proveitoso, para dizer o mínimo, que se imponha o dever de depor, concorde com a verdade, a pessoas que possuam laços parentais com o acusado.

Como bem sintetizou Luís Filipe Pires de Sousa, em trabalho específico sobre a prova testemunhal: “Dificilmente logrará a testemunha erradicar o “apelo do sangue”, sendo induzida atuar parcialmente e a mostrar a sua inclinação por uma parte.

A testemunha incorre aqui, naturalmente, num dilema qual seja o de escolher entre mentir ou Cf. Nieva Fenoll, op. cit., p. 250-251. Cândido Dinamarco, em lição que vem ao encontro da nossa, leciona que entre os fins do Estado (na atualidade) “(...) figura o valor Justiça como objetivo-síntese da jurisdição no plano social.”. Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, 6ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 293.

Não se entrará na tormentosa discussão acerca das teorias da justiça, estudada pelo Direito, Filosofia, Religião, apenas para ficar com alguns exemplos. Cf. Martina Cociña Cholaky, op. cit., p. 23. prejudicar o familiar.”.

Sustentamos, pois, de lege ferenda, a revogação da parte final do artigo 206, do Código de Processo Penal, por sua absoluta impropriedade, mantendo-se a dispensa do depoimento de familiares em qualquer situação, cumprindo ressaltar que os casos de violência doméstica, lembrados por Nieva Fenoll, não teriam o condão de afastar as considerações expendidas (a exceção não pode se tornar a regra). Cf. PIRES DE SOUSA, Luís Filipe. Prova testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, p. 291.

 

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