Quilombo, “um eldorado negro no Brasil”    

05/10/2020

 

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Ler: ouvindo “Quilombo, O[1] Eldorado Negro”[2]

Existiu

Um eldorado negro no Brasil

Existiu

Como o clarão que o sol da liberdade produziu

Refletiu

A luz da divindade, o fogo santo de Olorum

Reviveu

A utopia um por todos e todos por um[3]

Na música “Quilombo, O Eldorado Negro” (1984), que compôs a trilha sonora do filme “Quilombo”, os compositores Gilberto Gil e Waly Salomão mobilizam na primeira estrofe da canção três verbos para cantar uma das versões da história quilombola: existir, refletir e reviver. