REFLEXÃO TEÓRICA SOBRE O PROCESSO PENAL (terceira e última parte)

14/04/2020

7. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENAL

7.1. A influência da ideologia sobre o processo.

O Direito, como manifestação cultural do homem, sofre condicionamentos e reflexos da estrutura econômica e social que o gerou. Por sua vez, num verdadeiro evoluir dialético, este mesmo Direito vai atuar sobre a sociedade, sofrendo aí novas mutações estruturais, na sua aplicação prática.

Em sendo assim, não poderia o Direito deixar de trazer em seu bojo uma forte carga de ideologia política. Como bem explica a teoria tridimensional do professor Miguel Reale, o Direito se compõe de três elementos, valor, fato e norma, sendo certo que a correlação entre eles é de natureza funcional e dialética, “dada a implicação-polaridade existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante do processo jurídico, numa dialética de implicação e complementaridade”.

Destarte, embora em menor escala que o Direito Material, o Direito Processual recebe o fluxo ideológico do sistema, estruturando-se em conformidade com os valores aceitos e cultuados pelo grupo societário. Isso se faz sentir de maneira indelével quando, através de fecunda generalização e abstração, extraímos dos sistemas positivos os seus princípios informadores. Conforme observa Jorge W. Peyrano, “la elección por parte de un ordenamiento dado de algunos de los términos a que se reduce la nónina de princípios generates del proceso civil, depende del clima político-instituional que vive la comunidad respectiva”.

A toda evidência, com mais razão ainda, isto vale para o processo penal. Assim, a eleição por parte do sistema processual penal de um ou outro princípio dependerá do desenvolvimento político e social, dos valores éticos e democráticos cultuados pela sociedade.

Por outro lado, sempre haverá uma posição de compromisso entre as ideias em choque, não se encontrando, em sistema jurídico algum, a adoção pura e absoluta de um determinado princípio, pois o seu antitético tem sempre guarida como fator de mitigação do princípio prevalente. Vale dizer, o critério é mais de preponderância do que de exclusividade.

 

7.2. Princípios fundamentais do processo penal.

Para o ilustre mestre e magistrado Eliézer Rosa, os princípios processuais são ideias diretoras dentro da sistemática dos Códigos de Processo. Eles encarnam o conteúdo de política processual.

Assim, o legislador formula o princípio e o situa dentro do código, ou deixa que o intérprete tenha o trabalho de procurá-lo e determinar, dentro da vasta teoria geral do processo.

Humberto Cuenca nos diz que a doutrina mais autorizada reconhece que os princípios processuais são extraídos do direito positivo, estando nele consagrados de forma expressa ou implícita. Fica, pois, refutada a concepção de Jaime Guasp sobre os princípios supralegais de direito processual, baseados no que chamou de “derecho natural procesal civil”.

Como explica o professor Frederico Marques, o estudo dos princípios do processo se situa no limiar da dogmática processual, ou melhor, nos lindes desta com a zona deontológica em que as normas do direito positivo são examinadas à luz de cânones éticos e políticos.

Neste passo, pela própria natureza do trabalho, vamos fazer uma superficial abordagem dos princípios fundamentais que informam o processo penal, numa apertada síntese. Desde logo, esclarecemos que só nos ocuparemos com aqueles princípios que se refiram diretamente ao processo, vale dizer, não estudaremos os que informam a jurisdição penal, a ação penal, a prova penal, o procedimento etc.

A nosso juízo, os princípios mais importantes para o processo penal moderno são o da imparcialidade do Juiz e o do contraditório. Pode-se mesmo dizer que os demais princípios nada mais são do que consectários lógicos destes dois princípios reitores.

Assim, o princípio da demanda ou da iniciativa das partes, próprio do sistema acusatório, decorre da indispensável imparcialidade do órgão julgador. Sem ela, toda a atividade jurisdicional restará viciada.

O próprio princípio do “Juiz Natural”, relativo à jurisdição, tem como escopo assegurar adredemente a imparcialidade dos órgãos jurisdicionais.

A grande dificuldade do processo penal moderno é compatibilizar este indispensável princípio da imparcialidade do Juiz, com a busca da verdade real ou material, na medida em que a outorga de poderes instrutórios pode, ao menos psicologicamente, atingir a sua necessária imparcialidade, conforme adverte Liebman.

Por este motivo, a tendência é retirar do Poder Judiciário qualquer função persecutória, devendo a atividade probatória do Juiz ficar restrita à instrução criminal, assim mesmo, supletivamente, ao atuar das partes.

O princípio do contraditório, com assento constitucional (art. 153, § 16), atende à estrutura dialética do processo penal acusatório e decorre da concepção liberal de que as partes são sujeitos da relação processual, titulares de direitos, deveres, poderes, sujeições e ônus.

Contraditório, na expressão que já se tornou clássica, é a bilateralidade dos atos processuais. As partes hão de ser postas em situação que as habilite a contrastar as afirmações e as provas produzidas, dando ao Juiz farto material crítico.

Com a beleza do estilo que lhe era peculiar, dizia Eduardo Couture que “a justiça se serve da dialética porque o princípio da contradição é o que permite, por confrontação dos opostos, chegar à verdade. O eterno vir a ser, dizia Hegel, obedece à dialética. Põe-se, opõe-se e compõe-se num ciclo que presume um começo e que só o alcança ao afinal. O todo e suas partes se integram reciprocamente ao imenso torvelinho. Fora dele, tudo perde o impulso e a vida. Nada é estável. Apenas o torvelinho é permanente.”

O princípio da igualdade das partes no processo penal é uma consequência do princípio do contraditório. Este, sem aquele, seria reduzido a uma simples abstração jurídica. Por esta razão, a real garantia do contraditório pressupõe uma igualdade substancial das partes. A igualdade meramente formal das partes acarretará o comprometimento do contraditório.

Cabe ao intérprete e ao aplicador do sistema processual fazer atuar concretamente estes princípios, haurindo da regra constitucional, que assegura ampla defesa no processo penal, todas as suas consequências lógicas, mesmo porque, como deixou dito João Mendes Almeida Júnior, “as regras do processo são o complemento necessário das leis constitucionais; as formalidades do processo são as atualidades das garantias constitucionais.”

Por derradeiro, importa fazer referência aos princípios da publicidade e oralidade.

Embora sofra algumas restrições no sistema processual pátrio, a publicidade do processo penal é basilar para garantia daqueles outros princípios que acima destacamos. Ademais, na sociedade democrática, torna-se indispensável a fiscalização do povo sobre a atuação do poder público.  

Já o princípio da oralidade, hoje, apresenta-se quase como uma utópica aspiração de uma atividade jurisdicional mais célere. A verdadeira sofreguidão de tudo reduzir-se a escrito, numa desmedida ânsia de segurança e culto à forma, tem sacrificado o processo penal moderno, eternizando o seu deslinde e transformando-o em instrumento de verdadeiro empecilho à aplicação do direito.

A volta ao princípio da oralidade, em toda a sua extensão, para nós, é condição sine qua non para que se resgate a credibilidade da Justiça Penal em nossa pátria.

 

8. A ESTRUTURA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO.

8.1. A evolução do processo penal acusatório individualista para a publicização estrutural do processo penal moderno.

Pode-se afirmar que historicamente todas as categorias básicas de Direito Processual evoluíram de uma visão privatística para concepções publicísticas.

Pode-se afirmar, outrossim, que foi justamente em face desta evolução que o Direito Processual ganhou autonomia científica, criando objeto, método e princípios próprios.

A trajetória do processo penal é marcante neste particular, pois, de um sistema acusatório rígido e individualista, atingimos uma quase total publicização deste excelente sistema, graças à criação da instituição do Ministério Público.

Originalmente, grosso modo, a acusação penal era privada. Outorgava-se ao ofendido ou a qualquer pessoa do povo a difícil e árdua tarefa de acusar publicamente aquele que tivesse praticado uma infração penal. O Estado se mostrava absolutamente indiferente com o resultado da batalha processual, que dependia exclusivamente da habilidade, tenacidade ou malícia das partes. O processo era tido como “coisa das partes” (Sache der Parteien), e tinha integral aplicação o adágio latino iudex secundum allegata et probato partium decidire.

Não é difícil perceber que tal sistema debilitava em muito a persecução penal, sendo fruto da sociedade liberal e individualista romana. Como toda evolução humana (e mesmo da natureza em geral) se faz através da oposição dos contrários, dialeticamente surgiu, posteriormente, o sistema inquisitório, sob a forte influência do Direito Canônico.

Na verdade, o sistema inquisitorial opõe-se ao sistema acusatório, como consequência da própria alteração estrutural da sociedade, encontrando campo fértil na Idade Média.

