(RE)SIGNIFICAÇÃO DA (IN)CAPACIDADE E DA CURATELA NO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA   

29/07/2020

Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira. 

“O foco, agora, não é mais eliminar ou amparar o que está supostamente errado com a pessoa, e sim corrigir o que está errado com a sociedade que as segrega por não ser capaz de derrubar as barreiras impeditivas da plena inclusão social.”1

O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD – Lei n.º 13.146/15, que completa 5 (cinco) anos de sua promulgação, apresentou-se como efetivação dos ditames da Carta de Nova Iorque, como é conhecida a Convenção sobre os Direitos Humanos da Pessoas com Deficiência da ONU, que foi incorporada ao direito brasileiro com status de norma constitucional, eis que aprovada nos termos do art. 5º, §3º da Constituição da República de 1988, pelo Decreto n.º 6.949/09.

Parece-me que a grande alteração trazida pela lei foi uma ressignificação da própria deficiência, que deixa de adotar o modelo médico, atrelado à doença; e passa a ser concebida no modelo biopsicossocial. Reconhece-se que a deficiência não é algo que a pessoa porta e que pode (e deve) ser retirado2 dela. A deficiência é algo que pessoa é e que, em contato com barreiras presentes na sociedade, impedem com que ela exerça seus direitos em igualdade de condições com as demais (art. 2º do EPD).

E mais, projetou-se a ressignificação do reconhecimento de que as pessoas com deficiência são pessoas de direito3 e, portanto, não podem ter qualquer limitação à consecução deles. Não obstante a interpretação do art. 12 da Convenção, que trata da capacidade legal, ser entendida4, também, como limitada à capacidade de fato ou de exercício.

Na prática social e jurídica, ainda que essas ressignificações já estivessem em nosso ordenamento jurídico com status constitucional desde 2009, direito fundamental portanto; ainda não vejo5 a efetivação da modificação do significado e da visão social da deficiência e nem da efetivação dela como pessoa de direito. Em especial, ainda não verifico, na prática, a compreensão da necessidade de promoção aliada à proteção da pessoa com deficiência.

A mudança de significação acerca da deficiência desloca o epicentro do problema da pessoa para a sociedade. Por essa razão e nesse panorama, o sistema de apoio à pessoa com deficiência deveria ser moldado para garantir e promover, na maior medida do possível, autonomias e vulnerabilidades.

Afinal, o sistema anterior, baseado no modelo médico, aplicava a lógica: doente ou deficiente consequentemente incapaz. Tal incapacidade, é fato, retirava não só a capacidade de exercício, mas, também, a capacidade de direito, ao se admitir a substituição de vontade da pessoa pela de outrem. O sistema processual de reconhecimento da incapacidade é a interdição e a atribuição material da curatela. Diante da incapacidade absoluta, haveria a representação da pessoa curatelada, ou seja, a substituição da sua vontade pela da do curador; e diante da incapacidade relativa, a assistência pelo curador, de forma que a vontade da pessoa não seria exercida autonomamente. A ideia predominante era a de que a pessoa é o problema e o problema deve ser resolvido com a retirada da possibilidade de sua expressão de autonomias.

Contudo, o EPD alterou a teoria das capacidades civis para permitir o exercício pessoal de direitos, em especial, os existenciais, pela pessoa com deficiência. A regra é e sempre foi a capacidade. Assim, a previsão dos arts. 3º e 4º do Código Civil, além do critério etário, que permaneceu inalterado; deixou de prever, hipóteses de incapacidade absoluta em razão da saúde mental e adotou como hipótese de relativa incapacidade a impossibilidade de expressão de vontade (ao lado dos pródigos, dos viciados em tóxicos e dos alcoólatras – três situações que também se vinculam à saúde mental e não necessitariam ser destacadas).

De pronto verificamos que a impossibilidade de expressão de vontade, que pode se dar de forma permanente ou temporária, não se vincula à doença ou à deficiência. Significa, então, que a teoria das capacidades civis, no limite do reconhecimento de eventual incapacidade relativa, não se volta exclusivamente à pessoa com deficiência, abarcando qualquer pessoa que por causa permanente ou transitória não possa exprimir vontade. Trata-se de critério que afasta o modelo médico.

Na verdade, defendemos que não existe a possibilidade de manifestação de vontade, como autodeterminação, sem a comprovação do discernimento e/ou da competência para tal; ou seja, falamos de uma manifestação de vontade advinda da condição de fazer julgamento, escolher, tomar decisões6.

Quando se tratar da aferição de possível incapacidade relativa de uma pessoa com deficiência, a avaliação da impossibilidade de manifestação de vontade deve ser feita, necessariamente, por meio de avaliação multidisciplinar, nos termos do art. 2º do EPD. Não basta, assim, um laudo médico constatando doença ou deficiência. É necessária uma avaliação holística da situação da pessoa e o apontamento para quais atos, pormenorizadamente, ela não tem condições de manifestar sua vontade, nos termos do que prevê o art. 753, §2º do Código de Processo Civil. Não basta, repito, uma manifestação genética de “impossibilidade de manifestação de vontade para os atos da vida civil”.

Nesse sentido, recomenda-se a leitura do voto vencido do relator na Apelação n.º 1.0000.18.064532-7/0017, julgada em 12 de março de 2019, Desembargador Raimundo Messias Júnior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG. O Desembargador, ao reconhecer que o laudo pericial realizado foi genérico, de forma que deveria ser realizada nova avaliação, apontando especificamente os atos para os quais a pessoa curatelanda demandaria de apoio e qual é sua extensão. Contudo, o voto divergente da Relatora para o acórdão, Desembargadora Hilda Teixeira da Costa, que foi o vencedor, compreendeu que o laudo elaborado reconheceu total incapacidade da curatelanda, inclusive para os atos existenciais, de forma que se impõe a curatela total, leia-se: o reconhecimento de incapacidade absoluta e representação para todos os atos da vida civil. Acontece que não foi, de fato, observada a avaliação biopsicossocial por equipe multidisciplinar.

A imprevisão de hipótese de incapacidade absoluta em razão da saúde mental, com a alteração legislativa, em princípio, poderia incutir a ideia de que não seria possível a substituição de vontade, pela representação, método que é possivelmente incompatível com a ressignificação do conceito de pessoa com deficiência e com a revisão da teoria das incapacidades.

Contudo, acreditamos que a sistemática promocional e protetiva das autonomias e vulnerabilidades das pessoas com deficiência não pode, de um lado, de fato emancipá-las ao direito de ter direitos e os exercer na maior medida do possível e, ao mesmo tempo, não garantir a proteção necessária. Se comprovado, por avaliação multidisciplinar e biopsicossocial, que a pessoa, com ou sem deficiência, não é capaz de exprimir sua vontade discernida especificamente para certos atos, sejam eles patrimoniais ou existenciais, será necessária a nomeação de curador que, a depender, irá representá-la ou assisti-la; friso: especificamente quanto àqueles atos.  A curatela é medida excepcional, mas deve ser aplicada quando e na medida do necessário.

Por isso, mantenho a conclusão que trouxe em 2016: “[...] não é a incapacidade absoluta que gera a representação ou a relativa que determina a assistência, mas sim o grau de discernimento aferido nos estudos multidisciplinares da pessoa que podem mostrar que ela não necessita ser representada, mas apenas assistida nos atos da vida civil.”8

Assim, não importa se falamos de incapacidade absoluta ou relativa. Mesmo na última, admitiremos, de acordo com a avaliação específica do caso, hipóteses de representação e/ou de assistência.

De toda sorte, de acordo com a atual sistemática e com as ressignificações trazidas pelo EDP com base na Carta de Nova Iorque, não podemos mais aplicar a curatela e a consequente representação ou assistência como outrora. Se reconhecemos a pessoa com deficiência como nova pessoa de direito, precisamos de novas epistemologias para seus novos direitos.

Assim, a equalização entre promoção e proteção às autonomias e às vulnerabilidades, exige do curador uma nova postura. Sua atuação deve ser ressignificada, não se legitimando em mera substituição de vontade. Exige-se que o curador construa ou reconstrua a vontade da própria pessoa naquilo que especificamente se comprovar em avaliação biopsicossocial e multidisciplinar como exceção à manifestação de vontade discernida.

