RECURSO CABÍVEL CONTRA A DECISÃO QUE DETERMINA A EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO REQUISITÓRIO OU REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR: UMA CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE  

24/05/2020

 

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

O tema a ser enfrentado neste ensaio refere-se à análise do recurso cabível contra o pronunciamento judicial que, em 1ª Instância, determina a expedição de Precatório Requisitório (PR) ou Requisição de Pequeno Valor (RPV), nas demandas movidas em desfavor dos Entes Públicos.

As perguntas centrais que vêm desafiando a doutrina e a jurisprudência nacionais, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, são as seguintes: a) qual a natureza jurídica desta decisão e o recurso cabível? b) é possível aplicar a fungibilidade entre a Apelação e o Agravo de Instrumento?

O ponto de partida para contribuir com o debate e tentar encontrar uma resposta no mínimo razoável para estas indagações, parte da análise e interpretação do disposto no art. 203, do CPC.

No caso, o legislador consagra que sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz encerra a fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução. Por outro lado, decisão interlocutória é qualquer pronunciamento decisório que não se enquadre no conceito de sentença.

Como consequência, é admissível a existência de vários pronunciamentos de idêntica natureza, no mesmo processo. Em algumas demandas, são cabíveis várias decisões interlocutórias (processuais e de mérito), sentenças em fase de conhecimento, de liquidação do título (em alguns casos)[i], na impugnação ao cumprimento de sentença (quando acolhida para extinguir o processo[ii]), na extinção do cumprimento ou execução autônoma, nas hipóteses previstas nos arts. 924 e 925, do CPC, nas diversas situações envolvendo a ação de exigir contas[iii], etc.

De outro prisma, o legislador deixa clara a possibilidade de, no curso da mesma relação processual, ocorrer decisão com caráter definitivo parcial (como no caso do julgamento antecipado parcial, exclusão de um litisconsorte, resolução da reconvenção, etc), sendo conceituada como interlocutória e estando sujeita ao recurso de agravo de instrumento (arts. 1015, II, VII e 343, §2º, do CPC), bem como de mais de uma sentença, na mesma relação processual, em momentos diferentes (v.g., conhecimento, liquidação, impugnação e cumprimento).

No tema, vale citar o Enunciado 103, do Fórum Permanente de Processualistas Civis: A decisão parcial proferida no curso do processo com fundamento no art. 487, I, sujeita-se a recurso de agravo de instrumento”.

E quais seriam os reflexos desta multiplicidade de pronunciamentos judiciais? Penso que será possível, reafirmando posicionamentos anteriores[iv], a formação progressiva da coisa julgada e a possibilidade de cumprimento definitivo e provisório de partes do mérito resolvidas e imunizadas em momentos diferenciados.

Como consequência, na formação do título executivo judicial (art. 515, especialmente o inciso I, do CPC), a natureza do provimento jurisdicional é menos importante do que a consequência processual dele decorrente, razão pela qual pouco importa se no caso concreto foi proferida sentença ou decisão interlocutória: possuindo conteúdo meritório e cognição suficiente para a formação de coisa julgada, é possível o cumprimento definitivo de obrigação nela contida. Assim, em que pese a parte Especial, Livro I, Título II, do CPC/15, mencionar cumprimento de sentença, é dever afirmar que as disposições lá contidas são cabíveis também para as decisões interlocutórias (cumprimento provisório ou definitivo).

Aliás, o sistema processual admite a formação prematura de título executivo judicial parcial em decorrência de conduta da própria parte, que deixou, por exemplo, de interpor agravo de instrumento contra a decisão interlocutória de mérito ou apresentou recurso parcial diante de uma sentença em capítulos (arts. 1015, II, 1008 e 1013, §1º, do CPC).

Nestes casos, os capítulos não impugnados podem, desde já e dependendo do caso concreto, ensejar cumprimento definitivo, mesmo inexistindo efetivamente o trânsito em julgado total da sentença[v]

Em suma: há a possibilidade de fracionamento dos capítulos de mérito e dos momentos de formação da coisa julgada, o que irá gerar como consequência a formação do sistema de cumprimento também em momentos processuais diferentes.

Esta conclusão dialoga com o tema central do presente ensaio. A partir de agora, as respostas às indagações anteriormente apresentadas dependerão do enfrentamento de duas situações concretas: a) cumprimento envolvendo demanda com apenas um pedido de natureza pecuniária contra a Fazenda Pública; b) cumprimento de parte do objeto litigioso que está em momento procedimental diferente.

A primeira hipótese é mais comum no dia-a-dia forense. O Superior Tribunal de Justiça tem alguns julgados indicando que o pronunciamento que determina a expedição de RVP ou PR está sujeito ao manejo de agravo de instrumento.

Nesse sentido, com algumas variações das situações jurídicas concretas, vale a leitura: REsp 1.855.060/PA, 1ª T, Rel. Min.  Regina Helena Costa, DJe: 5/2/2020; REsp 1.810.830/PA, 1ª T, Rel. Min. Benedito Gonçalves; Edcl no REsp 1.639.523/CE, 1ª T. Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe: 4/4/2019.

