Rede Estado & Constituição (REPE&C): O estado sconfinato

29/05/2015

Por José Luis Bolzan de Morais - 29/05/2015

E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra de natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade* (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja protecção e defesa foi projectado.

T. Hobbes, O Leviatã

Inauguramos hoje esta coluna que pretende, a cada quinzena, trazer à discussão temas relativos às circunstâncias que fazem parte dos trabalhos elaborados pela equipe que participa da Rede de Pesquisa/CNPQ “Estado e Constituição” – REPE&C -, hoje composta por grupos de pesquisa cadastrados no CNPQ e pertencentes à UNISINOS (sob minha supervisão), UNIJUI (sob a coordenação do Professor Alfredo Copetti Neto), UFSM (sob o comando da Professora Jania Saldanha), UFSCAR (sob a orientação do Professor Celso Maran) e FDV (sob supervisão do Professor Nelson Camatta), no Brasil, e à Universidade de Sevilla/ES (sob o comando do Professor Alfonso de Julios-Campuzano), Universidade Roma I – La Sapienza/IT (sob a orientação do professor Roberto Miccú).

Tal Rede tem mantido e desenvolvido pesquisas individuais e coletivas interconectadas, promovido eventos itinerantes, assim como reuniões de trabalho entre os grupos de pesquisa. Foram, ao todo sete encontros presenciais dos quais participaram os membros da REPE&C e membros da comunidade acadêmica anfitriã, tanto no Brasil quanto no exterior, do que resultou a publicação de um primeiro livro – Estado e Constituição – sob os auspícios da Editora da UNIJUI, aguardando-se para este ano ainda o segundo volume, já no prelo.

Todos os eventos realizados se pautaram em um tema base – a internacionalização do direito a partir dos direitos humanos -, adotando especificidades para cada reunião de trabalho, o que oportunizou o desenvolvimento e o aprofundamento de aspectos pontuais que dialogam com a interrogação que se promove às instituições político-jurídicas modernas, desde o Estado, na sua formalidade, até aspectos particulares desta empreitada que, não apenas interrogam as condições de possibilidade de sua existência e continuidade, mas também apontam alternativas possíveis para responder às crises enfrentadas. Em outras, palavras, tratou-se, por exemplo, desde a crise do estado social acentuada pela falência da estrutura hiperfinanceira global, ocorrida em 2008; até o problema congênito da relação estabelecida entre o poder (político) e a liberdade (econômica).

Nesses termos, partimos de uma noção de “crise” que não necessariamente carrega uma marca negativa, de fim, de destruição, de ruína, mas que pode, isto sim, aportar o novo, como momento inaugural onde tudo está “à disposição”. Como anota Peter Pál Pelbart, ancorado em François Tosquelles: El momento de la crisis, disse él, es aquel en el que ya nada parece posible. Pero también es el momento en que se cruzan muchas transformaciones...Es decir, la crisis es conjunción del nada es posible y del todo es posible...[1]

Assim, estando, como sugere Giacomo Marramao[2], entre o não mais e o ainda não é preciso que confrontemos tais circunstâncias e possamos ser capazes de participar ativamente deste momento inaugural, o que não significa por óbvio que estejamos promovendo o “grau zero” nas/das formas e fórmulas político-institucionais forjadas ao longo da história.

Por isso, o título da coluna: Sconfinato[3]. Tal não é uma escolha aleatória. Faz parte e dialoga com aquilo que temos tentado desenvolver na REPE&C. Assim, a partir desta “perda de limites” nos colocamos frente a situações que nos questionam acerca seja dos próprios limites, do seu desaparecimento – o que dialoga diretamente com a territorialidade da estatalidade moderna -, da sua reconfiguração. E é disso que pretendemos falar e dialogar.

Serão trabalhos de diversos autores-membros da REPE&C, discutindo temas que nos ajudem a compreender tais circunstâncias e apontem caminhos críticos.

A questão que emerge e que pautará estas discussões se coloca a partir da preocupação de pensar uma “outra” globalização, uma cujo objeto central fossem os direitos e não a economia[4].

Neste quadro – de uma “outra globalização possível” – chama à atenção as transformações que se operam, sobretudo com a perda dos “confins” ou dos limites tradicionalmente reconhecidos às instituições político-jurídicas modernas.

A partir do “fim da geografia” será preciso pensá-las in una dimensione sconfinata, neutralizando, embora não excluindo – até então -, os limites excludentes dos “confins” – como limites territoriais (geográficos) ou simbólicos – próprios da estatalidade moderna.

Como expressa S. Rodotà:

Il fenomeno più appariscente è certo quello dei continui attraversamenti o della cancellazione/ridefinizione dei confini, sia per individuare la condizione dei soggetti, sai per stabilire come le continue delocalizzazzioni incidano sulla definizzione, la  portata e la garanzia dei diritti.[5]

Desde este “reconhecimento”, evidenciado, particularmente, pela “revolução da internet” – que, descentralizando o mundo, transforma a linguagem da política, tomando emprestado o que indica S. Rodotà – vamos enfrentar o que identifica como o “mundo novo dos direitos”, tendo presente que, mesmo neste quadro referencial, não se pode perder de vista o papel do direito, ou melhor, dos direitos[6]. E tal tem seu ponto de sustentação no reconhecimento de que experienciamos/“experimentamos” uma “reinvenção” que põe em pauta aqueles que, com ela, pretendem liberar-se do “peso” dos direitos e os que pensam ser possível fazer frente a isso “fechando-se na sua antiga cidadela”.

Para sair desta encruzilhada, é preciso ter presente, desde logo, que não se pode falar de uma única “era dos direitos”, mas, sim, de pensá-la – pensá-las, portanto - no plural, ou seja como “eras” dos direitos, tanto diacrônica quanto sincronicamente[7].

Portanto, o que vivemos contemporaneamente é uma “nova” era dos direitos, na qual há que se prestar atenção aos novos fatores que condicionam as fórmulas tradicionais sem, contudo, fazê-las desaparecer. E, para um novo momento histórico, se exige respostas compatíveis com suas circunstâncias.

Entre o fim da experiência moderna e uma nova fase, dominada pela lógica de mercado, põe-se outra possibilidade, uma nova era dos direitos. Aquela dos “diritti come “patrimonio comune dell’umanità”[8], que, ao mesmo tempo que se inaugura em uma era da pós-geografia, traz questões inéditas: novos sujeitos históricos, novas formas de dominação – entre condensação (guerra humanitária) e fragmentação (“babelização” da linguagem dos direitos). Uma era na qual ainda se vive entre identidades locais produtoras de culturas próprias e em competição, ao mesmo tempo que se lhes toma como um “terreno comum” a  partir das diversidades que viabilizam il radicamento di ciascuno nel comune del mondo[9].

Será este o caminho a ser trilhado. Serão estas as interrogações inaugurais, para as quais buscaremos respostas em conjunto com aqueles que se dispuserem a dialogar conosco, sem as amarras tradicionais da cultura jurídica aferrada às certezas que nos cegam e imobilizam, como nos ensinou desde sempre Luis Albero Warat.


Notas e Referências:

[1] Ver: Una crisis de sentido es la condición necesária para que algo nuevo aparezca. In: FERNANDEZ-SAVATER, Amador. Fuera de Lugar. Conversaciones entre crisis e transformación. Madrid: Acuarela y Machado Grupo de Distribución. 2013. p.p. 45 e 46

[2] MARRAMAO, Giiacomo. Dopo babele. Per um cosmopolitismo dela differenza. Eikasia. Revista de Filosofia. Año IV. Nº 25 (mayo 2009). http://www.revistadefilosofia.org (acesso em 20/4/2015)

[3] Sconfinato - scon.fi.na.to - agg 1 ilimitado, infinito. 2 enorme, imenso. 3 sem limites

[4] I diritti  fondamentali in tal modo diventano il tramite di unaltra connessione possibili, e per la quale si deve politicamente lavorare, racchiusa nella formula globalizzazione attraverso i diritti, non attraverso i mercati. Para S. Rodotà estamos diante de um novo momento histórico que põe em evidência, de um lado, a “revolução da igualdade” e, de outro, a “revolução da dignidade”, inaugurando uma “nova antropologia” e dando origem, em consequência, a uma “revolução dos bens comuns”, além de uma “revolução da internet” onde o direito vem, sempre, profundamente implicado. RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti. Roma: Laterza. 2012. pp. 14 e 15

[5] S. Rodotà, op. cit., p. 26

[6] Como diz S. Rodotà, p. 42: È ingenua, e per molti versi sorprendente, la tesi que vede i diritti inservibili in um mondo ormai prigionero della lógica econômica.

[7] Sappiamo che linvenzione dei diritti appartiene alla modernitá occidentale, che stretta è la sua connessione con le rivendicazioni individualiste e proprietarie della borghesia vittoriosa, che levoluzione successiva, sul continente europeo soprattutto, invece è tutta legata allirruzione di um altro soggetto, la classe operaia, che impone la modifica del quadro costituzionale, conduce addirittura verso uma nuova forma di Stato che, per il ruolo assunto dai diritti sociali, si conviene de definirre Welfare State, Stato sociale, Sozialstaat, “État-providence. Nella modernità, dunque, insediamento e forza dei diritti sobno parte integrante della vicenda dei soggetti storici della trasformazione política, econômica, sociale, che próprio ai diritti affidano linnovazione e il suo consolidamento.

Ma che cossa accade quando quei soggetti si trasformano, mutano ruolo e funzione, non sono più quelli che danno il tonno al tempo vissuto? Quando è il volto anônimo delleconomia a identificare i tratti del mondo globale, quando si insiste sul fatto che i mercati votano e le istituzioni finanziare giudicano, e quindi si appropriano di funzioni che appartengono alla democrazia e sembrano ridurre allunica loro misura tutti i diritti? Quando la tecnologia  spinge verso le frontiere del post-umano, e quindi immediatamente ci si domanda se davvero possano sopravvivere diritti non a caso definiti, anche nel linguaggio giuridico, umani? (Op. cit., pp. 42/43)

[8] Op. cit., p. 43. Para S. Rodotà, i beni comuni delineano lopposto dellindivdualismo uma società nella quale sono continui gli scambi e le interazioni tra individuale e sociale, dove appunto la ricostruzione del legame sociale diviene tema centrale. (pp. 122/123). Esta questão ganha outra perspectiva na obra: HARDT, M. e NEGRI, A. Comune. Oltre il privato e il pubblico. Milano: Rizzoli. 2010.

[9] Id. Ibid., p. 44. Este tema pode ser evidenciado quando se enfrenta a questão da cidadania. Esta deixa de ser um elemento de exclusão do outro, passando a funcionar como meio de reconhecimento. Um exemplo desta transição pode ser percebido na tentativa do Brasil em abandonar uma legislação da época da ditadura militar, como aquela do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6815/80), baseada na soberania, segurança e no interesse nacional, com a proposição de uma Lei de Migrações, cujo fundamento está na hospitalidade, no acolhimento e no reconhecimento e atribuição de direitos. Sobre isso ver a proposta de nova legislação apresentada pela Comissão de Especialistas, da qual fizemos parte, ao Ministro da Justiça do Brasil em agosto de 2014 (www.iri.usp.br). Recentemente houve aprovação no âmbito do Congresso Nacional de texto que contempla tais objetivos.


Sem título-1

José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


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