A (re)significação da (in)capacidade civil e do exercício da curatela se impõe. Percebemos assim, como assinalado na epígrafe, que precisamos nos esforçar para mudar nossas preconcepções e modificar o que está errado com o direito e com a sociedade, de forma a reconhecer a pessoa com deficiência como pessoa detentora de direitos e passível de exercício deles na maior medida do possível: com o reconhecimento de sua capacidade como regra; com o reconhecimento de sua incapacidade como exceção; e com a utilização do apoio da curatela, nos limites realmente necessários e comprovados, em plena inclusão, sem se afastar da proteção.

 

Notas e Referências

1 FARIA, Romário. Parecer n. 266, de 2015. Substitutivo da Câmara dos Deputados n. 4, de 2015, ao Projeto de Lei do Senado n. 6, de 2003 (Projeto de Lei n. 7.699, de 2006, na Câmara dos Deputados), do Senador PAULO PAIM, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei Brasileira da Inclusão. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getDocumento.asp?t=167218>. Acesso em: 24 Jul. 2020.

2 Mesma percepção das vulnerabilidades, que foram tratadas como algo a ser superado; enquanto, na verdade, entendemos ser algo a ser protegido e promovido. Nesse sentido: NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; SOUZA, Iara Antunes de. PESSOA COM DEFICIÊNCIA: O DIREITO AO CASAMENTO A PARTIR DA ABORDAGEM DAS VULNERABILIDADES. In: XXVIII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI BELÉM ? PA, 2019, Belém - PA. Direito de família e das sucessões [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/CESUPA. Florianópolis - sc: CONPEDI, 2019. v. 1. p. 177-194. Disponível em: <http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/048p2018/wh5rju9z/cxGMTg1E3fTbucC8.pdf>. Acesso em: 25 Jul. 2020.

3 “[...] acredita-se que a pessoa com personalidade jurídica deve ser denominada de Pessoa de Direito, que goza de liberdades e não liberdades na esfera jurídica, uma vez que a utilização do vocábulo sujeito2 de Direito não alcança toda a diversidade que a palavra pessoa pode carregar.” LISBOA, Natália de Souza ; SOUZA, IARA ANTUNES DE . AUTONOMIA PRIVADA E COLONIALIDADE DE GÊNERO. In: XXVIII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI BELÉM ? PA, 2019, Belém - PA. Gênero, sexualidades e direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/CESUPA. Florianópolis - SC: Conpedi, 2019. v. 1. p. 7-22. Disponível em: <http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/048p2018/qxo35b07/iUwptRd3eP509O5O.pdf>. Acesso em: 24 Jul. 2020.

4 Nesse sentido: MENEZES, Joyceane Bezerra de. O novo instituto da Tomada de Decisão Apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). In.: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 603-631.

5 Minhas percepções são amparadas em pesquisa quantitativa e qualitativa realizada sob minha orientação e coorientação da então mestranda Priscilla Jordanne Silva Oliveira na iniciação científica da bolsista Luana Maria de Menezes junto à Universidade Federal de Ouro Preto, que se iniciou com o edital PROPP n. 03/2017 – PIP – 2S/UFOP 2017-2018 e teve continuidade com o edital PROPP n. 03/2018 – PIP-2S/UFOP 2018-2019. De forma ampla, a pesquisa objetivou verificar como se deu a aplicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência por todos Tribunais de Justiça brasileiros, quanto às questões polêmicas que o envolvem, em especial, a aferição da (in)capacidade e a questão da representação e da assistência; a permanência da interdição como meio processual no mundo jurídico; e a limitação da curatela às questões patrimoniais, nos 2 (dois) primeiros anos de vigência do EPD – 2017 e 2018.

6 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e Biodireito. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018. p. 108.

7 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0000.18.064532-7/001 – 5041472-25.2016.8.13.0024 (1). Relator Des. Raimundo Messias Júnior. Relatora para o acórdão Des. Hilda Teixeira da Costa. Órgão Julgador: 2ª Câmera Cível. Data de Julgamento: 12 Mar. 2019. Disponível em: <https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/formEspelhoAcordao.do>. Acesso em: 24 Jul. 2020.

8 SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência: curatela e saúde mental. 1. ed. Belo Horizonte: D'Plácido Editora, 2016. p. 376.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura