Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz
O ano de 2013 tornou-se um marco na história do país, assim como no âmbito político, devido as manifestações populares ocorridas no mês de Junho daquele ano. Conhecidas mais tarde como Jornadas de Junho, as manifestações populares tiveram por origem a cidade de São Paulo, através do movimento estudantil, que objetivava a redução da tarifa de transporte público na cidade. Rapidamente as manifestações obtiveram apoio da sociedade civil, ocasionando uma ampliação do movimento em diversas cidades ao redor do país, que contaram com uma massiva presença popular (MELO; VAZ, 2018).
Além da grande adesão social às manifestações, outro elemento tornou-se bastante presente durante os protestos ocorridos em junho de 2013: a violência policial. O Estado reagiu de modo truculento aos protestos e, sob o pretexto de liberar as vias ocupadas pelos manifestantes, assim como dispersar a grande quantidade de pessoas, forças policiais fizeram uso de bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, assim como tiros de balas de borracha (POLÍCIA…, 2013).
O aparelho repressor do Estado se fez presente também no grande número de prisões efetuadas durante os protestos naquele mês. Somente no dia 13 de junho, em São Paulo, foram detidas 241 pessoas durante a manifestação pautada para aquele dia, dentre as quais, 40 foram presas antes do início dos protestos (EM DIA…, 2013).
Karina Yamamoto (2016) observa que não apenas participantes das manifestações foram detidos, inclusive jornalistas que estavam cobrindo os protestos. Alguns dos quais foram revistados e acabaram sendo encaminhados a delegacias pois estavam acompanhados de vinagre, que acabava por diminuir os efeitos nocivos das bombas de gás lacrimogêneo, amplamente utilizadas pela polícia durante os protestos.
Outro material considerado perigoso pelo aparato estatal tratavam-se de duas garrafas de produtos de limpeza, um recipiente identificado como pertencente à marca comumente chamada de “Pinho Minuano” e outro, de água sanitária. Ao contrário do vinagre apreendido junto de manifestantes e jornalistas, nos locais onde foram pautadas as manifestações, os recipientes foram interceptados por policiais lotados na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima, localizada na Rua do Lavrádio, no centro do Rio de Janeiro, na noite de 20 de junho de 2013, a 1,8 km da Avenida Presidente Vargas, onde houve manifestações populares (CORRÊA, 2018).
O portador do material apreendido trata-se de Rafael Braga Vieira, à época de sua prisão com 25 anos, morador de rua, negro e com baixa escolaridade. O rapaz foi preso em flagrante por porte de artefato incendiário, tipo penal inserido na Lei Federal de nº 10.826/2003. O Ministério Público, por sua vez, apresentou denúncia alegando que os produtos adquiridos pela polícia, juntos de Rafael, tratavam-se de bombas caseiras conhecidas como “coquetel molotov”, com base exclusivamente no testemunho dos policiais que efetuaram a sua prisão em flagrante (CORRÊA, 2018; SOUZA, PINHEIRO, 2014).
Após 30 dias do oferecimento da denúncia foi realizado a perícia técnica do material apreendido. Segundo os técnicos responsáveis pela confecção do laudo pericial, os produtos encontrados com Rafael Braga, consistiam em água sanitária e etanol, material inserido na garrafa identificada como “Pinho Minuano”. O laudo também afirmou que os recipientes não poderiam ser utilizados como “coquetéis molotov” pois se tratavam de garrafas plásticas e, para haver a combustão do material incendiário, seria necessário a quebra do invólucro, de modo a ser ínfima a capacidade explosiva do material (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. 32ª VARA CRIMINAL. Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001. 20/06/2013).
No entanto, apesar da conclusão apresentada pelo laudo técnico o magistrado competente, condenou Rafael Braga a 5 anos de reclusão e dez dias-multa pelo porte de artefato explosivo, considerando apenas uma pequena parte do laudo pericial que constatava a presença do etanol, assim como atribuiu ao réu um animus voltado à prática da conduta tipificada pela lei de nº 10.826/2003, apesar de não ser possível encontrar nos autos do processo pelo qual Rafael fora condenado, documentos comprobatórios de que o rapaz tivesse vínculo com partidos políticos ou movimentos sociais, ou até mesmo envolvido com as manifestações populares que ocorreram naquele mês (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. 32ª VARA CRIMINAL. Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001. 20/06/2013).
De acordo com o professor Murilo Corrêa (2018), o caso de Rafael Braga Vieira ilustra uma atuação do Poder Judiciário voltada pela legitimação e validação jurídica de condutas abusivas por parte da polícia. “O Poder Judiciário, não raro, funciona como a instituição responsável por reconverter as práticas policiais de exceção em regra jurídica, homologando-as e as formalizando nos tribunais” (CORRÊA, 2018, p. 216).
