RECURSO CABÍVEL CONTRA A DECISÃO QUE ACOLHE PARCIALMENTE A IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA: COMENTÁRIOS AO RECENTE RESP 1.947.309/STJ

03/12/2023

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

O tema a ser enfrentado neste breve ensaio refere-se à análise do recurso cabível contra o pronunciamento judicial que, na fase de cumprimento de sentença, acolhe parcialmente a impugnação e gera o desmembramento do objeto litigioso.

As perguntas centrais que vêm desafiando a doutrina e a jurisprudência nacionais, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, são as seguintes: a) qual a natureza jurídica da decisão que aprecia a impugnação ao cumprimento de sentença e o recurso cabível? b) é possível aplicar a fungibilidade entre a Apelação e o Agravo de Instrumento nos casos concretos?

O ponto de partida para contribuir com o debate e tentar encontrar uma resposta razoável para estas indagações, parte da análise e interpretação do disposto no art. 203, do CPC.

No caso, o legislador consagra que sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz encerra a fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução. Por outro lado, decisão interlocutória é qualquer pronunciamento decisório que não se enquadre no conceito de sentença.

Como consequência, é admissível a existência de vários pronunciamentos de idêntica natureza, no mesmo processo. Em algumas situações, são cabíveis várias decisões interlocutórias (processuais e de mérito), sentenças em fase de conhecimento, de liquidação do título (em alguns casos)[1], na impugnação ao cumprimento de sentença (quando acolhida para extinguir o processo), na extinção do cumprimento ou execução autônoma (arts. 924 e 925, do CPC), nas diversas situações envolvendo a ação de exigir contas[2], etc.

Dito de outra forma, o legislador deixa clara a possibilidade de, no curso da mesma relação processual, ocorrer decisão com caráter definitivo parcial (como no caso do julgamento antecipado parcial, exclusão de um litisconsorte, resolução da reconvenção, etc), sendo conceituada como interlocutória e estando sujeita ao recurso de agravo de instrumento (arts. 1015, II, VII e 343, §2º, do CPC), bem como de diversas sentenças, proferidas em momentos diferentes (v.g., conhecimento, liquidação, impugnação acolhida e extinção do cumprimento de sentença).

No tema, vale citar o Enunciado 103, do Fórum Permanente de Processualistas Civis: A decisão parcial proferida no curso do processo com fundamento no art. 487, I, sujeita-se a recurso de agravo de instrumento”.

E quais seriam os reflexos desta multiplicidade de pronunciamentos judiciais? Penso que é possível, reafirmando posicionamentos anteriores[3], a formação progressiva da coisa julgada, a possibilidade de cumprimento definitivo e provisório de partes do mérito resolvidas e imunizadas em momentos diferenciados, além do desmembramento do processo em múltiplas etapas (parte em recurso, outra em fase, de conhecimento, de cumprimento. etc).

Em suma: o conceito de processo por vezes gera uma reflexão coletiva, que pode variar de acordo com a cumulação subjetiva e objetiva, com possibilidade de seu desmembramento e existência de múltiplas etapas simultâneas ou sucessivas na mesma relação jurídica processual.

Este raciocínio, como já indicado, se faz presente no cumprimento de sentença. Não resta dúvida que, em caso de acolhimento total da impugnação e a extinção da execução, a natureza jurídica da decisão é sentença (nova sentença, posterior à da fase de conhecimento) e o recurso cabível é a apelação; contudo, solução diversa ocorre em caso de acolhimento parcial e prosseguimento do cumprimento em relação ao objeto não atingido pelo pronunciamento judicial[4].

É possível afirmar, portanto, que o resultado da apreciação da impugnação ao cumprimento de sentença, dependerá da consequência relacionada à continuidade (ou não) do andamento do feito junto ao juízo de origem.

Em decisão recentíssima (REsp 1.947.309 - Rel. Min. Francisco Falcão – J. em 07/02/2023 – Dje 10/02/2023), a 2ª Turma ratificou posicionamentos anteriores  da Corte, asseverando que:

“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que, sob a égide do Novo Código de Processo Civil, a apelação é o recurso cabível contra decisão que acolhe impugnação do cumprimento de sentença e extingue a execução. Ainda, o agravo de instrumento é o recurso cabível contra as decisões que acolhem parcialmente a impugnação ou lhe negam provimento, por não acarretarem a extinção da fase executiva em andamento, portanto, com natureza jurídica de decisão interlocutória. A inobservância desta sistemática caracteriza erro grosseiro, vedada a aplicação do princípio da fungibilidade recursal, cabível apenas na hipótese de dúvida objetiva” 

Portanto, é possível a existência de múltiplas fases, recursos e instâncias no mesmo processo, eis que: a) em caso de acolhimento da impugnação para a extinção da execução, o recurso cabível é apelação com a possibilidade de inauguração da instância recursal (arts 203, §1º, 925 e 1009, do CPC); b) em caso de acolhimento parcial (v.g. para a decretação da inexibilidade parcial do(s) título(s) executivo (s), de excesso de execução[5], ilegitimidade passiva de um dos executados, etc), há o prosseguimento do cumprimento no que respeita ao capítulo não atingido pela decisão, simultaneamente à possibilidade de provocação da instância recursal mediante agravo de instrumento (art. 1.015 parágrafo único, do CPC).

Uma pergunta comum na prática forense pode provocar difícil resposta. Imagine, no caso do item b, a seguinte indagação: em que fase está o processo? A resposta jurídica relativamente comum e informal nos parece adequada: depende, parte dele está na fase de cumprimento e outra no ambiente recursal do agravo de instrumento.

Aliás, considerando essa possibilidade de multiplicidade de fases procedimentais com recursos distintos a depender da natureza do pronunciamento judicial, não é possível a aplicação da fungibilidade recursal. Trata-se de erro grosseiro a interposição do recurso equivocado diante da realidade concreta (como também restou claro no recente REsp 1.947.309 – 2ª T. Rel. Min. Francisco Falcão – J. em 07/02/2023 – Dje 10/02/2023).

Este raciocínio ligado ao desmembramento do processo executivo pode também ocorrer em relação às decisões que determinam a expedição de Precatório Requisitório ou Requisição de Pequeno Valor, em demandas promovidas em face da Fazenda Pública.  Destarte, caso a determinação de expedição de ordem de pagamento envolva apenas um dos pedidos cumulados apresentados, a natureza jurídica é de decisão interlocutória, passível de agravo de instrumento (art. 1015, parágrafo único, do CPC).

Aliás, em outro momento, enfrentei a possibilidade de fracionamento decisional nas demandas contra a fazenda pública, concluindo que:

“Logo, há a necessidade de se ampliar o conceito previsto no art. 100 da CF/88, para permitir a execução de decisão interlocutória definitiva contra a fazenda pública, desde que não tenha sido interposto recurso. Por exemplo, sendo reconhecida a possibilidade de julgamento antecipado parcial do pedido ligado a obrigação de pagar, nada impede que a demanda prossiga contra a fazenda pública em relação ao pedido controvertido, ao mesmo tempo em que se reconheça a possibilidade de execução definitiva do capítulo antecipado, com posterior pagamento por meio de precatório requisitório (art. 100 da CF 88 – com uma ampliação do conceito de sentença condenatória contida no texto constitucional)”[6].

Portanto, seguindo o mesmo raciocínio ligado à impugnação ao cumprimento de sentença, a natureza jurídica da decisão que determina a expedição de Precatório Requisitório ou Requisição de Pequeno Valor irá variar de acordo com o caso concreto, podendo ser sentença (extinção da execução – art. 925, do CPC), ou interlocutória (prosseguimento do feito em relação a outro capítulo não atingido pela ordem judicial).

Quanto ao tema, importante transcrever o posicionamento da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (AgInt no AREsp 2.074.532/PA – Rel. Min. Mauro Campbell Marques – J. em 29.08.2022 – DJ 05.09.2022):

“PROCESSUAL CIVIL. O RECURSO CORRETO CONTRA A DECISÃO QUE HOMOLOGA CÁLCULO E DETERMINA A EXPEDIÇÃO DE RPV É A APELAÇÃO. 1. Entende esta Corte Superior que "o recurso cabível contra a decisão que homologa os cálculos e determina a expedição de requisição de pequeno valor ou precatório, declarando extinta a execução, é o de apelação" (REsp n. 1.902.533/PA, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 18/5/2021, DJe de 24/5/2021).2. Agravo interno provido”. 

Um derradeiro exemplo de descumulação objetiva, com possibilidade de desmembramento do objeto litigioso e das etapas do processo pode ocorrer no âmbito da ação monitória. Em caso de indeferimento parcial da inicial, o recurso cabível é o agravo de instrumento, permitindo a expedição do mandado monitório (art. 701, do CPC) e o prosseguimento do feito, inclusive com a eventual e futura formação do título executivo, em relação ao capítulo não atingido.

No REsp. 1.837.301 (Rel. Min. Moura Ribeiro – J. em 18.02.2020 – DJe 20.02.2020), a 3ª Turma do STJ concluiu que: “Descumprida a determinação de emenda a inicial com relação a apresentação do original de uma das cártulas que embasou a monitória, não é juridicamente possível se falar em extinção total da demanda”.

Como conclusão, a variação conceitual dependerá da situação jurídica concreta e da consequência do pronunciamento judicial em relação ao prosseguimento e desmembramento do feito, podendo ser sentença (quando extingue a execução no acolhimento da impugnação, determina a expedição de precatório requisitório ou indefere a inicial da ação monitória) ou interlocutória (com a continuidade do procedimento em relação a um ou mais pedidos ainda pendentes de apreciação e não atingidos pelo ato decisório).

 

Notas e referências

[1] É controvertida a natureza jurídica da decisão em liquidação de sentença, sendo conceituada como sentença ou mesmo interlocutória, com uma série de situações variáveis que não são objeto da presente reflexão. No Superior Tribunal de Justiça, indico a leitura das seguintes decisões: REsp 954.204/BA, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª T, DJe 6/8/2009; AgInt no AREsp 1452516 / PB – Rel. Min. Benedito Gonçalves – 1ª T  - DJe 12/02/2020. Sobre liquidação zero e honorários advocatícios: REsp 1798937 / SP – Rel. Min. Nancy Andrigh – 3ª T – J. em 13/08/2019 – DJe  15/08/2019.

[2] Já tive a oportunidade de enfrentar algumas variáveis conceituais nesta ação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-out-20/jose-mouta-acerto-stj-decisoes-acao-exigir-contas. Acesso em 30.11.23.

[3] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba: Juruá, 2007, além do ensaio intitulado O cumprimento de sentença e a 3ª etapa da reforma processual – primeiras impressões. Revista de Processo, São Paulo : RT, n. 123, pp. 156-158

[4] Vale transcrever o item 4 da Ementa do AgInt no AREsp 1453448 / STJ: “4. A jurisprudência do STJ é uníssona ao afirmar que a decisão que resolve Impugnação ao Cumprimento de Sentença e extingue a execução deve ser atacada através de Apelação, enquanto aquela que julga o mesmo incidente, sem extinguir a fase executiva, deve ser atacada por meio de Agravo de Instrumento. É firme, também, o entendimento de que, em ambas as hipóteses, não se emprega o princípio da fungibilidade recursal. Precedentes: AgRg no AREsp 538.442/RJ, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 23/2/2016; AgInt no AREsp 1.312.508/ES, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 10/10/2018; AgInt no AREsp 342.728/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 18/5/2017. Em casos idênticos ao dos autos, as seguintes decisões monocráticas: AREsp 1.450.661/SP, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 16.4.2019 e AREsp 1.484.834/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 1º.7.2019” (AgInt no AREsp 1453448 / SP – Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª T – J. em 15/08/2019 – DJe  11/10/2019). Mais recente: AgInt no REsp 1460712/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho – 1ª T – J. em 09/03/2020, DJe 11/03/2020.

[5] “A jurisprudência consolidada nesta Corte Superior de Justiça assentou compreensão segundo a qual o recurso cabível contra decisão em impugnação ao cumprimento de sentença é o de agravo de instrumento, sendo cabível o recurso de apelação apenas no caso em que haja extinção da execução, o que não é a hipótese dos autos, pois houve apenas o acolhimento parcial do incidente para reconhecer o excesso na execução” (AgInt no AREsp 711036 / RJ – 1ª T  - Rel. Min. Benedito Gonçalves – J. em 21/08/2018 - DJe 29/08/2018).

[6] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Notas sobre o cumprimento das decisões judiciais contra a Fazenda Pública no Novo CPC: aspectos polêmicos. Em Advocacia Pública. ARAÚJO, José Henrique Mouta; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 170.

 

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