Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Esse breve artigo tem como objetivo contextualizar o Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e o livro “Torto Arado”, os analisando sob a ótica do Direito da Criança e do Adolescente, bem como apontar semelhanças entre aspectos estruturais que conectam a literatura com a realidade do caso.
O sistema global de proteção aos direitos humanos, por meio da assembleia da ONU, trata sobre o tema por meio da Convenção sobre os Direitos das Crianças (BRASIL, 1990), que estabelece, entre outros, a vedação da exploração econômica da criança e a regulação da idade mínima para o trabalho (Artigo 32).
De acordo com a citada Convenção, criança é todo o ser humano com idade inferior a dezoito, diferentemente do ordenamento jurídico brasileiro, no qual é feita a distinção entre criança e adolescente com base no critério etário.
Diferentemente, o sistema interamericano não possui convenção específica sobre o tema, por mais que proteja os direitos das crianças em outras normativas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é a instituição judicial desse sistema, que possui como objetivo a aplicação e interpretação dos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos e demais normativas.
Em 2016, o Brasil sofreu sua primeira condenação na jurisdição contenciosa da Corte Interamericana relativa a acusações de trabalho escravo (PAIVA, HEEMAN, 2020). Trata-se do assim chamado “Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde” (CIDH, 2016).
No estado do Pará, em 1988, foram feitas denúncias de trabalho escravo contra a Fazenda Brasil Verde, no qual trabalhadores teriam seus direitos trabalhistas violados, sem condições adequadas para o exercício da atividade, tampouco pagamento digno.
O público afetado não se restringia somente a adultos, mas também a jovens entre 15 e 18 anos. Foi o caso, por exemplo, dos adolescentes Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, que foram levados para trabalhar na fazenda e, após tentar empreender fuga, não foram mais vistos.
Os jovens teriam sido levados para trabalhar na fazenda por cerca de 60 dias, para proverem seu sustento, mas a situação não ocorreu como planejado. De acordo com a denúncia feita à Polícia Federal, foram ameaçados a continuar trabalhando na fazenda, sendo impedidos de fugir e, após esse conflito, teriam desaparecido.
Entretanto, passados alguns anos, as investigações feitas pela Polícia Federal foram consideradas insuficientes por certos grupos, sendo a instituição acusada de faltar com a devida diligência na procura dos adolescentes e demais trabalhadores.
Em novembro de 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi acionada por meio de petição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL). De acordo com os grupos, houve omissão e negligência por parte do Estado brasileiro na apuração dos fatos relativos à prática de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde.
No Relatório de Admissibilidade e Mérito nº 169/11 feito pelo órgão, foi reconhecida a violação de vários dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, como o direito ao trabalho e a justa retribuição, direito da criança, direito à justiça, direito à infância, entre outros.
A Comissão emitiu algumas recomendações (já que não possui caráter vinculante), como investigar os fatos relacionados ao desaparecimento dos adolescentes de forma imparcial e eficaz; responsabilizar os agentes públicos que contribuíram para a impunidade e a denegação da justiça; a implementação de políticas públicas voltadas para a erradicação do trabalho escravo, entre outras.
Nessa linha, a Comissão submeteu o caso à jurisdição da Corte Interamericana para que fosse declarada a responsabilidade internacional do Brasil pela violação de diversos direitos humanos. A partir desse momento, a jurisdição é contenciosa: o Estado Brasileiro foi notificado para apresentar sua defesa. Após contestação, exceções preliminares, audiência pública, amicus curiae, diligências e demais ocorrências processuais, a corte deliberou a sentença no final do ano de 2016, quase trinta anos depois da ocorrência dos fatos.
Importante considerar que o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana em 1998, dez anos após os fatos. Especificamente quanto aos adolescentes, portanto, a Corte considerou que não tinha competência para analisar as violações de direitos humanos ocorridas anteriormente à aceitação de sua competência. Entretanto, em conformidade com a sua jurisprudência, considerou que o desaparecimento forçado é circunstância permanente, de modo que a Corte é competente para analisar eventual falha nas investigações até que os fatos sejam razoavelmente esclarecidos.
Em outras palavras, a Corte analisou somente as violações em relação ao desaparecimento forçado dos adolescentes. No ponto, após a análise das provas, a Corte concluiu que Luis e Iron não foram vítimas de desaparecimento forçado, tendo ambos mostrado registros de vida posteriormente aos fatos, longe da fazenda.
Por fim, para a Corte: “o Estado não é responsável pelas alegadas violações aos direitos à personalidade jurídica, à vida, à integridade e à liberdade pessoal, contemplados nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos direitos da criança, estabelecidos no artigo 19 do mesmo instrumento, em prejuízo de Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, nem da violação dos artigos 8 e 25 do mesmo instrumento em prejuízo de seus familiares”.
Mesmo assim, aos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde que foram resgatados no ano de 2000, a Corte declarou, por unanimidade, a responsabilidade do Estado Brasileiro na violação do direito de não ser submetido a escravidão e ao tráfico de pessoas, disposto no artigo 6.1 da Convenção Americana.
Resumindo, por questões procedimentais, a Corte não analisou o mérito das violações dos direitos dos adolescentes, somente dos demais trabalhadores em situação análoga à escravidão resgatados posteriormente à aceitação da competência da Corte Interamericana pelo Estado Brasileiro. Quanto ao suposto desaparecimento forçado dos adolescentes, no mérito, a Corte decidiu que não havia elementos para a responsabilização.
Enfim, o Direito da Criança e do Adolescente no Brasil é lastreado no princípio da proteção integral, com fundamento no dever de cuidado e nos direitos fundamentais à vida, à saúde, à proteção contra exploração, entre outros (Ribeiro; Veronese, 2021).
O problema surge quando os mandamentos constitucionais – e inclusive internacionais – não conseguem se traduzir na realidade material, tampouco prevenir ou remediar violações. O caso em tela é um exemplo, dois adolescentes foram submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão porque precisavam procurar trabalho para garantir seu sustento.
Assim, primeiro houve uma falha estatal em garantir direitos básicos aos adolescentes, de modo que não precisassem procurar trabalho para assegurar a satisfação de suas necessidades básicas. Em um segundo momento, o Estado Brasileiro não teve sucesso em investigar, prevenir ou remediar a situação, seja por meio dos seus aparatos repressivos, como a polícia, ou por meio de políticas públicas voltadas ao combate ao trabalho infantil.
De qualquer modo, situações como essa envolvem inúmeros fatores, como distribuição de terras, raça, classe.
O livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior, trata sobre uma temática parecida. A história se passa no sertão nordestino, em sua maioria na fazenda “Água Negra”, onde a família das protagonistas trabalhava. Lá, eles não recebiam salário, não poderiam construir casas de tijolos para não parecer que iriam fixar morada definitiva, e viviam em miséria.
As condições nas quais os personagens literários se encontravam não era tão gravosa quanto a dos adolescentes do caso em tela, mostrando um dos casos em que a realidade é mais assombrosa que a literatura. A obra, entretanto, aborda alguns temas realistas e atuais, como racismo estrutural e histórico, exploração, sofrimento, descaso estatal e luta por justiça (Corsini, 2021).
As protagonistas, Bibiana e Belonísia, narram, cada uma de sua perspectiva, em primeira pessoa os dois primeiros capítulos do livro. No começo do livro já é possível observar a relação da família com o trabalho:
Eu e Belonísia éramos as mais próximas e, talvez por isso, as que mais se desentendiam. Tínhamos quase a mesma idade. Andávamos juntas pelo terreiro da casa, colhendo flores e barro, catando pedras de diversos formatos para construir nosso fogão, galhos para fazer nosso jirau e nossos instrumentos de trabalho para arar nossas roças de brinquedo, para repetir os gestos que nossos pais e nossos ancestrais nos haviam legado. (Vieira Júnior, 2019, p. 14)
Aqui, o trabalho aparece, nas palavras de Bibiana, como um legado. Algo que foi deixado pelos ancestrais para as futuras gerações da família, representando um senso de unidade entre a família. Essa passagem se torna mais simbólica quando se percebe que as personagens são descendentes de pessoas escravizadas, e sua família continua a viver de forma parecida, agora sendo explorada ao vender sua força de trabalho por um pagamento irrisório em uma fazenda, sem poder construir, receber os frutos do seu trabalho, ou viver em condições de dignidade (Oliveira, 2021; Vieira Júnior, 2019).
Em outra passagem, é possível extrair um conflito de classe e uma relação com o direito:
O gerente queria trazer gente que “trabalhe muito” e “que não tenha medo de trabalho”, nas palavras de meu pai, “para dar seu suor na plantação”. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. (Vieira Júnior, 2019, p. 28)
Primeiro, em uma perspectiva de classe, vemos como o fazendeiro, com propriedade e recursos financeiros, somente continua a expandir seu poderio por meio do trabalho de terceiros. No caso, o enriquecimento não advinha do trabalho próprio, uma vez que o fazendeiro recrutava mais pessoas para trabalharem na plantação, mas estas pessoas não recebiam um provento digno ou compatível com o esforço empreendido.
Ademais, sob uma ótica jurídica, faz sentido a razão de o fazendeiro não permitir construções duradouras por parte dos trabalhadores: para dificultar o pleito por propriedade, ou até pelos proventos justos do seu trabalho. Apagando a existência e a memória dos trabalhadores, torna-se mais difícil para que os trabalhadores exigissem seus direitos em juízo, por falta de provas. Mas, na verdade, o acesso ao judiciário tem outras barreiras, como o próprio conhecimento desse direito por parte dos trabalhadores.
Ela tentava reparar seu ímpeto de correção oferecendo a Belonísia uma caneca de mingau antes de qualquer um de nós, ou deixando para ela os trabalhos domésticos menos fatigantes, como lavar a louça no jirau, enquanto para mim destinava o carregamento de baldes de água do poço ou do rio” (Vieira Júnior, 2019, p. 14)
[...]
Nos muníamos de galhos, pedras, tudo que fosse instrumento para espantar os pássaros, miudinhos, de penas negras e que brilhavam quase azuis na luz da manhã. Se não fôssemos rápidos o suficiente, seu bico entrava no grão que amadurecia e sugava tudo que estivesse dentro, com sua minúscula língua. Enquanto os adultos trabalhavam, cabia a nós, as crianças, espantar a praga. Os meninos chegavam com estilingues, por vezes abatiam a ave pequena (Vieira Júnior, 2019, p. 29)
Nessas passagens pode-se perceber que as personagens sequer percebiam que trabalhavam, afinal, o cuidado com a plantação, ao espantar os pássaros, e o trabalho doméstico, também são formas de trabalho. Certo que são menos cruéis que outras espécies de trabalho, como o de seus pais, ou os dos adolescentes do caso da Fazenda Brasil Verde, mas demonstra como as crianças estavam sendo utilizadas para o trabalho sem que pudessem perceber.
Pode-se apontar uma semelhança que parece óbvia entre o caso julgado pela corte interamericana e o livro best seller: a estrutura social. Em ambos os casos, na realidade e na literatura, o direito é preterido perante a situação econômica, política e social das pessoas.
O direito, na esfera do ideal, não se traduziu na materialidade para garantir os direitos das crianças e dos adolescentes de um desenvolvimento sob cuidados, sem necessidade de trabalho para o sustento. Na esfera do material, os aparatos também não foram suficientes para prevenir ou remediar as situações.
A justiça demorou anos, mesmo após recebida a denúncia de trabalhos escravos, para resgatar os trabalhadores do caso da Fazenda Brasil Verde. Em torto arado, sem maiores “spoilers”, várias famílias viveram gerações sem a intervenção estatal.
A imposição econômica feita às classes sociais mais baixas - vender a força de trabalho para o próprio sustento – é uma das razões que sustentam essas práticas: trabalhadores que precisam de dinheiro para sobreviver, aceitam trabalhar em condições precárias, desumanas, e muitas vezes sequer podem sair ou desistir do trabalho.
As violações não se limitam aos adultos, que por vezes precisam colocar seus filhos para trabalhar e garantir renda, gerando situações como essas. A promoção da dignidade humana não pode ser realizada sem uma estrutura fraterna que preze pelo zelo, pelo bem comum, pela justiça (Veronese, 2021).
Notas e referências
BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 20 set. 2023.
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde VS. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf . Acesso em: 23. set. 2023.
CORSINI, Leonora. Torto arado e o encontro com o Brasil profundo. Nova perspect. sist., São Paulo , v. 30, n. 70, p. 114-117, ago. 2021 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 78412021000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2023.
OLIVEIRA, A. L. R. de. Torto arado e suas geografias. ENTRE-LUGAR, [S. l.], v. 12, n. 23, p. 495–498, 2021. DOI: 10.30612/el.v12i23.13933. Disponível em:
https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/entre-lugar/article/view/13933. Acesso em: 23 set. 2023.
PAIVA, Caio; HEEMAN, Thimotie. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. Editora CEI. 3. ed. 2020.
RIBEIRO, Joana; VERONESE, Josiane Rose Petry. Princípios do Direito da Criança e do Adolescente e Guarda Compartilhada: estudos de casos com a Família ampliada ou extensa [recurso eletrônico] / Joana Ribeiro; Josiane Rose Petry Veronese -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
VERONESE, Josiane Rose Petry (Org.) Lições de Direito da Criança e do Adolescente – Vol. 1 [recurso eletrônico. VERONESE, Josiane Rose Petry; ROSSETTO, Geralda Magella de Faria. O mal que causamos e o mal que sofremos: por mais cuidado com a criança. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.
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