Reflexões acerca das guerras, do Direito e dos refugiados

20/08/2016

 Por Martina Mariano Spanemberg e Bruna Fernanda Bronzatti - 20/08/2016

A história da guerra se confunde com a história da civilização humana, na medida em que foi um fenômeno interpretado e justificado de diversas formas, bem como influenciado principalmente pela religião. Na pré-história a guerra era associada à caça, isto é, os vencidos eram mortos por tribos canibais ou utilizados em sacrifícios religiosos. Posteriormente, os vencedores passaram a manter vivos os vencidos, para servir-lhes como escravos.

Na Grécia Clássica, ao tentar justificar a escravidão, Aristóteles colocou a guerra como uma caçada do ser humano ao seu semelhante, dizendo que existiam homens predestinados a servir, mas não o faziam voluntariamente, devendo, portanto, ser forçados a aceitar seu destino. Já influenciada pela religião, a guerra passou a ser vista como justiça divina, inclusive, no Antigo Testamento há passagens que mostram batalhas que foram vencidas graças à intervenção de um Deus.

O cristianismo introduzirá, posteriormente, o conceito de guerra justa, onde a ordem justa e pacífica deve ser preservada, e guerras nesse sentido são necessárias, desde que atendidos os requisitos fundamentais: justa causa, autoridade legal e intenção legítima. Antes da Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, os católicos passaram a ver os infiéis como uma ameaça ao seu poder, assim, surgiram as Cruzadas, guerras justas e inquisição como uma forma de combatê-los.

No período moderno, Nicolau Maquiavel irá criticar o conceito de guerra justa, afastando do conceito de guerra a religião e moralidade, pois para ele tudo deveria estar subordinado à razão de Estado. Todavia, a religião voltará a exercer influência, devido às guerras originadas da Reforma Protestante e respectiva Contra Reforma.

Acerca da origem das guerras, Alberico Gentili coloca que a guerra se origina da impossibilidade de compor judicialmente o litígio entre os povos livres. A Guerra dos Trinta anos, que teve como elemento catalisador as disputas religiosas decorrentes das reformas protestantes do século XVI, encerrada com o Tratado de Vestfália, teve como observador Hugo Grotius, considerado pai do Direito Natural Racionalista, que é base dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário.

Grotius introduziu o conceito de neutralidade (válido até os dias atuais), situação em que outras nações não viam qualquer razão moral para intervir no combate. Hugo Grotius foca na guerra como instrumento de paz, pois em sua opinião “a própria guerra nos levará em seguida à paz como a seu último fim” (GROTIUS, 2004, p.71).

O iluminismo também está na base dos direitos humanos bem como do direito internacional humanitário, época em que a Europa desenvolveu uma teoria que diferenciou os combatentes dos não combatentes. Jean Jacques Rousseau afirmou que a guerra não é uma relação de homem para homem, e sim de Estado para Estado, dando um sentido público a esse fenômeno. Já Immanuel Kant coloca que a guerra é “somente o triste meio de necessidade para afirmar seu direito pela força no estado de natureza” (KANT, 1989, p. 30-33), ou seja, o estado de guerra é um estado de natureza e a paz deve ser instituída para a cessação das hostilidades.

Na Grécia (Séc. IX a.C.), no que tange à guerra, tudo era permitido e a paz advinha de pactos. Já no Direito Romano, havia o Jus Gentium, que objetivava proteger os estrangeiros, uma vez que estes não possuíam direitos, nem eram reconhecidos como cidadãos. Nos séculos XIV e XV, percebe-se uma crise do Cristianismo Ocidental e a ascensão dos Estados, qualificados pela soberania e unificação do poder. Surge uma pluralidade de Estados soberanos, que utilizavam o denominado uso legítimo da força para proteger-se.

O Direito Internacional Humanitário (DIH) como instrumento de proteção da dignidade da pessoa humana 

O Direito Internacional Humanitário faz parte do Direito Internacional Público, sendo um conjunto de normas que, em tempos de guerra, objetiva proteger os não combatentes (população civil, combatentes feridos, prisioneiros de guerra, etc), isto é, visa evitar e limitar o sofrimento humano, preservando sua dignidade.

A dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e é considerada como uma meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito, porque a destruição da dignidade implica na destruição da pessoa” (SARLET, 2002, p. 27-28).

Diante do conceito de dignidade cunhado por Ingo Wolfgang Sarlet, verifica-se que, apesar de ser algo buscado por praticamente todas as sociedades, valor máximo em muitas Constituições, quando uma guerra se inicia, a dignidade desaparece, implicando na destruição do próprio ser humano, uma vez que é tratado como objeto, massa de manobra, não como um fim em si mesmo.

Como se observa comumente na mídia, muitas pessoas estão deixando seu país de origem em busca de uma vida melhor, da dignidade perdida, arriscando suas vidas em embarcações precárias, na esperança de encontrar abrigo e compaixão por parte dos Estados, o que se tornou um grande problema social mundial, ao qual não se tem dado a devida atenção, como se verá adiante.

Assim, todo esse contexto está a ferir a dignidade humana, uma vez que “o homem e, duma maneira geral todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre que ser considerado simultaneamente como um fim” (KANT, 1980, p.134-135). 

A saga dos refugiados

Somente em 2015 aproximadamente 1.700 refugiados e migrantes morreram por afogamento no Mediterrâneo, quando tentavam chegar à Europa em embarcações precárias controladas por traficantes de pessoas.

A maioria dessas pessoas fogem de países arrasados pela guerra, como Síria, Afeganistão, Sudão e Iraque. Outras por que são perseguidas por suas opiniões políticas, torturadas e, inclusive, ameaçadas de morte se ficassem em seus países. Em 2014, as pessoas vindas da Síria e Eritréia representavam quase a metade das aproximadamente 170.000 pessoas que chegaram à Itália de barco.

A Convenção de Refugiados de 1951, que criou a Agência da ONU para refugiados (ACNUR), conceitua estes indivíduos como sendo alguém que “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país”.

Assim, é possível observar que os refugiados não deixam seus países apenas em virtude das guerras, mas também por perseguições que abrangem os mais diversos fatores, envolvendo milhões de migrantes econômicos. É visível uma nítida diferença entre os refugiados e migrantes, e por esta razão, são tratados de maneira muito diferente perante o direito internacional.

Os migrantes econômicos deslocam-se para melhorar de perspectiva econômica. Já os refugiados deixam suas origens para salvar suas vidas ou preservar sua liberdade. Eles não possuem proteção de um Estado soberano e de fato muitas vezes é seu próprio governo que ameaça perseguí-los.

Os refugiados são tratados de maneira distinta dos migrantes pela sociedade internacional, haja vista que os primeiros são vistos como um fardo para o país receptor. Se outros países não os aceitarem em seus territórios, e não os auxiliarem, poderão estar condenando estas pessoas à morte ou a uma vida sem sustento e sem direitos, que é o que tem se evidenciado, na medida em que essas pessoas estão tão fragilizadas e acabam aceitando péssimas condições de vida, de trabalho, de moradia, pois tudo lhes parece melhor do que estar no contexto de guerra e perseguição que os forçaram a migrar.

Os refugiados são uma ameaça?

Nos últimos tempos os refugiados têm sido vistos como uma ameaça a ser combatida, sob diversos argumentos: de que eles vão tirar postos de trabalho dos cidadãos de um determinado Estado, que são terroristas e aumentam a criminalidade nos países receptores, dentre tantas outras teses sustentadas. Logo, sob esse prisma, entendem ser necessário fechar as fronteiras.

Desde o ataque às torres gêmeas, no ano de 2001 e, principalmente nos últimos meses, diante dos ataques terroristas aos países como a França e Alemanha, e do surgimento do Estado Islâmico, foi criado um estereótipo de que todo refugiado é terrorista, restringindo ainda mais a entrada nos países da União Europeia.

A questão que se coloca é por que os refugiados despertam medo na sociedade internacional? Talvez seja porque eles colocaram em cheque conceitos que até então estavam acabados, como Soberania, Estado, território, fronteiras, etc. O sociólogo Zygmunt Bauman tem discutido em suas obras a liquidez das relações sociais. Esse tipo de vida líquida que nos permeia, faz com que as relações sejam uma constante incerteza. Em seu livro “Vidas Desperdiçadas”, Bauman coloca os refugiados e deslocados como “refugos da globalização”.

Aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário aos refugiados

Diante do exposto até aqui e do cenário mundial dotado de conflitos, um sentimento de frustração e impunidade assola a todos. É notório que não há falta normas de Direito Internacional Humanitário nem de Direitos Humanos, o problema reside na sua efetivação, uma vez que a maioria dos Estados se utiliza da soberania para se furtar de cumprir com suas obrigações internacionais, esquecendo-se do princípio da cooperação internacional.

O fato é que os indivíduos não deixarão de fugir da guerra, da fome, da perseguição e da pobreza, de nada adiantando fortalecer as fronteiras, na tentativa de criar uma “Europa fortaleza”. Oferecer-lhes vias para pedir asilo sem riscos e legalmente é medida que se impõem. Além disso, os países devem dar oportunidade aos refugiados de mudar de vida até que possam retornar ao seu país de origem.

Enquanto não houver um diálogo entre as nações sobre essa questão, uma medida paliativa deve ser tomada, ou seja, é necessário que seja prestado um socorro mais efetivo aos refugiados que chegam pelo mar, para evitar que ocorram tantas mortes. Sob esse viés, os países da União Europeia poderiam dividir os custos empregados em material e pessoal de salvamento.

Verifica-se que a história revela que o fenômeno da guerra foi objeto de diversas interpretações e justificações. Ademais, as guerras iniciam facilmente e causam um sofrimento intangível a todos os envolvidos. Nesse contexto, a dignidade humana tem sido constantemente violada, e isto tem se mostrado em evidência no que tange aos refugiados, que se lançam ao mar fugindo de guerras, perseguições políticas, pobreza, em busca de um por vir melhor.

A União Europeia e o mundo como um todo tem sido negligente com os refugiados, pois não basta fechar as fronteiras e ignorar estes indivíduos que não vão deixar de sair de seus países de origem diante de um contexto de violação de direitos.

O refugiado é totalmente despido de sua dignidade, de cidadania, se tornando mero objeto. Porém, é necessário lembrar que ele não é apenas um corpo boiando no mar, ele é um ser humano, dotado de dignidade, sujeito de direitos. Assim, os Estados têm de se humanizar com a questão dos refugiados e pensar em medidas efetivas, não meramente protelatórias.


Notas e Referências:

GROTIUS, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Tradução de Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2004. V. 1. Título original: De Jure Belli ac Pacis.

KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Antonio de A. Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 2ª ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2004.

http://www1.folha.uol.com.br/especial/2015/refugiados/

http://www.acnur.org/portugues/

https://anistia.org.br/sete-perguntas-sobre-os-refugiados-e-migrantes-que-estao-morrendo-mediterraneo/


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Bruna Fernanda Bronzatti

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Bruna Fernanda Bronzatti é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ/RS e bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.

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Martina Mariano Spanemberg é Acadêmica de Direito da Unijuí, estagiária na Defensoria Pública. 

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Imagem Ilustrativa do Post: refugee dreaming // Foto de: Hunter // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/hunters_green/4826539989/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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