Contudo, entendo necessário, para continuar o debate, separar a decisão que homologa cálculo de liquidação (ou memorial de cálculo apresentado pelo autor) e prossegue no cumprimento de sentença, daquela que, sem homologar ou além disso, extingue o procedimento executório (cumprimento de sentença) e determina a expedição de RPV ou PR.

No primeiro caso, não resta dúvida que se trata de pronunciamento interlocutório passível de Agravo de Instrumento, exatamente pelo fato de que não encerra o procedimento executivo. Contudo, no segundo caso, se encerrar o feito, se trata de sentença – aliás nova sentença, desta feita para finalizar o processo (relação processual) executivo, nos termos da leitura conjunta dos arts. 203, §1º e 925, do CPC.

Como já mancionado, não há qualquer impedimento conceitual em relação à possibilidade de existência de dois pronunciamentos da mesma natureza em um único processo:  aqueles que finalizam as fases de conhecimento e de cumprimento são, portanto, sentenças, cada um com seu móvel bem especificado e diferenciado.

Neste contexto, entendo que deve ser feita análise da aplicação do Enunciado 118, da Jurisprudência Predominante do STJ[vi], de acordo com o caso concreto e fazendo o necessário cotejo com os conceitos consagrados pelo legislador processual de 2015.

Aliás, a C. 2ª Turma do STJ (REsp 1855034/PA – Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª T – J. em 03/03/2020 - DJe 18/05/2020), em recente decisão, consagrou que o recurso cabível contra a decisão que determina a expedição de ordem de pagamento é a apelação, inclusive citando outros precedentes de órgãos fracionários, senão vejamos:

PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO QUE DETERMINA A EXPEDIÇÃO DE OFÍCIOS REQUISITÓRIOS E ENCERRA A FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PRONUNCIAMENTO QUE CONSUBSTANCIA SENTENÇA IMPUGNÁVEL POR APELAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. O Tribunal de origem entendeu que a determinação de expedição de ofício requisitório, na modalidade Requisição de Pequeno Valor, consubstancia decisão impugnável por Agravo de Instrumento, caracterizando como erro grosseiro o manejo de Apelação. 2. Não houve ofensa ao art. 1.022, II, do CPC/2015, uma vez que o Tribunal de origem deixou de apreciar a alegação de inconstitucionalidade, que tem natureza meritória, por entender que o recurso aviado não era cabível. 3. A controvérsia se refere a uma decisão, proferida na fase de cumprimento de sentença, por meio da qual o Juízo de primeiro grau ordenou a expedição de Requisição de Pequeno Valor (RPV), sob o entendimento de que seria "de ordem acolher a livre manifestação das partes, haja vista a inexistência de vícios e nulidades, e proceder à competente homologação de valores, encerrando com isso, a presente execução contra a Fazenda Pública" (fl. 267, e-STJ). 4. Se houve homologação dos cálculos, ordem para expedição dos ofícios requisitórios e expresso encerramento da fase de cumprimento de sentença, proferiu-se sentença. O art. 203, § 1º, do CPC/2015, caracteriza essa decisão como o "pronunciamento por meio do qual o juiz [...] põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução". E, se é de sentença que se trata, o recurso cabível é a Apelação (art. 1.009 do CPC//2015). 5. "Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o recurso cabível contra decisão que homologa os cálculos apresentados e determina a expedição de RPV ou precatório, declarando extinta a execução, é o de apelação" (AgInt no REsp 1.783.844/MG, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 26.11.2019). No mesmo sentido: AgInt no REsp 1.760.663/MS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe DJe 23.10.2019; AgInt no REsp 1.593.809/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 12.9.2016. 6. Recurso Especial provido” (grifo nosso)

Logo, ao encerrar a fase de cumprimento, o pronunciamento deve ser conceituado como sentença sendo, portanto, passível de interposição de recurso de apelação.

Por outro lado, conclusão diferente ocorre nos casos de múltiplos pedidos em diferentes estapas procedimentais. Destarte, caso a decisão que determina a expedição de ordem de pagamento envolva apenas um dos pedidos cumulados apresentados em desfavor da fazenda pública, está-se claramente diante de decisão interlocutória, passível de agravo de instrumento (art. 1015, parágrafo único, do CPC).

Aliás, em outro momento, enfrentei a possibilidade de fracionamento decisional nas demandas contra a fazenda pública, onde conclui que:

“Logo, há a necessidade de se ampliar o conceito previsto no art. 100 da CF/88, para permitir a execução de decisão interlocutória definitiva contra a fazenda pública, desde que não tenha sido interposto recurso. Por exemplo, sendo reconhecida a possibilidade de julgamento antecipado parcial do pedido ligado a obrigação de pagar, nada impede que a demanda prossiga contra a fazenda pública em relação ao pedido controvertido, ao mesmo tempo em que se reconheça a possibilidade de execução definitiva do capítulo antecipado, com posterior pagamento por meio de precatório requisitório (art. 100 da CF 88 – com uma ampliação do conceito de sentença condenatória contida no texto constitucional)”[vii].