Percebeu-se que ao Estado (ou melhor, já agora as instituições então existentes) tocava primordialmente o interesse de combater e reprimir a criminalidade. O particular, quando não se desinteressava, encontrava-se desarmado do instrumental mínimo e necessário para desincumbir-se deste pesado fardo. Passou, então, o juiz a formular a acusação penal e a perquirir a prova. Desaparece o frágil triângulo processual (actum trium personarum), formando-se uma relação linear entre Juiz e réu, que passa a ser mero objeto de investigação, pois não se lhe reconhece direito algum no plano do processo – já agora simples procedimento investigatório.

A toda evidência, caiu por terra todo e qualquer resquício da imparcialidade do Juiz, o qual partia de um convencimento formado a priori e que procurava demonstrar com a posterior prova, basicamente, a confissão. Ao invés de convencer-se através da prova carreada para os autos, inversamente a prova servia para demonstrar o acerto da acusação antes formulada pelo juiz-inquisitor.

Nem mesmo o princípio da prova legal ou tarifada coibiu os abusos, mesmo porque tal princípio veio em sacrifício da verdade material ou real. O Juiz de então, conhecendo o valor preestabelecido para cada prova, utilizando-se de todos os meios para consegui-la, passou a extraí-la por meio de torturas ou recursos à crença religiosa e mística.

A confissão fazia prova plena. Deste modo, para corrigir um erro, incidiu-se em um mal maior, tornando o processo, não um método civilizado de descoberta da verdade e aplicação justa da lei penal, mas sim em forma de concretização do arbítrio e da opressão.

Era preciso, e também uma consequência natural do evoluir dialético do pensamento humano, chegar-se a um processo que fosse a síntese da forma acusatória individualista e do brutal procedimento inquisitório. Impunha-se a retirada do Juiz daquelas funções persecutórias, mas não podia o Estado cruzar os braços no que tange à persecução penal.

O Estado sentiu a necessidade de criar mecanismos seguros para que a atividade jurisdicional se fizesse de forma justa, independentemente da vontade ou interesse das partes privadas. Mas o Juiz tinha de ser preservado, em prol de sua imparcialidade. Conseguiu-se este grande salto de qualidade através da institucionalização do Ministério Público, que pode ser considerado o verdadeiro “ovo de Colombo” para o processo penal que surgiu modernamente.

Com o Ministério Público, assumiu o Estado, definitivamente, a titularidade da persecutio criminis in judicio, sem precisar comprometer a imparcialidade judicial. Assim, as três funções processuais são entregues a sujeitos diversos, sem retorno à acusação privada. O processo penal passou a ser ao mesmo tempo um engenhoso instrumento de repressão penal e uma forma de autolimitação do Estado, pelo princípio nulla poena sine judicio.

A moderna estruturação do processo penal permite dizer que, mais do que um sábio método de se descobrir a verdade possível, é ele um meio de garantia e resguardo dos direitos individuais. Tudo, sem despir o Estado de sua autoridade de interessado máximo na defesa social. Publicizou-se o sistema acusatório.

Nada obstante, parece-nos que esta festejada síntese não foi alcançada pelo chamado processo penal misto, cujo exemplo mais fiel é o sistema “juizado de instrução”. Nele, não se retirou do órgão jurisdicional a atividade persecutória preliminar, embora se crie uma fase acusatória para o julgamento.

Dispondo de uma instituição como o Ministério Público, não vemos vantagem alguma em colocar o Juiz como órgão investigador, em que pese se distinguirem os sistemas legislativos no sentido de criarem mecanismos que procuram manter a indispensável imparcialidade do órgão julgador.

Por outro lado, na Itália, principalmente, a Corte Constitucional vem declarando a inconstitucionalidade de inúmeros dispositivos do Código de Processo Penal que negavam a ampla defesa na fase de instrução preliminar, tornando-a inteiramente regida pelo princípio do contraditório, o que dificulta em muito a apuração das infrações penais.

Forçoso reconhecer que o chamado juizado de instrução não é uma síntese dos sistemas anteriores, mas acoplamento forçado destes sistemas, através de fases processuais sucessivas. Já o nosso sistema se apresenta, ao menos teoricamente, como uma perfeita e harmoniosa síntese, em que o Ministério Público desempenha um papel de absoluta relevância.

 

 8.2. O sistema acusatório no processo penal brasileiro.

Como se sabe, desde o século XIX, o legislador pátrio retirou o Juiz da apuração policial dos fatos delituosos, criando-se o inquérito policial presidido por autoridade vinculada ao Poder Executivo.

Em assim se fazendo, criou-se um procedimento investigatório de natureza administrativa, preparatório da ação penal. Estruturado sob a égide do inquisitorialismo, o inquérito policial não faz parte do processo penal, não é uma fase dele. Casos há, inclusive, em que ele se torna dispensável, conforme se vê das regras dos arts. 39, § 5º, e 46, § 1º, do Código de Processo Penal de 1941 (mantidas pelo projeto n. 156/09, do Senado Federal, conforme art. 51, parágrafo único), havendo suporte probatório mínimo através das chamadas peças de informação, para lastrear a acusação penal. Sem prova mínima, faltaria justa causa para a persecutio criminis in judicio, que deve ser considerada como uma condição para o regular exercício da ação penal.

O inquérito policial, além de fornecer justa causa à acusação penal, destina- -se à apuração das infrações penais com todas as suas circunstâncias e desempenha em nosso sistema processual uma função da maior relevância, pois permite ao titular da ação fazer uma imputação perfeitamente individualizada e certa, evitando-se processos prematuros e absolutamente infundados.

A prova carreada para o inquérito não tem por finalidade o convencimento do Juiz, mas apenas dar lastro probatório à eventual ação penal, tendo em vista que a simples instauração do processo, pelo strepitus fori, causa dano social irreparável ao réu.

Por isso, o inquérito policial é um procedimento administrativo-investigatório absolutamente sumário, voltado exclusivamente para a viabilização da ação penal. Infelizmente, na prática, por motivos vários que aqui não cabe examinar, o inquérito foi transformado numa longa e morosa investigação, em que se procura apurar os mínimos detalhes da infração penal, colhendo-se provas sobre fatos já demonstrados e que deveriam ser produzidas exclusivamente em juízo, evitando-se a lenta e monótona reprodução de atos.

Em face desta distorção, vozes autorizadas levantam-se contra o sistema do inquérito policial que, na sua essência, é estruturalmente excelente. O que se deve corrigir é o seu mau uso, a sua adulteração na prática.

Para o sucesso deste sistema processual, desempenha o Ministério Público uma função da maior importância, assumindo a titularidade da ação penal e produzindo prova no interesse da verdade, deixando o Juiz equidistante do conflito de interesses que, porventura, surja no processo.

No atendimento dos postulados do sistema acusatório, o Ministério Público atua inicialmente como órgão acusador, submisso ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Ao depois, diante da prova produzida, deve pugnar pela correta aplicação da lei ao caso concreto, funcionando como custos legis, já que o Estado não tem qualquer interesse de ver acolhida uma pretensão punitiva injusta, seja na sua essência, seja na sua quantidade. É o que se depreende dos arts. 257 e 385 do Código de Processo Penal de 1941.

 Entretanto, este diploma legislativo ainda consagra alguns resquícios do inquisitorialismo, consoante se pode constatar do exame dos arts. 5º, inc. II, 13, inc. II, 26, 10, § 3º, e outros. A nova legislação processual penal varrerá de nossa ordem jurídica tais indesejáveis dispositivos, preservando o Juiz destas funções anômalas, porque persecutórias.

Na exposição de motivos que acompanhou o projeto n. 156/09, do Senado Federal, fica bastante claro o espírito da nova proposta legislativa, comprometida com o sistema acusatório moderno, embora ainda mantenha alguns traços inquisitoriais, chegando ao ponto de retirar o Juiz da incômoda posição de destinatário do inquérito policial: “A regra do atual Código de Processo Penal não guarda pertinência com um modelo processual de perfil acusatório, como se deduz do sistema dos direitos e garantias previstos na Constituição. A investigação não serve e não se dirige ao Judiciário; ao contrário, destina-se a fornecer elementos de convencimento, positivo ou negativo, ao órgão de acusação” (item III).

Desta maneira, a tendência de nossa legislação é purificar ao máximo o sistema acusatório, entregando a cada um dos sujeitos processuais funções não precípuas, mas absolutamente exclusivas, o que dá ao réu a segurança de um processo penal mais democrático, na medida em que o órgão julgador tem a sua imparcialidade integralmente preservada.

Tal preocupação é uma constante na legislação projetada, a qual atribui a fiscalização do princípio da obrigatoriedade a órgão superior do Ministério Público. Desse modo, evita-se o grave inconveniente que hoje persiste, quando o Juiz que se utilizou do art. 28 do Código de Processo Penal, tendo antecipado, ainda que superficialmente, uma valoração jurídica sobre os fatos apurados na fase inquisitorial, volta ao caso para instruí-lo e julgá-lo.

Finalmente, é de relevo constatar que a exclusão da ação penal privada exclusiva, no projeto n. 156/09, do Senado Federal, é mais um avanço. Somos que o instituto da representação já atende aos ponderáveis interesses que se procura tutelar através da ação privada. Quando muito, poder-se-ia adotar o instituto italiano da “querela”, que preserva o monopólio do Estado com relação à ação penal, dando, porém, grande margem de disponibilidade da persecutio ao ofendido.

Cabe concluir, dizendo que o nosso sistema processual penal, através do Ministério Público, conseguiu compatibilizar a indispensável imparcialidade do Juiz com a busca da verdade material ou real, por meio de uma estrutura acusatória moderna, onde o Estado atua eficazmente, impedindo que o processo penal venha a se transformar em “coisa das partes” privadas.

Mesmo na criticada ação penal privada exclusiva, a presença do Ministério Público permite a perquirição da verdade, independentemente da atividade das partes, mantendo o Juiz equidistante do conflito. Assim, o poder instrutório do Juiz será sempre supletivo ao atuar probatório dos outros sujeitos do processo, sem que, com isso, precisemos retornar à origem privatística do processo penal.

 

 

9. CONCLUSÕES

a) Ontologicamente, o processo é um só. A Teoria Geral demonstra que, em face do seu caráter instrumental, o processo sofre alterações meramente acidentais, não essenciais, quando se destina ao julgamento ou atendimento prático de pretensões diferentes (civil, penal, conhecimento, cautelar, execução etc.).

b) O objeto do processo é o pedido do autor, que exterioriza a sua pretensão.

c) O conteúdo do processo, sob o aspecto formal, é o conjunto dos atos processuais (postulatórios, instrutórios e decisórios). Sob o aspecto substancial, é a afirmação de existência ou inexistência de uma relação jurídica.

d) A pretensão processual é categoria essencial ao processo; a lide é categoria acidental.

e) Processo é o conjunto orgânico e teleológico de atos jurídicos necessários ao julgamento ou atendimento prático da pretensão do autor ou mesmo de sua admissibilidade pelo Juiz.

f) A função do processo é a satisfação de pretensões, no sentido exposto por Jaime Guasp. As teorias do conflito e da atuação do direito se mostraram ora insuficientes, ora excessivas.

g) O processo é categoria autônoma, que deve ser levada ao quadro geral da Teoria Geral do Direito, sendo erro metodológico procurar, a todo custo, acomodá-lo às outras categorias jurídicas conhecidas.

h) A diversa natureza da pretensão manifestada no processo penal dá origem a três formas de tutela jurisdicional: de conhecimento, execução e cautelar.

i) No processo penal de conhecimento, a pretensão pode ser condenatória, declaratória ou constitutiva, motivo pelo que o estudo da ação penal não deve ficar restrito à ação condenatória, mas deve integrar ao sistema a ação penal constitutiva e declaratória.

j) Os dois princípios fundamentais que se referem ao processo penal são o da imparcialidade do Juiz e o do contraditório, sendo que os demais nada mais são do que consectários lógicos destes.

l) O princípio da busca da verdade real ou material, que se refere à prova, tem absoluta relevância no processo penal, sendo mesmo fator de alteração em sua estrutura moderna.

m) O estudo do processo penal, à luz de uma perspectiva histórica, demonstra a sua evolução do sistema acusatório liberal-individualista para a síntese dialética do sistema acusatório público moderno.

n) A evolução publicista da estrutura do sistema acusatório somente foi possível com a criação da instituição do Ministério Público, que permitiu a acusação pública (processo de partes), resguardando a imparcialidade do Juiz, comprometida no sistema inquisitório.

o) O Juizado de Instrução não resulta de uma síntese do sistema acusatório com o inquisitório, mas é fruto de um indesejável acoplamento destes dois sistemas, em fases processuais sucessivas. Na primeira, permanece a figura do juiz-inquisitor.

p) O inquérito policial, embora estruturado sob a égide do inquisitorialismo, não faz parte do nosso processo penal, mas é um mero procedimento administrativo-investigatório prévio, destinado tão somente a dar lastro probatório mínimo à acusação penal, podendo ser dispensado quando tal finalidade venha a ser alcançada através das chamadas peças de informação.

q) O processo penal brasileiro adota o sistema acusatório moderno, mantendo, entretanto, alguns resquícios do inquisitorialismo e preservando a acusação privada para casos restritos.

r) O Projeto de Código de Processo Penal, em tramitação no Congresso Nacional, depura substancialmente o sistema, retirando do Juiz a maior parte de atribuições persecutórias que ainda persistem no atual sistema. Restaura o princípio da demanda em toda a sua inteireza e outorga aos sujeitos processuais, com maior intensidade, o exercício das funções que lhes são próprias. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mikecogh/8035396680

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura