RACISMO ESTRUTURAL: O BRASÍL VIVE O DELÍRIO DA DEMOCRACIA RACIAL

12/09/2023

Nos últimos tempos, o conceito de racismo estrutural emergiu como um importante paradigma de leitura social, desafiando a noção tradicional de que discriminação racial consistia em eventos isolados e evidenciando que o racismo está enraizado nas relações sociais, nas instituições e nas estruturas de poder. Essa mudança de perspectiva revela uma nova dimensão, que não limita o racismo a incidentes isolados, mas, sim, o compreende como um sistema complexo, “normal” e interconectado às regras, práticas e mentalidades que perpetuam as assimetrias raciais. Essa abordagem, longe de ser apenas uma teoria acadêmica, ganhou reconhecimento no campo jurídico brasileiro, consolidando-se como uma realidade jurídica inegável – sobretudo aos profissionais do direito.

Um dos marcos fundamentais que solidificou a compreensão do racismo estrutural como uma realidade jurídica é a ativação da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância no direito brasileiro. Esse Tratado internacional, ratificado com status de emenda constitucional[1], trouxe uma abordagem inovadora para combater o racismo e a discriminação racial, reconhecendo explicitamente a obrigação dos Estados de adotar medidas especiais para proteger os direitos de grupos ou indivíduos que sejam vítimas de discriminação racial em qualquer esfera da sociedade, pública ou privada.

Necessário dizer, desde já, que a Convenção Antirracista é o quarto instrumento internacional de direitos humanos a integrar a ordem jurídica brasileira com "equivalência de emenda constitucional", uma vez que foi aprovada, no dia 19/02/2021, nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, por intermédio do Decreto Legislativo nº 1 de 2021. Assim, há uma porção de conteúdos antirracistas e modernos, que agora compõem o chamado “bloco de constitucionalidade” brasileiro, que condensam potentes normas jurídicas capazes de alterar o ordenamento jurídico interno e, mais que isso, práticas e posturas dos poderes públicos e de agentes particulares. Ao conceber mecanismos arrojado destinados a lutar contra as formas contemporâneas de racismo, a Convenção prevê a obrigação de que os Estados signatários adaptem sua legislação e práticas internas aos direitos que nela foram consagrados, o que constitui uma das garantias mais importantes da compatibilidade existente entre o Estado e as disposições previstas nas normas antidiscriminatórias. Em essência, constitui-se uma ferramenta jurídica apta a melhorar e fortalecer as leis, políticas e práticas do Estado brasileiro voltadas a enfrentar o problema da discriminação racial em sentido amplo e a garantir que os direitos humanos de todas as pessoas e grupos sociais – para tanto, prioriza aqueles em situação de vulnerabilidade e sujeitos à discriminação histórica e sistemática – sejam respeitados, protegidos e promovidos. Por isso, essencial, cogente, urgente e inadiável que se conheça e difunda o seu conteúdo.

Um dos pilares teóricos dessa Convenção, que faz parte do bloco de constitucionalidade do Brasil, é o reconhecimento da existência do racismo estrutural, que abrange não apenas manifestações individuais de preconceito, mas também padrões sistêmicos de desigualdade arraigados nas estruturas sociais, culturais e institucionais. Mais precisamente, o Preâmbulo da Convenção enfatiza a necessidade de enfrentar a discriminação racial em todas as suas manifestações, incluindo as dimensões individuais, estruturais e institucionais. Ao fazê-lo, o Estado brasileiro reconhece que a discriminação racial não é apenas uma questão apenas de eventos isolados praticados por pessoas perversas e desviantes, mas, sim, de sistemas de opressão historicamente estabelecidos, que continuam a inspirar e reger a sociedade e instituições. Logo, não há mais espaço de discricionariedade para o não reconhecimento do racismo estrutural. Nas palavras de Ferrajoli, esse conceito jurídico traduz norma tética na dimensão "nomoestática", de maneira que os agentes públicos não podem negar a existência dessa premissa jurídica[2].

O conceito de discriminação estrutural ou sistêmica compreende o conjunto de normas, regras, rotinas, padrões, atitudes e pautas de comportamento, tanto de direito como de fato, que fomentam ou mantêm uma situação de inferioridade e exclusão de um grupo de pessoas de modo generalizado no tempo e espaço, de maneira que não se trata de caso isolado, mas, sim, consequência de motivação histórica, social e cultural. Essa situação generalizada de inferioridade e exclusão contra um grupo de pessoas caracteriza-se por ter sido formada com o passar de longo espaço de tempo – normalmente, por gerações –, o que torna mais difícil a sua eliminação. Portanto, ao se avaliar uma situação de discriminação, é imprescindível uma avaliação global do pano de fundo histórico, social e geográfico.

A discriminação estrutural se revela quando estão presentes indicadores flagrantemente assimétricos de acesso aos benefícios produzidos pela sociedade, tais como habitação, crédito, saúde, educação de qualidade, expectativa de vida, nutrição e desnutrição, bem como quando determinados grupos sociais encontram maiores dificuldades de utilização do espaço público ou acesso a determinados locais de lazer ou posições de prestígio ou poder. Porém, essa situação de discriminação vai além das meras estatísticas e ocupa o imaginário coletivo, o que gera e mantém os estereótipos negativos das populações discriminadas, às quais se destinam qualificações pejorativas e desrespeitosas.

Diante da constatação de situação de discriminação ou racismo estruturais, deve o Estado tomar as adequadas medidas para reduzir e eliminar a situação de desvantagem ou exclusão de determinado indivíduo ou grupo de pessoas[3]. Daí, serem imprescindíveis, urgentes e cogentes as ações afirmativas para promover condições equitativas de igualdade de oportunidades e combater a discriminação racial. Isso implica uma mudança fundamental no paradigma jurídico, que agora exige mais do que a simples proibição de atos discriminatórios. O Estado é convocado a examinar criticamente as estruturas sociais, econômicas e políticas que perpetuam a desigualdade e a exclusão racial e a tomar medidas significativas para combatê-las.

No contexto brasileiro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) observou o impacto do racismo estrutural em várias esferas da vida nacional. O Relatório da CIDH  Sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, de 2021, aponta para a desigualdade estrutural persistente que afeta pessoas negras, comunidades quilombolas e povos indígenas. Além disso, destaca a presença do racismo institucional em sistemas como a educação, o mercado de trabalho e a administração da justiça, que continuam a perpetuar a exclusão racial.

Dados apresentados no relatório revelam a presença esmagadora da desigualdade racial em diversos setores da sociedade, incluindo representação política, acesso ao mercado de trabalho e educação. Essa disparidade é ainda mais evidente quando se consideram os altos índices de homicídios de pessoas negras e a letalidade das ações das forças de segurança, indicando um padrão preocupante de violência racializada.

Outra conclusão que se extrai a partir da premissa jurídica do “racismo estrutural” é a de que não se pode admitir a ideia do "racismo reverso", tendo em vista que o racismo é um fenômeno que pesa desfavoravelmente sobre grupos historicamente discriminados, como negros e povos indígenas, tal como reconhece expressamente o Preâmbulo da Convenção Interamericana Antirracista. Essa abordagem dissipa a noção errônea de que grupos politicamente majoritários e privilegiados poderiam ser tão sistematicamente discriminatórios quanto grupos sujeitos ao racismo. Essa ideia não faz sentido diante da realidade histórica e social, sobretudo por ignorar as estruturas de poder e opressão subjacentes.

Em suma, a ativação da Convenção Interamericana Contra o Racismo no direito brasileiro marca uma virada significativa na abordagem do racismo e da discriminação racial. O reconhecimento do racismo estrutural como uma realidade jurídica e a obrigação do Estado de adotar medidas para combater essa desigualdade sistêmica refletem uma compreensão mais profunda das raízes do preconceito racial e apontam para a necessidade de reformas estruturais significativas. É imperativo que a comunidade jurídica, e a sociedade como um todo, aceitem essa realidade e trabalhem ativamente para erradicar o racismo e promover a verdadeira igualdade de oportunidades para todos. O negacionismo em relação à existência do racismo estrutural é não apenas mais uma manifestação do racismo, mas também é uma inequívoca manifestação de ilicitude, inconstitucionalidade e inconvencionalidade.

 

Notas e referências

[1] No mês de janeiro de 2022, a Presidência da República do Brasil, por meio do Decreto nº 10.932/2022, promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Garantías, la Ley del más Débil. 3. ed. Madrid: Trotta, 1999. p. 180.

[3] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2020. p. 710.

- Decreto nº 10.932/2022, que promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.

- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Garantías, la Ley del más Débil. 3. ed. Madrid: Trotta, 1999. p. 180.

- MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2020. p. 710.

 

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