Caminhando para a parte final do presente ensaio, a natureza jurídica da decisão judicial que determina a expedição de Precatório Requisitório ou Requisição de Pequeno Valor irá variar de acordo com a situação jurídica tratada no caso concreto, podendo ser sentença (extinção da execução), ou interlocutória (prosseguimento do feito em relação a outro capítulo/objeto litigioso não atingido pela mesma).

Aliás, considerando o sincretismo processual entre as fases de conhecimento e cumprimento de sentença, também ocorre a variação conceitual quanto a natureza jurídica do pronunciamento que aprecia a impugnação ao cumprimento de sentença e seu reflexo na contuidade ou não dos atos executórios, a saber: se for acolhida para extinguir o processo, é sentença, se for rejeita ou acolhida parcialmente, é decisão interlocutória passível de agravo de instrumento (art. 1015, parágrafo único, do CPC.

No tema, vale transcrever o item 6 da Ementa do acórdão do STJ no REsp  1.698.344 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão – 4ª T – J. 22.05.2018; DJ de 01.08.2018):

“6. No sistema regido pelo NCPC, o recurso cabível da decisão que acolhe impugnação ao cumprimento de sentença e extingue a execução é a apelação. As decisões que acolherem parcialmente a impugnação ou a ela negarem provimento, por não acarretarem a extinção da fase executiva em andamento, tem natureza jurídica de decisão interlocutória, sendo o agravo de instrumento o recurso adequado ao seu enfrentamento”.

Como conclusão, a variação conceitual dependerá da situação jurídica concreta e da consequência decorrente do pronunciamento que determina a expedição de ordem de pagamento em desfavor da Fazenda Pública, podendo ser sentença (nova sentença – quando extingue a execução) ou interlocutória (com a continuidade do procedimento em relação a um dos pedidos ainda pendentes de apreciação/satisfação).

Estas são as minhas contribuições para este importante debate.

 

Notas e Referências

[i] É controvertida a natureza jurídica da decisão em liquidação de sentença, sendo conceituda como sentença ou mesmo interlocutória, com uma série de situações variáveis que não são objeto da presente reflexão. No Superior Tribunal de Justiça, indico a leitura das seguintes decisões: REsp 954.204/BA, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª T, DJe 6/8/2009; AgInt no AREsp 1452516 / PB – Rel. Min. Benedito Gonçalves – 1ª T  - DJe 12/02/2020. Sobre liquidação zero e honorários advocatícios: REsp 1798937 / SP – Rel. Min. Nancy Andrigh – 3ª T – J. em 13/08/2019 – DJe  15/08/2019.

[ii] Vale transcrever o item 4 da Ementa do AgInt no AREsp 1453448 / STJ: “4. A jurisprudência do STJ é uníssona ao afirmar que a decisão que resolve Impugnação ao Cumprimento de Sentença e extingue a execução deve ser atacada através de Apelação, enquanto aquela que julga o mesmo incidente, sem extinguir a fase executiva, deve ser atacada por meio de Agravo de Instrumento. É firme, também, o entendimento de que, em ambas as hipóteses, não se emprega o princípio da fungibilidade recursal. Precedentes: AgRg no AREsp 538.442/RJ, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 23/2/2016; AgInt no AREsp 1.312.508/ES, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 10/10/2018; AgInt no AREsp 342.728/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 18/5/2017. Em casos idênticos ao dos autos, as seguintes decisões monocráticas: AREsp 1.450.661/SP, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 16.4.2019 e AREsp 1.484.834/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 1º.7.2019” (AgInt no AREsp 1453448 / SP – Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª T – J. em 15/08/2019 – DJe  11/10/2019).

[iii] Já tive a oportunidade de enfrentar algumas variáveis conceituais nesta ação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-out-20/jose-mouta-acerto-stj-decisoes-acao-exigir-contas. Acesso em 21.05.20.

[iv] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba: Juruá, 2007, além do ensaio intitulado O cumprimento de sentença e a 3ª etapa da reforma processual – primeiras impressões. Revista de Processo, São Paulo : RT, n. 123, pp. 156-158

[v] No mesmo sentido, observa Nery Júnior que: “entendemos ser possível a execução definitiva da parte da sentença já transitada em julgado, em se tratando de recurso parcial, desde que observadas certas condições: a) cindibilidade dos capítulos da decisão; b) autonomia entre a parte da decisão que se pretende executar e a parte objeto de impugnação; c) existência de litisconsórcio não unitário ou diversidade de interesses entre os litisconsortes, quando se tratar de recurso interposto por apenas um deles”. NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 454.

[vi] Este enunciado, aliás, é anterior ao CPC/15 e tem a seguinte redação: “O agravo de instrumento é o recurso cabível da decisão que homologa a atualização do cálculo da liquidação”. Corte Especial do STJ – 27.10.1994.

[vii] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Notas sobre o cumprimento das decisões judiciais contra a Fazenda Pública no Novo CPC: aspectos polêmicos. Em Advocacia Pública. ARAÚJO, José Henrique Mouta; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 170.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de:Becky Mayhew // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/picture_imperfect/2921579484

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura