REFLEXÃO TEÓRIA SOBRE O PROCESSO PENAL - segunda parte

07/04/2020

NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO

 4.1. Teorias privatísticas sobre a natureza do processo.

No direito romano e mesmo até meados do século XIX, o processo era visto exclusivamente sob uma ótica privatística, resultante de uma suposta relação contratual, delineada pela litis contestatio, através da qual as partes acordavam submeter a decisão de seus conflitos de interesses a um terceiro. O processo era encarado como um contrato firmado entre as partes. Tal teoria, a toda evidência, em que pese a existência da litis contestatio, era por demais artificial, resultante de uma visão absolutamente individualista imperante na sociedade da época. 

Ela não explicava a forma pela qual era decidida a controvérsia, dando exasperado realce ao ajuste das partes em submeter a questão ao árbitro. Ademais, até mesmo a autonomia da vontade era bastante mitigada na litis contestatio, vez que era uma verdadeira imposição legal, já se encontrando, de certa forma, proibida a vingança privada.

O recurso à concepção do contrato obrigatório foi mais artificial ainda.

Quando o pretor passou a decidir as pretensões, sentiu-se de forma acentuada a insubsistência da teoria contratualista, impondo aos juristas a procura de outra fonte das obrigações para se ajustar à natureza do processo. Lançou-se mão do que se dispunha na época: o quase-contrato.

Segundo os autores da Teoria geral do processo,  foi um autor francês do século XIX (Arnault de Guényvau) quem criou a teoria do processo como um quase-contrato, dizendo que, se ele não era um contrato ou delito, só haveria de ser um quase-contrato. “Essa doutrina, porém, partia do erro metodológico fundamental consistente na crença da necessidade de enquadrar o processo, a todo custo, nas categorias do direito privado.”

Esta vetusta teoria conviveu em nossa pátria até o princípio do século passado, sendo aceita por Pereira e Souza, Teixeira de Freitas, Barão de Ramalho e, sob certo aspecto, até pelo grande Paula Batista. Em João Monteiro e João Mendes Júnior a teoria não merece maior crédito.

Note-se que a discussão doutrinária de até poucos anos atrás, a respeito da natureza da hasta pública (contrato forçado) e da concordata (contrato judicial), não deixa de ser um vestígio destas concepções privadas do processo, já absolutamente ultrapassadas.

 

4.2. Teorias modernas sobre a natureza do processo.

Dentre as inúmeras teorias modernas sobre a natureza jurídica do processo, destacaremos duas que se nos apresentam como as de maior ressonância. Para um estudo detalhado das demais teorias, recomendamos o excelente trabalho do jurista Alcalá-Zamora y Castillo, denominado Algunas concepciones menores acerca de la naturaleza del proceso.

 

Teoria do processo como situação jurídica:

Teve em James Goldschmidt o seu idealizador que, aproveitando-se dos conceitos apresentados por Köhler, altera a sua abordagem e parte da premissa de que as normas de direito material são concebidas, não como regras de conduta, mas como regras de julgamento. Seu ponto de partida é, destarte, o conceito de direito judiciário material.

Para o processualista alemão, os conceitos de direito, sob o aspecto dinâmico-processual, constituem medidas para a decisão judicial, de forma que não estabelecem relações jurídicas, mas representam uma promessa ou ameaça relativa à conduta do Juiz, o qual decide por dever funcional, sem que nisto resida qualquer direito do autor e do réu.

Desde logo, antes mesmo de continuarmos a exposição sucinta da teoria, cabe aqui um reparo. Se é verdade que o Juiz decide em razão de uma relação administrativo-funcional com o Estado, não menos verdade é que o Estado, através de seu órgão jurisdicional, tem o dever de prestar jurisdição, consoante prometido na própria Constituição. Diante da teoria do órgão, aceita modernamente, a relação que se instaura entre as partes é com o Estado e não com o Juiz. Entre Estado e Juiz existe uma relação interna que não se estende ou diz respeito às partes, pois, segundo feliz expressão de Pontes de Miranda, o órgão “presenta” a pessoa jurídica que por ele se manifesta.

Comparando o processo a uma guerra, observa Goldschmidt que em ambos os casos o vencedor desfruta de situações vantajosas pela simples razão da luta e da vitória, não se cogitando de que tivesse direito ou não, anteriormente.

Sustentava, outrossim, que, quando o direito assume uma condição dinâmica, circunstância que se apresentava no processo, opera-se uma mutação estrutural do mesmo, pois aquilo que, numa visão estática, era um direito subjetivo, agora se degrada em meras possibilidades, perspectivas e ônus.

Dentre muitas, uma das críticas mais contundente à teoria do processo como situação jurídica é aquela que observa que toda a situação de incerteza apontada por Goldschmidt, expressa em ônus, perspectivas, expectativas e possibilidades, refere-se à res in judicium deducta e não ao processo em si mesmo. O que estaria posto em dúvida, e talvez não existisse, seria o direito material, não o iudicium.

A crítica acima delineada foi inicialmente formulada por Enrico Liebman, ao dizer que “a conclusão principal de Goldschmidt não pode ser aceita, porquanto a situação jurídica tal como ele a configurou, não é o processo, e sim o objeto do processo. As perspectivas e expectativas de vitória ou derrota constituem maneira genial de representar o que as partes levam ao processo, pelo que não podem ser o processo em si mesmo.

Assim, tendo partido em busca de uma explicação sobre o que seja, em termos jurídicos, o judicium, o jurista alemão terminou, no entanto, por brindar-nos com uma teoria sobre a res in judicium deducta, não podendo, assim, pretender substituir pela sua vez, a doutrina da relação processual que, bem ou mal, vem dando uma resposta à indagação do que seja o processo.

A teoria de James Goldschmidt, embora confundindo relação substancial controvertida com o processo, ou seja, o conteúdo com o continente, deu grandes frutos para a ciência jurídica em geral, esclarecendo o conceito de situação jurídica, de ônus, sujeição e chamou a atenção para a importante relação funcional do Juiz com o Estado, regida pelo Direito Administrativo.

 

Teoria do processo como relação jurídica:

Dentre todas as teorias sobre a natureza do processo, a mais aceita pela doutrina moderna é a da relação jurídica, muito embora a sua aceitação, por vezes, decorra mais da inaplicabilidade das outras do que de seus próprios méritos.

Deve-se a Bülow a sistematização da teoria da relação jurídica processual, logo aceita por Adolf Wach e outros processualistas alemães. Já em 1968, escrevia Oskar Bülow: “Nunca se ha dudado que el derecho procesal civil determina las facultades y los deberes que ponen en mutua vinculación a las partes y al tribunal. Pero, de esa manera, se ha afirmado, también, que el proceso es una relación de derecho y obligaciones recíprocos, es decir, una relación jurídica”.

Logo a seguir, o jurista demonstra que esta relação vinculativa do juiz e das partes é de Direito Público e distinta da relação jurídica material. É certo que autores alemães, antes de Bülow, já haviam se referido ao processo como uma relação jurídica. No entanto, o fizeram de forma superficial e assistemática, mais intuitiva do que consciente.

Bülow já nos apresenta duas características importantes da relação jurídica processual, quais sejam, a sua progressividade e a sua natureza pública. Note-se, ainda, que ele faz perfeita distinção entre a relação processual e a material, formulação que permitiu a independência científica do Direito Processual.

Adolfo Schönke nos diz que “por la presentación de la demanda se origina entre las partes y el Tribunal una relación jurídica, el conjunto de vínculos jurídicos- -procesales estabelecidos por medio del proceso entre el Tribunal y las partes, y entre éstas entre si”. Como se vê, Adolfo Schönke é partidário da chamada teoria triangular da relação jurídico-processual, admitindo que o processo vincula as partes diretamente, bem como as partes com o Juiz.

A doutrina, entretanto, ainda se encontra dividida, pois autores de renome negam a existência de vinculação imediata das partes entre si, sustentando que o liame jurídico se limita à vinculação destas com o Estado (Juiz), como parece evidente no processo penal.

Em face de uma comparação destas teorias a figuras geométricas, passou-se a chamar de triangular a primeira, e angular a segunda.

Merecem, ainda, serem citadas a teoria do processo como instituição, de Jaime Guasp, e a teoria do processo como entidade jurídica complexa, de Gaetano Foschini, o qual, escrevendo sobre o processo penal, assim se expressou: “Il processo sotto l’aspetto statico è una situazione giuridica complessa, sotto l’aspetto cinematico è uno atto giuridico complesso, sotto l’aspetto dinamico è un rapporto giuridico complesso”.

 

4.3. O processo como categoria autônoma de direito.

Diante de tantas teorias (existem dezenas), que procuram demonstrar a natureza jurídica do processo, uma coisa se nos afigura indiscutível: são todas elas fruto de um equívoco metodológico de procurar, a todo custo, enquadrar o processo em uma das categorias de direito conhecidas, ou seja, identificar o processo ao contrato, à instituição, à relação jurídica etc.

O próprio Jaime Guasp não esconde que partiu desta falsa perspectiva: “Después del concepto del proceso debe trazarse su naturaleza jurídica, lo cual supone la determinación de la categoría jurídica general a la que el proceso pertenece, esto es, la calificación del proceso dentro del cuadro común de figuras que el derecho conoce”.

Juan Montero Aroca deixou consignado em seu livro a utilização deste desvalorado método, assinalando que “en general la naturaleza del proceso se ha referido a categorías ya existentes, poniendo de manifesto, una vez más, la juventud del derecho procesal como ciência jurídica autônoma”.

Por outro lado, com a lucidez que lhe era peculiar, Eduardo Couture já acenava com a possibilidade de o processo ser uma categoria jurídica autônoma, muito embora não tenha colhido os frutos de sua aguda percepção: “El estudio de la naturaleza jurídica del proceso civil consiste, ante todo, en determinar si este fenómeno forma parte de las figuras conocidas del derecho o si por el contrario constituye por si una categoría especial”.

Após examinar de forma crítica a teoria do processo como função pública ou serviço público de Jesús Gonzalez Pérez, Juan Montero Aroca atinge o que julgamos ser o “momento ótimo” da evolução da ciência processual: “un paso más y se llega a la conclusión de que el proceso constituye una de las categorías generales de la ciencia jurídica, y que por tanto el proceso es el proceso careciendo de sentido toda referencia a conceptos distintos”. Esta é a nossa posição.

Parcialmente malogradas todas as teorias formuladas, as quais procuram subsumir o processo às categorias de direito conhecidas, cabe aos processualistas um posicionamento corajoso, qual seja, admitir que o processo já foi desvendado suficientemente em sua estrutura peculiar, tendo ontologia própria, hábil a concebê-lo como categoria autônoma dentro do quadro da teoria geral do direito.

As diversas teorias serviram para realçar todos os aspectos intrínsecos do processo, examinando-o sob os mais diferentes ângulos. Agora, resta-nos incorporar o processo ao quadro categorial já elaborado, embora não esteja a teoria geral do direito com a sua sistematização definitiva. Uma coisa nos parece certa, “el proceso es el proceso”, como deixou dito o processualista espanhol.

Não resta dúvida de que a teoria da relação jurídica é de suma importância, mas não deve ser identificada ao processo.

Para nós, o processo é, na realidade, a fonte da relação jurídica processual, a sua gênese. São, por assim dizer, dois momentos diversos: o processo (categoria autônoma já conceituada acima), e a relação jurídica que vincula os sujeitos que intervêm no processo. Criador e criatura, logicamente, hão de ter ontologia diferente. É até mesmo intuitivo.

Finalizamos este capítulo fazendo nossas as palavras de Lois Estévez: “El proceso no necesita fuera de si ninguna teoria explicativa; él solo encierra la suficiente claridad”.

 

5. A PRETENSÃO NO PROCESSO PENAL DE CONHECIMENTO.

5.1. A pretensão penal condenatória A norma penal incriminadora cria para o seu destinatário o dever genérico de praticar determinada conduta ou de abster-se dela. Correlatamente tem o Estado o poder-dever de exigir dos súditos um comportamento conforme esta norma penal, impedindo, coercitivamente, a prática de infrações, através de seu poder de polícia. Até então, a rigor, não existe o chamado ius puniendi (rectius, poder-dever de punir) do Estado. Este surge com o cometimento de uma infração penal “punível”.

A punibilidade, a nosso juízo, não é elemento ou requisito da infração penal, devendo ser entendida como a possibilidade de aplicação da sanção penal ao seu sujeito ativo. Crimes há que, enquanto não preenchidas certas condições, não são puníveis.

As condições de punibilidade se diferem das chamadas condições de procedibilidade. As primeiras, por serem pressupostos do poder-dever de punir do Estado, referem-se ao mérito da pretensão punitiva, enquanto as últimas condicionam tão somente o regular exercício da ação penal. Assim, o poder-dever de punir do Estado compreende ou pressupõe: a) a prática de uma infração penal (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade); b) punibilidade do sujeito ativo da infração. Conceituação diversa tem a pretensão punitiva, deduzível na ação penal condenatória.

Conforme ensinamento de Carnelutti acima examinado, trata-se de uma exigência no sentido de que prevaleça o interesse do autor da ação na punição do réu, ordinariamente em detrimento de sua aspiração de manter a liberdade ou, ao menos, o seu estado de inocência.

Desta forma, a pretensão punitiva é fato processual, praticado em juízo através do exercício da ação penal condenatória. No processo penal, a pretensão punitiva é sempre insatisfeita (o que, por si só, não caracteriza a lide penal), pois a pena não pode ser aplicada senão através do processo, em decorrência do interesse do próprio Estado de tutelar a liberdade do réu, direito indisponível – nulla poena sine judicio.

Em sendo abstrato o direito de agir, urge que não se vincule o poder-dever de punir do Estado com a pretensão punitiva. São categorias autônomas e distintas. Na ação penal privada, tais categorias têm titulares diferentes.

Acresce que o poder-dever de punir pode existir sem que a pretensão punitiva tenha sido deduzida em juízo. Por outro lado, casos há em que o autor da ação penal deduz determinada pretensão punitiva sem que tenha efetivamente o alegado direito material, sendo o pedido condenatório julgado improcedente.

Pelo exposto, o poder-dever de punir é condição indispensável para o acolhimento da pretensão punitiva (julgamento favorável). Não obstante, esta pode existir independentemente daquele (julgamento desfavorável).

Assim colocadas as coisas, parece-nos incorreto dizer que a prescrição penal extingue a pretensão punitiva. Na verdade a prescrição é causa extintiva da punibilidade, fazendo perecer o poder-dever de punir do Estado. Malgrado tal perecimento, muitas vezes a pretensão punitiva é apresentada em juízo, o que acarretará a improcedência do pedido de condenação (mérito do processo penal).

Deste modo, podemos concluir que a pretensão punitiva é categoria de natureza exclusivamente processual, veiculada em juízo através do exercício da ação penal condenatória. Como fato processual, existirá sempre, independentemente do direito alegado pelo autor.

 

5.2. A pretensão penal não condenatória.

Pode-se dizer que o entendimento de que no processo penal de conhecimento também existem ações não condenatórias é uma conquista relativamente recente da doutrina processual.

Segundo nos informa o professor Frederico Marques, coube a Eduardo Massari o tratamento inicial do tema, em monografia publicada com o título La norme penale, em data de 1913.

Posteriormente, o mesmo Massari volta a preocupar-se com a matéria, agora a tratando com aceitável rigor sistemático, afirmando o que se segue: “Da ciè deriva che quella particolare forma di azione, la quale é comunemente designada col nome azione penale, no altro è che la figura de azione penale più importante: quella cioè alia qualle, sulla acorta del linguaggio legislativo, si riferisce il linguaggio comune, nella prática del foro. Ma essa no esclude la esistenza di altre attività, che tendono anch’esse alia instaurazione del processo a scopi diverso dall ‘accertamento del reato, e sono perciò azione penale vere e proprie.” “In relazione a tale moltiplicità di scope dell ‘azione penale, il dibattuto problema sulla unicità o pluralità dell’azione penale non può che risolverso nel senso di riconoscere che l’azione non e già unica ma plurima. E precisamente deve ammettersi che nel processo penale s’incontrino un’azione di condena, un’azione di accertamente e un’azione constitutiva, nè più nè meno come nel processo civile”.

O próprio Massari, à luz do direito processual penal italiano, fornece como exemplo de ações penais não condenatórias alguns incidentes da execução, a extradição passiva, a reabilitação e o pedido de declaração de extinção de punibilidade.

Nenhum reparo há que se fazer a esta moderna doutrina, que é hoje majoritária. Entretanto, é procedente a advertência de Frederico Marques de que não se deve transformar em modalidades de ação penal simples incidentes processuais, nascidos no curso do processo. Só se apresenta correto falar em ação quando, com o pedido que nela contém, instaure-se uma nova relação processual penal.

Diante do nosso direito positivo, forçoso é reconhecer que, além dos exemplos fornecidos por Massari, temos ainda a ação penal de habeas corpus e a ação de revisão criminal. Malgrado o código as tenha disciplinado dentro do capítulo dos recursos, não resta dúvida de que são verdadeiras ações penais não condenatórias, pois instauram relação processual diversa, com sujeitos próprios, bem como têm cabimento após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Assim, de acordo com a pretensão manifestada, com o provimento jurisdicional invocado, estas ações terão a natureza constitutiva ou declaratória. Um habeas corpus para anular determinado processo por vício de citação será uma ação penal constitutiva. Se ele for impetrado para o reconhecimento judicial da prescrição, será uma ação declaratória. Terá sempre a natureza de ação penal porque a pretensão será julgada através da aplicação de uma regra jurídica de Direito Penal ou Processual Penal.

Sobre a admissão de pluralidade de ações no processo penal, veja-se, ainda, o interessante trabalho de Adhemar Raymundo da Silva, publicado com o nome “Nova concepção do processo penal”.

 

6. A PRETENSÃO NO PROCESSO PENAL CAUTELAR E DE EXECUÇÃO.

Conforme a natureza da pretensão deduzida em juízo, podemos ter ainda três espécies de processo a serem utilizados na atividade jurisdicional: processo de conhecimento (ação penal condenatória, declaratória e constitutiva), processo cautelar e de execução.

Segundo Tullio Liebman, a atividade desenvolvida no processo de conhecimento destina-se a “descobrir e formular a regra jurídica concreta que deve regular o caso”. Já, através do processo de execução, “realizam-se operações práticas para efetivar o conteúdo daquela regra, para modificar os fatos da realidade de modo a que se realize a coincidência entre a regra e os fatos.”

Em verdade, na execução o juiz também desenvolve uma atividade substitutiva a das partes, realizando atos materiais tendentes a tornar efetiva a satisfação prática da pretensão acolhida no processo de conhecimento ou expressa em um título extrajudicial (execução civil), independentemente da vontade do réu, que a tudo fica sujeito.

Sobre o caráter jurisdicional da execução civil, importante consultar a conhecida tese do saudoso professor Cândido Dinamarco.

Mas não são somente estas duas as formas de atuar do Estado no desempenho de sua função jurisdicional. Os processos de conhecimento e de execução podem ter sua eficácia, em casos especiais de urgência, dependente de uma atuação estatal mais célere. “Diante de uma situação contenciosa proveniente de pretensão insatisfeita ou de pretensão contestada, pode haver necessidade de atuação preliminar e rápida dos órgãos jurisdicionais, em processo cautelar, para evitar as consequências do periculum in mora. Em tal hipótese, funciona a jurisdição em caráter instrumental, pois tem por escopo garantir a eficácia do processo de conhecimento ou de execução”.

Enquanto através do processo de conhecimento e de execução o Estado presta tutela imediata e satisfativa, no processo cautelar procura-se preservar situações, a fim de assegurar a eficácia das providências, quer cognitivas, quer executivas. Sua função é meramente instrumental em relação ao processo de conhecimento ou de execução. Por meio do processo cautelar o Estado exerce uma tutela jurisdicional mediata ou preventiva, ou seja, visa a tutelar os meios e os fins das outras espécies de processo. Em sendo única a atividade jurisdicional, não há por que se negar a existência do processo penal cautelar e do processo penal de execução.

Tanto a doutrina como o legislador sempre estiveram com os seus olhos voltados, quase que exclusivamente, para o processo penal de conhecimento, ou mais precisamente, para a ação penal condenatória. Por isso mesmo, tem sido lenta a sistematização científica destas duas outras espécies de processo penal.

Evidentemente que as peculiaridades dos diversos ordenamentos jurídicos têm criado sérias dificuldades para uma teoria unitária sobre o processo penal cautelar e de execução.

Entretanto, se procurarmos a formulação de um sistema processual mais amplo, não restrito a este ou aquele código, facilmente constataremos a existência destas espécies de processo, que têm ontologia própria e são consectários lógicos da teoria geral da jurisdição.

Mesmo diante do Código de Processo Penal de 1941, não padece dúvida de que, pelo menos a execução da pena de multa, tem natureza absolutamente jurisdicional. Isto fica ainda mais patente pelo art. 164 da nova Lei de execução Penal (Lei nº 7.210/84), ao dispor: “Extraída certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que valerá como título executivo judicial, o Ministério Público requererá, em autos apartados, a citação do condenado para, no prazo de dez dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora”.

Com relação à tormentosa discussão sobre a natureza jurisdicional da execução penal da pena privativa de liberdade, recomendamos a consulta aos trabalhos de Albuquerque Prado, Adhemar Raymundo, Ada Pellegrini Grinover e à monografia de Giulio Catelani.

Por outro lado, é certo que o nosso código em vigor não disciplinou autonomamente o processo penal cautelar. O projeto que se encontra em tramitação no Congresso já abre um livro autônomo para as “medidas cautelares”, reguladas a partir do art. 513.

De uma forma ou de outra, é indiscutível a existência de tutela cautelar no nosso sistema. Entretanto, ela é prestada incidentalmente, até mesmo de ofício, pelo Juiz.

Note-se, porém, que tal sistemática decorre exclusivamente de uma opção eventual do legislador, nada lhe impedindo que destine um livro próprio no código para disciplinar o processo penal cautelar, com autonomia em relação ao processo de conhecimento.

Assim, no processo penal, exerce o Juiz atividade instrumental de natureza cautelar, seja em face de uma pretensão, seja sem qualquer provocação. Embora sem criar relação processual autônoma, mas de forma incidental, existe pretensão cautelar nos casos de requerimentos de prisão provisória, de aplicação provisória de interdições de direitos e medidas de segurança, de sequestro dos bens adquiridos com os proventos da infração penal, visando a assegurar efeito da sentença penal condenatória e a antecipação de prova testemunhal prevista no art. 225 do Código de Processo Penal de 1941.

Somos que a hipoteca legal do art. 134 do citado diploma legislativo, bem assim como o arresto, que têm por finalidade assegurar a sua efetivação (art. 136), são medidas cautelares civis indevidamente embutidas no processo penal, vez que têm por escopo garantir o ressarcimento do dano causado pela prática criminosa.

Quero crer que, como tal, encontram-se revogados pelo Código de Processo Civil de 1973 que disciplinou integralmente a matéria em livro próprio. Sobre o processo penal cautelar torna-se indispensável a leitura do magnífico livro do professor Romeu de Campos Barros.

(continua na próxima semana)

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

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