Neste sentido, Eugenio Zaffaroni (1991), observa que, apesar de se cobrir de um discurso legal democrático, a estrutura estatal voltada à investigação e punição criminal, denominada pelo autor de sistema penal, atua essencialmente de forma seletiva e arbitrária, voltada a setores sociais vulneráveis, tendo em vista a incapacidade operacional deste sistema em efetivamente punir todos os sujeitos que pratiquem condutas criminosas.
Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todos as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. Fossem concretamente criminalizadas, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes criminalizado (ZAFFARONI, 1991, p. 26).
Então, a atuação seletiva e arbitrária do sistema penal permite que os órgãos executivos estatais exerçam suas atividades fora dos limites legais estipulados, de modo que o controle social efetuado por esses órgãos incorram em violações graves de direitos fundamentais de setores sociais vulneráveis. O Poder Judiciário, por sua vez, não intervém ativamente no exercício arbitrário das agências executivas, o que na prática acaba por tornar legítima as violações de direitos cometidas; enquanto isso, o Poder Legislativo regularmente aumenta as punições e a quantidade de tipos penais, favorecendo ainda mais a atuação discricionária dos órgãos executivos (ZAFFARONI, 1991).
Observando a população carcerária brasileira, pode-se perceber a existência de um perfil populacional que se tornou alvo do sistema penal. De acordo com dados publicados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (BRASIL, 2017), no ano de 2016 o país apresentava o total de 726.712 pessoas privadas de liberdade, dentre os quais, 55% figuravam entre 18 e 29 anos, 64% eram negros e 51% possuíam ensino fundamental incompleto.
O caso de Rafael Braga Vieira ilustra a lógica seletiva das agências punitivas estatais, tendo em vista ser a única pessoa a ser condenada em razão das manifestações populares ocorridas em junho de 2013. Negro, com 25 anos à época de sua prisão e com baixa escolaridade, Rafael corresponde a um setor social marginalizado e, apesar de se encontrar em um ambiente político democrático, é vítima regularmente de violações de direitos por parte do Estado, no exercício de sua atividade punitiva.
A hierarquização social e a consequente existência de setores sociais marginalizados no Brasil pode ser considerada como fruto direto do processo colonial sofrido pelo país. Aníbal Quijano (2005), destaca que as relações sociais mantidas durante o período de dominação colonial europeia na América Latina, foram marcadas especialmente pela diferenciação biológica entre colonizadores e colonizados, o que acarretou, posteriormente, na construção da ideia de raça e nas suas implicações sociais futuras.
A diferenciação biológica exercida pelos povos dominantes tornou-se elementar para o sucesso do processo de dominação de povos não-europeus, pois estes foram inseridos em uma condição de inferioridade, assim como suas produções intelectuais e culturais (QUIJANO, 2005). Para Juliana Streva (2016), a relação de subordinação imposta foi responsável por transformar o indivíduo colonizado em um instrumento de produção, principalmente através da escravidão.
O europeu, no Brasil, em seu processo colonizatório, fez largo uso da força de trabalho compulsória, inicialmente por meio dos povos nativos e, posteriormente, de povos oriundos do continente africano, no intuito de integrar a colônia na agenda econômica vigente nos países europeus (FAUSTO, 1998).
Para a legitimação da atuação do colonizador, a comunidade eclesiástica teve papel fundamental, pois cuidou de construir um imaginário dos povos conquistados, com destaque para os povos africanos, onde a narrativa estava centrada na ideia de que a cor de sua pele demonstrava a negação destes povos ao modo de vida cristão, de modo que a única forma de expurgar uma vida inteira voltada ao pecado era através da sua submissão à escravidão (OLIVEIRA, 2007).
Neste sentido é importante destacar:
No processo de escravização dos africanos e africanas, eles passaram a ser representados como povos sem fé, lei ou rei, descrição esta que os caracteriza a partir da noção de falta, basilar na construção da imagem do negro como inferior em relação ao branco. […] Assim sendo, a imagem construída do corpo negro era negativa: a imagem do não europeu, a do não branco, isto é, a imagem de um selvagem que deve ser civilizado para o “progresso” da nação (STREVA, 2016, p. 27).
Tendo em vista o discurso legitimador da escravidão africana, os cativos foram posicionados nas camadas sociais mais marginalizadas da comunidade colonial, não lhes sendo permitido o exercício de direitos civis básicos como a posse de bens, a capacidade de realizar contratos, assim como figurar como testemunhas em processos judiciais, direitos estes conferidos aos indivíduos não escravizados, permitindo afirmar que os cativos africanos não eram reconhecidos como sujeitos de direitos na sociedade escravocrata colonial brasileira (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006).
A realidade experimentada por essa parcela da população colonial deriva da concepção de ser humano formulada pelos conquistadores europeus, que conferiam para si uma referência universal, se contrapondo ao selvagem, ao primitivo, que não se adequava aos padrões sociais estabelecidos pelos homem europeu, acarretando na hierarquização dos demais povos e a consequente ideia de raça (STREVA, 2016).
O nascimento do iluminismo, no século XVIII, propiciou aos filósofos ocidentais o desenvolvimento do pensamento científico e a análise da diversidade humana por meio da racionalidade. O critério utilizado para a classificação dos tipos humanos foi, em sua essência, biológico, através da cor da pele, separando os humanos em três raças principais: branca, negra e amarela (MUNANGA, 2003).
As características biológicas também eram critérios utilizados pelos cientistas da época na diferenciação dos demais seres vivos, no entanto, quanto à espécie humana, foi elaborada uma hierarquização como resultado de uma relação estabelecida entre os fenótipos e aspectos morais, culturais, intelectuais e psicológicos dos povos conhecidos até então (MUNANGA, 2003).
Sobre o tema destaca-se:
Assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e conseqüentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e conseqüentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação (MUNANGA, 2003, p. 5).
O imaginário radical estabelecido pela comunidade científica permaneceu presente mesmo após a entrada do país nos sistemas políticos e econômicos liberais, perdurando após o processo de independência e abolição da escravidão. Juliana Streva (2016) destaca que os temores das elites brasileiras em haver a possibilidade de um levante da população negra no período pós abolicionista, ensejou a busca por uma narrativa em que as relações de dominação e subordinação de critério étnico deram lugar a uma harmonia entre os diferentes povos presentes na sociedade brasileira, a chamada racial.
Esse discurso foi fundamental para camuflar as desigualdades sociais e raciais presentes no país e a população negra, que era considerada inferior em razão de aspectos culturais, intelectuais e étnicos, passou a ser vista como uma ameaça à segurança nacional e da propriedade privada, fator este que a inseriu em uma profunda marginalização e exclusão sociais, comprometendo a conquista e efetivação de direitos individuais coletivos (STREVA, 2016).
A perspectiva da colonialidade do poder de Quijano (2005) aponta que a estrutura colonial eurocêntrica estabelece o racismo para dar suporte ao sistema colonial escravista, no qual se estrutura toda economia colonial na América Latina. Essa estrutura persiste nos Estados independentes, conservadas pela estrutura burocrática do Estado-Nação e seu Direito. A descolonização das estruturas estatais e jurídicas perpassam pela necessidade de inclusão social e de políticas públicas participativas com as comunidades e grupos sociais vulneráveis e historicamente excluídos. Além disso, o ensino jurídico deve proporcionar abertura para além da formação técnica, com multidisciplinaridade, considerando o pluralismo jurídico e a jusdiversidade, assim como a riqueza da pluralidade étnica e cultural latino-americana.
Notas e Referências
ALBUQUERQUE, Wlamyra R.; FILHO, Walter Fraga. Uma História do Negro no Brasil.
Brasília. Fundação Cultural Palmares, 2006.
MELO, Cristina Teixeira Vieira de; VAZ, Paulo Roberto Givaldi. E a Corrupção Coube em 20 Centavos. Galáxia. n. 39, set-dez., São Paulo, 2018, p. 23-38
POLÍCIA Militar Utiliza Violência. G1. São Paulo, 14 jun. 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/06/policia-militar-utiliza-violencia-para-reprimir-protesto-em-sao-paulo.html>. Acesso em: 20/06/2019.
EM DIA de Maior Pressão. UOL. São Paulo, 14 jun. 2013. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/13/em-dia-de-maiorrepressao-da-pm-ato-em-sp-termina-com-jornalistas-feridos-e-mais-de-60-detidos.html>. Acesso em: 20/06/2019
CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Rafael Braga Vieira: O singular e os universais da polícia. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Vol. 11, n. 2, Rio de Janeiro, 2018, p. 212-234.
YAMAMOTO, Karina Leal. As manifestações de junho de 2013 no Jornal Nacional: uma pesquisa em torno da instância da imagem ao vivo. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudo dos Meios e da Produção Mediática) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
SOUZA, Kelly Ribeiro Felix; PINHEIRO, Laíze Gabriela Benevides. A Seletividade do Sistema Penal Como Instrumento de Controle Social: Uma Análise A Partir do Caso Rafael Braga Vieira In - A Humanização do Direito e a Horizontalização Da Justiça No Século XXI - XXIII Congresso Nacional do Conpedi: João Pessoa, PB, 2014 (ISBN: 978-85-68147-52-8).
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Tradução: Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Revan. Rio de Janeiro. 1991.
BRASIL, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. Atualização – junho de 2016. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2017. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf>. Acesso em: 20/06/2019
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2591382/mod_resource/content/1/
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STREVA, Juliana Moreira. Colonialidade do Ser e Corporalidade: o racismo brasileiro por uma lente descolonial. Revista Antropolítica, n. 40, Niterói, p.20-53, 1. sem. 2016.
FAUSTO, Bóris. História do Brasil. 2ª ed. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo. 1998.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raca, racismo, identidade e etnia. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/wp- content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo- dentidade-eetnia.pdf>. Acesso em: 20/06/2019.
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Igreja e escravidão africana no BrAsil colonial. Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria. v. 10, n.18, pg. 355-387. EDITUS. Ilhéus. 2007.
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