Redução da Maioridade Penal: a face perversa do menorismo

01/02/2022

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A partir de diferentes interesses políticos, sociais e econômicos, a questão Redução da Maioridade Penal gera uma batalha de narrativas, mobilizando diferentes segmentos da sociedade brasileira. Neste artigo, sem objetivar produzir uma “linha do tempo” – uma vez que a História não é linear -, recorro ao passado para problematizar o argumento que sustenta a defesa desta proposta, refletindo como experiências pretéritas desconstroem a ideia amplamente difundida da Redução como “solução”.

Inicialmente é bom salientar que a preocupação a imputabilidade penal não é um problema que emergiu nas últimas décadas, haja vista que fazia parte da legislação colonial. Neste período, o Direito Penal português era referendado pelo Livro V das Ordenações Filipinas, no qual a imputabilidade penal era fixada na idade de 17 anos.  A partir da “independência”, a primeira Constituição Brasileira de 1824 e o Código Criminal do Império, estabelecia a idade penal foi reduzida para 14 anos, inaugurando a primeira experiencia de redução no país.

A segunda experiência de redução aconteceu décadas depois, com a Proclamação da República. O primeiro Código Penal Republicano reduziu a imputabilidade para 9 anos. A partir da égide da “ordem e progresso”, legisladores brasileiros passaram a punir crianças consideradas criminosas, as quais tinham que responder judicialmente como adultos. Os filhos da “ordem e progresso” eram crianças filhas de ex-escravizados, de homens e mulheres negros que mesmo depois da chamada “abolição”, ainda enfrentavam - como ainda hoje enfrentam -, o resultado de “liberdade” que não os libertou.

É importante ressaltar que a segunda redução da imputabilidade penal foi produzida no cenário de uma recém abolição da escravidão, marcada pelas diferentes formas de violências sociais e institucionais. Inclusive, a historiografia da pós-abolição nos afirma que este período foi caracterizado pela negação de direitos aos ex-escravizados, que continuavam “cativos” do sistema que não os garantia educação, moradia, segurança, saúde...

Em 1921, o Brasil reconhecia que a redução da maioridade não resolveu os problemas sociais, passando a alterar a idade mínima para 14 anos. Importante ressaltar que, neste momento, a comunidade internacional (a Declaração de Genebra foi publicada em 1924, por exemplo) coloca em tela o debate acerca dos direitos das crianças, possibilitando as primeiras mudanças políticas e jurídicas, que reconheciam a necessidade de se repensar a educação, a saúde e outras dimensões da vida de meninos e meninas, inclusive, questionando as práticas de aprisionar crianças nos mesmos espaços dos adultos.

É neste processo de mudanças sociais que emerge o primeiro Código de Menores do Brasil, em 1927, como uma legislação específica voltadas para os “menores”. O primeiro Juiz de Menores, de nome José Cândido de Albuquerque Mello Mattos (1864-1934) é ainda hoje reconhecido pela “paternidade” deste Código. Sob a égide da vigilância e punição, a normativa federal se voltava para o controle das crianças pobres e suas famílias... Afirmo que foi uma legislação voltada para os filhos dos ex-escravizados, produzindo gerações de adolescentes e jovens “pretos, pobres e periféricos”, que hoje fazem parte das unidades de privação de liberdade. E com ele surge não só um Código, mas uma cultura que costumo chamar de menorismo estrutural (Miranda, 2021)

O menorismo produziu tentáculos e fez emergir o discurso do “menor carente”, “menor delinquente”, do “menor abandonado”. Considero que o menorismo se firmou de modo estrutural na nossa sociedade, gerando mentalidades menoristas, disseminadoras de ideias que é necessário vigiar para controlar e punir para corrigir nossos adolescentes e jovens. E assim os tentáculos do menorismo se ramificaram do Sistema de Justiça para educação, assistência social, segurança pública...

Foi a partir do Código Penal de 1940 que o limite etário passou de 14 para 18 anos, na qual vigora até dias de hoje. A Constituição Federal do Brasil de 1988, no artigo 228 da Carta Magna, assegura que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. Em 1990, foi promulgado o do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando o Brasil aboliu oficialmente o Código de Menores e a ideário da Funabem-Febem.

Acredito que o Estatuto representa uma forma diferente de pensar o atendimento socioeducativo, por se contrapor ao Código menorista (criado em 1927 e reformulado em 1979) e a lógica da “situação irregular”. Ao inaugurar uma nova sensibilidade jurídica e política a “questão do menor” foi substituída pela “questão da infância”, uma vez que se produz lógica de proteção para se evitar ou diminuir a socioeducação. Contudo, ainda esbarra na cultura menorista, que não foi abolida culturalmente como o foi juridicamente o Código de Menores, em 1990 (Miranda, 2014)

Importante destacar que mesmo depois de 31 anos de Estatuto, considero que colocar como prioridade absoluta a política de socioeducação no Brasil é um desafio para os defensores e defensoras dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, haja vista a atuação de diferentes setores da sociedade que insistem em não (re)conhecer a História, que - como podemos perceber ao longo deste artigo -, já nos ensinou que a Redução da Maioridade Penal não é a solução.

A cultura menorista ganha força no cenário de uma sociedade punitivista, que insiste em não reconhecer as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, mas, sim, como objetos dos seus mais diferentes interesses (midiáticos, econômicos, políticos eleitorais). Ao defender a Redução da Maioridade Penal, a face perversa do menorismo, a sociedade punitivista, nega a História e a dignidade de adolescentes e jovens que vivenciam o atendimento socioeducativo, filhos da “ordem e do progresso”.

Defender a Redução da Maioridade Penal é não reconhecer uma abolição injusta, que impediu a cidadania de muitos meninos e meninas pretos, pardos, indígenas e de comunidades tradicionais; subjugados pela exploração capitalista que não lhes garantiu a vida digna. Apoiar a Redução da Maioridade Penal é ignorar o passado marcado pelas desigualdades sociais e educacionais, que impediu os filhos da classe trabalhadora de ter acesso as universidades. Referendar a Redução é desconhecer que o racismo estrutural impede os nossos adolescentes e jovens de projetar os horizontes de futuro, uma vez que são levados (mesmo sem querer) ao mundo do tráfico e da criminalidade. Acreditar na Redução da Maioridade como solução é negar a História.

A ciência história comprova que a ideia da Redução como solução não se sustenta. Negar a historiografia é negar a Ciência. Recorrer a História é sempre uma tarefa desafiadora para entender como o passado se encontra presente nas nossas relações políticas e sociais. Como afirma o historiador francês Marc Bloch (2000), a história é filha do seu tempo e hoje o tempo de hoje, sombrio e nebuloso, é preciso recorrer ao passado para aprender e não repetir.

 

Notas e Referências

BOEIRA, Daniel Alves. CPI do Menor: infância, ditadura e políticas públicas (Brasil, 1975-1976). Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História UDESC, Florianópolis, SC, 2018.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000.

MIRANDA, Humberto da Silva. Nos tempos das Febems: memórias de infâncias perdidas (Pernambuco / 1964-1985). 2014. 348f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em História, UFPE, Recife, 2014.

____. Precisamos falar de menorismo estrutural. In: Empório do Direito. 07/09/2021 https://emporiododireito.com.br/leitura/precisamos-falar-de-menorismo-estrutural. Acessado em: 15/02/2022.

 

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