Reflexão teórica sobre o processo penal
Nesta oportunidade, publicamos, nesta coluna, a primeira parte de um nosso alentado estudo sobre a teoria do processo.
No sumário abaixo, o leitor poderá acompanhar a sequência das publicações.
Este longo texto faz parte do livro “Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres”, que divido com o magistrado, professor e amigo, Pierre Souto Maior Amorim.
A primeira transcrição vai abaixo:
1. INTRODUÇÃO. TEORIA UNITÁRIA DO PROCESSO.
Pouca resistência ainda se encontra, em sede doutrinária, à concepção unitária do processo. Mais do que uma necessidade metodológica para o estudo dos vários ramos do Direito Processual, a teoria geral do processo é uma consequência inarredável do estudo sistemático das diversas categorias processuais.
A clara tendência de publicização do processo civil1 e o despertar para o estudo científico do processo penal tornam insustentável a posição de Guarneri e Albuquerque Prado. Os obstáculos que se apresentavam no processo penal à teoria unitária foram satisfatoriamente ultrapassados ao elevar-se a pretensão à categoria essencial do processo, bem como ao detectar-se, dentro do processo penal de conhecimento, pretensões não condenatórias, conforme se verá adiante.
A sistematização do processo penal sob o prisma acusatório também facilitou em muito a formulação de uma teoria geral. São de Jaime Guasp as seguintes palavras:
“La pluralidad de tipos procesales señalados no destruye, sin embargo, la unidad conceptual de figura procesal, la cual, fundamentalmente, sigue siendo idéntica en cada una de sus ramas”. “Existe, pues, una verdadeira unidad fundamental del proceso. Todos sus tipos responden al mismo concepto”. “Se ha discutido mucho, no obstante, en torno a la unidad de los tipos procesales civil y penal. Realmente, si separtiera para definir el proceso dela idea del conflito o de la actuación del derecho (sobre todo del derecho subjetivo), la unficación resultaria dificil. Pero, no asi arrancando de la idea de la satisfacción de pretensiones, la cual existe con el mismo carácter en el proceso civil y en el proceso penal”.
Certo que a natureza pública ou privada da pretensão acarreta peculiaridades ao processo penal e ao processo civil, mormente em face do chamado princípio da verdade real ou material que informa o primeiro. Não menos certo é, entretanto, que tais peculiaridades não chegam a afetar a ontologia do processo, chegando tão somente às portas de sua estrutura formal. Por outro lado, não se deve esquecer que o Direito Processual Civil abriga formas inquisitivas e busca a verdade com mais veemência quando o conteúdo do processo civil é a afirmação de uma relação material indisponível, mesmo em face da inércia ou contra a vontade das partes. Vejam-se as regras do art. 178, incisos I, II e III, no antigo CPC.
Com inteira razão o professor Frederico Marques quando afirma que “o processo, como instrumento compositivo de litígio, é um só, quer se trate de uma lide penal, quer quando focalize uma lide não penal. Instrumento da atividade jurisdicional do Estado, o processo não sofre mutações substanciais quando passa do campo da justiça civil para aquele da justiça penal. Direito Processual Civil e Direito Processual Penal são divisões de um mesmo ramo da Ciência do Direito, que é o Direito Processual. E isto porque o processo, em sua essência, é um só, tanto na jurisdição civil como na jurisdição penal”.
Atualmente, preferimos usar a expressão “princípio da busca do convencimento do juiz”, já que tal princípio outorga ao órgão do Poder Judiciário apenas poderes instrutórios, subsidiários à atividade instrutória das partes. Não estando exauridos os meios probatórios, permanecendo em dúvida, o juiz deve procurar afastar esta dúvida, vale dizer, procurar formar convicção sobre os fatos relevantes para o seu julgamento.
Desta forma, torna-se até mesmo difícil estudar o processo penal separadamente, ficando bastante estreito o campo para uma teoria geral exclusiva do processo penal, senão inteiramente dispensável.
Não é por outra razão que as categorias processuais a seguir examinadas são comuns às diversas espécies de processo e que quase tudo o que se dirá em relação ao processo penal tem inteiro cabimento ao processo civil ou do trabalho, mutatis mutandis.
2. OBJETO E CONTEÚDO DO PROCESSO PENAL.
2.1. Em face da diversidade conceitual e mesmo semântica existente na literatura processual, torna-se imperioso que façamos a distinção entre objeto e conteúdo do processo penal, explicitando, assim, as categorias com que se vai trabalhar.
Autores há que identificam os dois conceitos, conforme se constata do seguinte trecho: “conteúdo e objeto do processo é a lide que nele deve ficar solucionada e resolvida.” Somos não se confundirem tais categorias processuais. O objeto há de ser compreendido como “o ponto de convergência de uma atividade” e o conteúdo deve ser “aquilo que se contém nalguma coisa”.
Neste sentido, funciona o pedido do autor como o objeto do processo, sendo uma manifestação de vontade dirigida à autoridade judiciária, requerendo uma atividade determinada, conforme magistério de Enrico Liebman.
Todo o desenvolvimento do processo consiste em dar ao pedido o devido seguimento. Através do pedido, procura o autor fazer valer a sua pretensão, sujeitando o réu ao processo. Exige o autor a prevalência de seu interesse, funcionando o pedido como exteriorização de uma determinada pretensão, cujos contornos são delimitados pela imputação ou causa de pedir.
Por outro lado, diverso é o conteúdo do processo, ou seja, aquilo que nele se contém. Sob o aspecto formal, o conteúdo do processo é o conjunto dos atos processuais (postulatórios, instrutórios e decisórios), através dos quais a relação processual se desenvolve, criando faculdades, poderes, sujeições, direitos, deveres e ônus para os diversos sujeitos processuais.
Sob o aspecto substancial, o conteúdo do processo é a afirmação do autor de inexistência (ação declaratória) ou existência de uma relação jurídica material, sobre a qual, via de regra, surge uma controvérsia a ser dirimida pelo Juiz.
Note-se que nem sempre existirá uma relação jurídica de direito material controvertida no processo. Ela pode não existir. Em existindo, pode não se tornar controvertida.
Entretanto, sempre haverá uma afirmação por parte do autor sobre a titularidade de uma relação jurídica ou afirmação de inexistência de qualquer relação material entre as partes. Essa afirmação é que compõe o conteúdo substancial do processo.
2.2. A lide como categoria acidental do processo penal.
Como se sabe, a Ciência do Direito constitui-se de categorias abstratas, forjadas pelo pensamento do homem. Uma vez captado o fenômeno jurídico e cunhada a nova categoria, ela deve ser levada a fazer parte da Teoria Geral do Direito, não sem antes proceder-se à sua individualização através da outorga de um “nome”. Este, no tráfico jurídico, passa a ser o elemento de referência daquela ideia.
Saliente-se que, inúmeras vezes, por mera divergência semântica, a doutrina tem o seu curso evolutivo dificultado, instalando-se controvérsias onde elas substancialmente não existem ou, ao contrário, atropelando-se dissídios não percebidos.
Desta forma, impõe-se ficar esclarecido que este estudo é construído a partir dos conceitos formulados por Carnelutti para a teoria geral do processo, com o novo enfoque de Jaime Guasp.
Assim, quando falamos em lide, queremos nos referir ao conflito de interesses qualificado pela pretensão de um sujeito processual e pela resistência de outro. Ademais, tomamos a pretensão como sendo a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio.
Tal conceito de pretensão não se opõe ao apresentado por Guasp, mas é por ele complementado. Partindo dessas ideias, a doutrina mais autorizada, na sua grande maioria, sustenta ser a lide o elemento essencial do processo civil.
Já no processo penal, diante de perspectivas várias, encontra-se séria resistência à admissão de uma lide penal, circunstância esta que em muito dificultou a formulação de uma teoria geral do processo. Entretanto, parece-nos que a lide não é essencial ao processo, seja civil, seja penal.
Em verdade, casos há em que o conflito de interesses não se faz presente e a existência do processo é indiscutível, até mesmo para declarar esta circunstância. Não se podendo negar a própria realidade, procura-se contornar o problema através de construções artificiosas.
Para um melhor esclarecimento, vamos a alguns dos muitos exemplos que poderiam ser apresentados. Pense-se no réu que, citado no processo civil, reconhece a procedência do pedido do autor: mesmo sem conflito de interesses, terá havido processo, que será extinto com julgamento de mérito.
No processo penal, o réu pode confessar integralmente os fatos que lhe são imputados na denúncia ou queixa e manifestar inequívoco desejo de submeter-se à pena máxima prevista na norma penal incriminadora. Veja-se, neste particular, a sábia lição de Calamandrei.
Também no processo de execução (civil ou penal) não temos uma lide ou conflito de interesses, mas apenas sujeição do réu. Eventual litígio surgirá em decorrência da ação de embargos (no processo civil) ou dos chamados incidentes da execução (no processo penal). Nestas hipóteses, instaura-se um outro processo de conhecimento, de forma incidental.
Nas chamadas ações constitutivas necessárias o problema também se coloca, pois autor e réu podem estar integralmente de acordo; anulação de casamento (no processo civil), revisão criminal, reabilitação e alguns casos de habeas corpus (no processo penal). A toda evidência, nestas hipóteses, há processo e atividade jurisdicional própria. Portanto, processo sem conflito de interesses ou lide.
Não obstante, fecham- -se os olhos para esta realidade jurídica. Prefere-se tentar ampliar o conceito de lide, não mais se exigindo resistência à pretensão do autor. Para a existência da lide, seria suficiente que a pretensão se apresentasse como insatisfeita.
Ora, pelo simples fato de haver uma pretensão insatisfeita não se pode afirmar a ocorrência de um real conflito de interesses. Em sendo este, por definição, essencial ao conceito de lide, cai-se numa incoerência incontornável: lide é conflito de interesses, mas também seria pretensão insatisfeita (onde não há conflito necessariamente).
Assim, de duas uma: ou se reformula coerentemente o conceito de lide, ampliando-o, de forma a abranger situações onde não exista o conflito (e o novo conceito passaria a ser inútil), ou trabalha-se com ele até onde seja logicamente possível, desistindo-se da obstinação de sistematizar toda a teoria da jurisdição e do processo a luz do litígio.
Ressalte-se que, a nosso ver, o conceito de lide é mais amplo do que o admitido por alguns autores. Para nós, basta a exteriorização da posição antagônica de interesses no processo para a configuração da lide, sendo irrelevante o fim que move as partes. Haverá lide no processo penal quando o réu se opuser à pretensão do autor, sendo artificial o entendimento de Carnelutti de que o Ministério Público manifesta a pretensão punitiva estatal no interesse do réu, daí por que não haveria processo penal contencioso, mas procedimento de jurisdição voluntária. Basta pensar-se no pedido de condenação à pena de morte onde ela é admitida (sic).
Destarte, poderá ou não haver lide no processo penal, dependendo sempre da reação do réu frente à pretensão do autor, tanto na ação condenatória, quanto nas ações penais não condenatórias. Não se pode negar que o processo é uma das formas mais comuns e civilizadas de composição de conflitos de interesses.
Não obstante, urge admitir que a lide não lhe é essencial, podendo ser concebido sem uma efetiva oposição do réu à pretensão do autor. Neste sentido se manifesta Piero Calamandrei, in verbis: “Puede haber ejercicio de función jurisdiccional al solo objeto de asegurar la observancia del derecho, aun en cuanto no existe ningún conflicto de intereses entre las partes, las cuales están perfectamente de acuerdo en querer conseguir un cierto efecto jurídico”. “La finalidad de la jurisdicción no es verdaderamente la de componer un conflicto de interese, sino que es solamente la de, exista o no exista el conflicto entre las partes, aplicar la ley penal.”
2.3. A pretensão como categoria essencial ao processo penal.
Se há processos sem pretensões resistidas (lide), qual é a sua essência jurídica?
Rigorosamente, o que se torna indispensável à existência do processo é a pretensão do autor manifestada em juízo, exteriorizada pelo pedido e delimitada pela causa de pedir ou imputação. Em sentido contrário, sustentando haver sempre no processo penal uma lide, dentre outros, podemos citar Giovanni Leone, A. Bartoloni Ferro, Frederico Marques e Fernando da Costa Tourinho Filho.
É imperativo, na realidade, que alguém venha ao Poder Judiciário pedir que um determinado interesse venha a prevalecer em detrimento do interesse de outra pessoa. Deduzida a pretensão, que é fato jurídico-processual, através do exercício da ação, teremos necessariamente um processo, mesmo que haja reconhecimento formal por parte do réu do direito alegado pelo autor. Haverá processo ainda que o réu prove cabalmente que sempre desejou adimplir a sua obrigação, tornando o recurso às vias judiciárias inteiramente desnecessário. Certo que, em assim ocorrendo, o processo será extinto, mas isto é demonstração de que ele existiu juridicamente. Já no processo penal, a ação condenatória se faz sempre necessária, pelo princípio nulla poena sine judicio.
Assim, parece-nos mais aceitável construir toda a teoria da jurisdição e do processo em torno do conceito de pretensão, que lhe é essencial, consoante reconhecido por Miguel Fenech e Jesús Gonzalez Pérez, dentre outros. Hélio Tornaghi, já em 1945, através de sua pioneira tese de concurso acadêmico sobre a relação processual penal, afirmava haver “casos em que não é fácil encontrar um litígio. O que não é possível é processo sem pretensão.
Mesmo no processo civil, a jurisdição nem sempre se destina a compor litígios. Pode haver acordo entre as partes e ser, não obstante, necessária a jurisdição, como nas ações constitutivas”.
Precisos são os ensinamentos de Clemente Diaz ao asseverar que a controvérsia é tão somente um elemento possível, mas não essencial para o exercício da jurisdição contenciosa, podendo existir contenciosidade sem controvérsia ou controvérsia sem contenciosidade. Em seguida, explica o jurista argentino o seu conceito de contenciosidade, vinculando-o à pretensão puramente processual. Vale dizer, a pretensão cria a contenciosidade, sendo a controvérsia algo dispensável, embora provável. Ainda em sentido contrário, veja-se Montero Aroca.
Segundo Jaime Guasp, “lo importante para el proceso no es evidentemente el conflicto, que no resulta necesario que exista, sino la reclamación ante el juez, que puede ir o no ligada con aquél”.
Tal reclamação consubstancia o conceito de pretensão processual, por ser uma declaração de vontade manifestada por uma pessoa em face de outra sobre determinado bem da vida, perante o juiz, concretizada por acontecimentos fáticos que expressamente são afirmados.
Curioso é que o próprio Carnelutti chegou a constatar o que se vem de sustentar neste trabalho. Interessante a trajetória do grande pensador peninsular sobre o processo penal. Inicialmente, em seu excelente “Sistema de derecho procesal civil”, afirma haver real conflito de interesses no processo penal.
Posteriormente, nas Instituciones del proceso civil, atinge o que chamaríamos de o ponto ótimo do pensamento carneluttiano, pois aceita que a pretensão (não a lide) funciona como categoria indispensável ao processo penal: “De estas observaciones se infiere que, cuando se trata de aplicación de la sanción penal, la función del proceso es distinta de la función de la composición de la litis; mas exactamente, no se trata de la composición de una litis, sino de la verificación de una pretensión, a saber, de la pretensión penal a punitiva, verificación a la cual se debe proceder aunque esa pretensión no encuentre resistencia”.
Entretanto, Carnelutti fixara-se no conceito de lide para a formulação de sua teoria sobre a jurisdição e o processo, motivo pelo qual, diante do instituto da parte civil no processo penal italiano – ressarcimento do dano ex delicto – passou a sustentar o caráter intermédio do processo penal (parte contencioso, parte voluntário), e, depois, o seu caráter misto.
Assevera o mestre que, caso fosse possível cindir o conteúdo penal do civil, não teria dúvida em afirmar que o processo penal seria genuinamente um procedimento de jurisdição voluntária, fazendo analogia ao processo civil de interdição, onde não há lide e sim mera controvérsia. Reconhecendo não ser possível fazer tal cisão, sustenta: “En consideración de esto, al proceso penal se debe reconocer no tanto un carácter intermedio entre lo contencioso y lo contencioso cuanto un carácter mixto del uno del otro; el mismo es verdaderamente la fusión de un proceso contencioso con un proceso voluntario”.
Desta forma, tivesse Carnelutti trabalhado com o conceito de pretensão ao elaborar a sua teoria do processo, não encontraria o mestre as inúmeras dificuldades que encontrou no processo penal, e que também existem no processo civil, com relação à ideia de lide, o que evitaria a constante reformulação de seu pensamento no curso do tempo. Sistematizada a teoria da jurisdição e do processo sobre o conceito de pretensão, fica mais fácil a delimitação da impropriamente chamada jurisdição voluntária.
Ora, se a base indispensável do processo não é mais o conflito de interesses ou lide, a sua detecção, por vezes de grande dificuldade, passa a ser absolutamente despicienda. Somente será procedimento de jurisdição voluntária aquele que não contiver uma pretensão.
- CONCEITO E FUNÇÃO DO PROCESSO PENAL
3.1 - Conceito de processo penal Já agora, diante do que ficou dito acima, podemos conceituar o processo como o conjunto orgânico e teleológico de atos jurídicos necessários ao julgamento ou atendimento prático da pretensão do autor, ou mesmo de sua admissibilidade pelo Juiz.
Neste conceito abrangemos tanto o processo de conhecimento e cautelar, como também o processo de execução. O processo será penal de acordo com a natureza da pretensão deduzida em juízo pelo autor (pretensão punitiva ou de liberdade, esta no sentido amplo). Destarte, se o julgamento da pretensão ou de sua admissibilidade se fizer através da aplicação de uma norma penal ou processual penal, tratar-se-á de processo penal. Caso contrário, o processo será civil ou trabalhista.
3.2. Processo e procedimento: distinção.
Antes de analisarmos a evolução das teorias que se propunham a esclarecer a natureza jurídica do processo, cumpre afastar a confusão conceitual que existia no século passado, envolvendo a ideia de processo e procedimento. Tal distinção, devida principalmente a Oscar Bülow, pode ser considerada como o marco final da concepção meramente procedimentalista do direito processual.
Sob o prisma etimológico, o vocábulo processo (pro caedere = seguir adiante) traz-nos a ideia de caminhar para frente, de avanço ordenado, daí surgindo a promiscuidade conceitual com o procedimento.
A doutrina já não mais sente dificuldades em distinguir estes dois conceitos, malgrado o Código de Processo Civil de 1939 e o Código de Processo Penal de 1941 se referirem a “Processos Ordinários e Processos Especiais” e a “Processos Ordinários e Processos Sumários”, respectivamente.
Consoante vimos acima, o processo é uma sequência de atos, agrupados de forma orgânica e teleológica, utilizada pelo órgão jurisdicional para o julgamento da pretensão do autor ou de sua admissibilidade. Já o procedimento tem uma noção meramente formal, nada mais sendo do que a direção que os atos processuais tomam, ou seja, o rito a ser imprimido aos atos do processo.
Em outras palavras, procedimento é uma coordenação sucessiva de atos que exteriorizam o processo. Como instrumento da função jurisdicional do Estado, processo é conceito exclusivo do Direito Processual.
Ressalte-se, entretanto, que a jurisdição voluntária se concretiza, não através do processo, mas sim, por meio de simples procedimento judicial.
Para finalizar, pode-se dizer que o processo cria uma relação entre pessoas (autor, juiz, réu), enquanto o procedimento é uma mera relação entre atos.
3.3. A Satisfação da Pretensão como Função do Processo Penal.
Sobre a função do processo em geral, duas foram as correntes doutrinárias que disputaram (e ainda disputam) a simpatia e preferência da grande maioria dos autores.
Uma, de cunho mais privatístico; outra, que permite que seja dado maior caráter público à função jurisdicional e ao processo civil.
A teoria que primeiro agradou aos cultores do direito processual sustenta que a finalidade do processo é tutelar os direitos subjetivos das partes quando violados. No entender desta teoria, o Estado estruturaria toda uma atividade complexa, por si monopolizada, para por à disposição dos particulares o exercício da faculdade de invocar a composição coativa de seus conflitos de interesses. Chiovenda e Calamandrei concebem função diversa à jurisdição e ao processo. Para estes mestres a sua finalidade é “garantizar la observancia práctica del derecho objetivo”, vez que “el Estado defiende con la jurisdicción su autoridad de legislador”.
Na própria definição de Leo Rosemberg está explicitada a função processual de sua preferência. São suas estas palavras: “La jurisdicción, llamada también de función de justicia, poder judicial, es la actividad del Estado dirigida a la realización del ordenamiento jurídico”.
Somos proceder a crítica de Jaime Guasp em relação às teorias do conflito e da atuação do direito. A primeira se apresenta materialmente excessiva, porque a real existência de um litígio se revela indiferente para que exista o processo, e formalmente insuficiente porque a existência do conflito não faz nascer automaticamente o processo. A segunda teoria, inversamente, é materialmente insuficiente e formalmente excessiva, vez que não explica o “fundamento o razón que puede tener una actuación del derecho tan abstractamente considerada” e “porque no es necesario suponer como forma procesal característica la realización del derecho, ya que hay procesos sin lesión jurídica auténtica y, contrariamente, infracciones del orden jurídico que se remedian sin acudir a la institución procesal”.
Pelo exposto, melhor é reconhecer ao processo, especialmente ao penal, a função de satisfazer pretensões, ou seja, uma construção jurídica destinada a resolver, através do direito, reclamação em juízo de uma pessoa frente à outra.
Quando se fala em satisfação de pretensões, é de relevo salientar, trata-se de satisfação no sentido jurídico e não intersociológico, conforme adverte Guasp: “para el derecho una pretensión esta satisfecha cuando se la ha recogido, se la ha examinado y se la ha actuado o se ha denegado su actuación: el demandante cuya demanda es rechazada está juridicamente tan satisfecho como aquél cuya demanda es acogida”.
Nesta linha de raciocínio, embora com enfoque e abordagens diferentes, é o importante trabalho de Victor Fairen Guillen, denominado “El proceso como función de satisfacción jurídica”.
Assim, reformulamos, neste particular, o que escrevemos em nossa monografia publicada com o título Da publicização do processo civil, em 1982, pela Editora Liber Juris.
(continua na próxima semana)
Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações
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