Reflexão ponderada sobre a “renúncia tácita” às instâncias administrativas para o sujeito passivo da obrigação tributária e demandante em ação judicial — Súmula Vinculante CARF — uma necessária reavaliação  

07/02/2019

 

            O custo do litígio no Poder Judiciário é muito relevante, tendo importante repercussão no Produto Interno Bruto Nacional (PIB — 1,4%), e se mostra crescente, pois ao ultrapassar a casa de 80 milhões de processos, as despesas somam R$ 90,8 bilhões, crescendo a uma média de 4,1% desde o ano de 2011, sendo que 90,5% são gastos com pessoal (ano base 2017).[i]

            Em matéria fisco-tributária, muito se discutia sobre a concomitância do processo administrativo e judicial, acerca do mesmo objeto, cuja solução, é um tanto quanto superficial do ponto de vista da equação econômica do litígio.

            É pacifico o entendimento de que o contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária, não precisa aguardar o esgotamento das discussões na esfera administrativa para opor pretensão em juízo, principalmente quando depara com uma situação de urgência, a exemplo da necessidade de uma certidão, obstada por ato administrativo, em equívoco ou ilegalidade.   

            Ocorre que a Portaria do Ministério da Fazenda, sob o nº 277, datada de 07 de junho de 2018, atribui às súmulas do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), constantes do anexo único do mesmo documento, efeito vinculante em relação à administração tributária federal.

            Repercute na presente discussão a Súmula Vinculante nº 1, segundo a qual “importa renúncia às instâncias administrativas a propositura pelo sujeito passivo de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento de ofício, com o mesmo objeto do processo administrativo, sendo cabível apenas a apreciação, pelo órgão de julgamento administrativo, de matéria distinta da constante do processo judicial”. (Vinculante, conforme Portaria MF nº 277, de 07/06/2018, DOU de 08/06/2018).

            A referida súmula trata de “renúncia”, mas tal expressão não é a mais importante, apesar de se tratar de uma suposta renúncia tácita, impositiva e extralegal, com repercussão no princípio do livre acesso à justiça.

            Consolidou-se o entendimento de que não faria sentido discutir administrativamente uma determinada questão submetida a exame judicial, sob o argumento de que o Poder Judiciário, ao exercer um controle supremo e autônomo dos atos administrativos, tornaria estéril a apreciação da mesma questão no âmbito administrativo[ii].  

            O Pleno do STF já teve a oportunidade de apreciar e decidir sobre o assunto, ao enfrentar questionamento de constitucionalidade do conteúdo do parágrafo único, artigo 38, da LEF, sob o nº 6.830/80, que prevê conteúdo muito similar.[iii] Naquela ocasião, ainda no ano de 2008 e sob a Relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, prevaleceu o entendimento de que o referido dispositivo legal não ofende o direito de petição e o direito ao livre acesso à justiça, nos termos da Constituição da República, artigo 5º, XXXIV, “a” e artigo 5º, XXXV. Pelo contexto, o v. acórdão trata a situação como uma questão de lógica jurídica.   

            Como visto, tanto o Poder Judiciário, como o CARF, última instância administrativa, seguem o entendimento sumulado que repercute em todas as demais esferas e instâncias da Jurisdição Estatal.

            Isto significa que o contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária, ao socorrer-se de alguma medida judicial que tenha por objeto matéria submetida a exame administrativo (as vezes uma simples medida cautelar satisfativa), renuncia às instâncias administrativas e, portanto, à possibilidade de revisão do ato pelo próprio Órgão, cabendo subordinar-se ao ulterior e longínquo resultado definitivo do processo judicial.

            Quer-se trazer aqui um pensamento, mais reflexivo do que assertivo, que tem intrigado este profissional do direito. Indaga-se: será mesmo que a equação econômica, pela renúncia tácita e forçada, está correta do ponto de vista da economia do litígio (questão comportamental)? Será mesmo que se pensou na equação econômica da discussão nas esferas administrativa e judicial, ponderando-se sobre as relevantes diferenças?

            Acredita-se que o posicionamento até então consolidado não resistirá às novas tecnologias simplificadoras de atos administrativos de regência e de solução, cujas mudanças, no âmbito da jurisdição administrativa, são de implementação mais eficiente do ponto de vista do tempo, investimento, planejamento e orçamento. 

            O litígio judicial leva em consideração muitas variáveis, que nascem no momento da tomada de decisão pela propositura de uma pretensão ou demanda, a depender, segundo TIMM[iv], de alguns fatores que constituem a equação econômica do litígio, a saber: Valor envolvido x probabilidade de sucessocusto do processo = valor esperado da demanda.[v] Caso a solução pela via administrativa represente um grau de confiança maior, guiada por precedentes judiciais já consolidados e detectados pelas novas tecnologias e inteligência artificial, com uma tendência, portanto, de objetividade e previsibilidade, o contribuinte, ao refletir sobre a equação do litígio, remanescerá com sua discussão no âmbito administrativo, ressalvados os casos de urgência.  

            O socorro a uma providência judicial não é incompatível com o regular trâmite do processo administrativo, pois, obtendo-se um resultado útil das instâncias administrativas, caberá a extinção do processo judicial, seja por desistência seja por perda superveniente do interesse processual.

            O reexame pelo próprio Órgão, no caso administrativo, tende a trazer um resultado mais célere e assertivo para a questão pautada (quando deferitória da pretensão do contribuinte), em comparação ao trâmite do processo judicial, pautado, desde a origem, com atos de postulação, providências preliminares, saneamento, instrução e julgamento, sentença, recursos, chegada e retorno dos Tribunais Superiores, cumprimento de sentença.

            Para se ter uma ideia e parâmetro de comparação, o tempo médio do processo baixado do 2º Grau na Justiça Estadual, em se tratando de execução fiscal é de 8 (oito) anos e 5 (cinco) meses, enquanto que na Justiça Federal é de 6 (seis) anos e 11 (onze) meses.[vi]  Neste tempo, sem possibilidade de revisão do ato, mesmo que equivocado ou eivado de ilegalidade, pela Jurisdição Administrativa, o contribuinte fica a mercê dos prejuízos decorrentes do tempo do processo e as agruras das severas restrições.  

            Acredita-se na seguinte hipótese: a gestão de atos e processos administrativos tendem a demandar menos tempo, diante da racionalização e das novas tecnologias, até porque já se apresentam startups desenvolvendo sistemas de autogerenciamento para a gestão pública; caso o resultado no âmbito administrativo  ocorra antes de uma solução definitiva por meio do processo judicial, sobre a mesma questão, parcial ou totalmente, a satisfatividade obtida pela Jurisdição Estatal, marcada pela unicidade, ocorrerá antes e com muito menos dispêndio de recursos financeiros e humanos, possibilitando ao Poder Judiciário e ao Estado-Juiz ocuparem-se de questões mais complexas e relevantes, não suscetíveis de solução no âmbito da administração pública setorial, freando, a partir deste raciocínio, a escala geométrica do crescimento das despesas com o litígio.  

            Logo, entende-se pela viabilidade de uma nova discussão, mais moderna e atual, considerando-se o fato de que o processo administrativo e judicial podem conviver, em concomitância e harmonia, ao menos até a solução definitiva do processo judicial, que poderá ser precedida (e assim se espera) de uma decisão administrativa. Caso esta decisão seja favorável ou deferitória da pretensão do contribuinte, a pretensão judicial ficará desprovida de objeto, acarretando a perda superveniente do interesse processual, facilmente perceptível.  Tais circunstâncias, de fato, poderão gerar uma economia em escala, não tendo espaço o vazio argumento de que a Súmula Vinculante nº 1 do CARF e o disposto na LEF acarretaria economia processual, sugerindo-se, então, um monitoramento dos custos, investimentos e benefícios da harmonização e da desarmonização, para ulterior revisão legal e sumular.

 

 

[i]Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018, p. 73, 56 e 61.

[ii] Acórdão n. 301-31.875. Processo 13851.000927/96-78. Ministério da Fazenda —Terceiro Conselho de Contribuintes — Primeira Câmara. Relatora: Irene Souza da Trindade Torres, 22 de agosto de 2005.

[iii] O parágrafo único, do art. 38, da Lei 6.830/1980 (Lei da Execução Fiscal - LEF), dispõe que: "a propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo [ações destinadas à discussão judicial da validade de crédito inscrito em dívida ativa] importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto".

[iv] TIMM, Luciano. Análise Econômica do Direito Processual Civil . Palestra no Auditório da Associação dos Magistrados do Paraná, no dia 04 de fevereiro de 2019, promovida pela  Escola da Magistratura do Paraná — EMAP.

[v] RE 233582, Relator Ministro Joaquim Barbosa (acórdão), Tribunal Pleno, DJe 16/05/2008.

[vi] Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018, p. 35.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Building Reflection // Foto de: Mick Tursky // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/46430981@N02/45959861834/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura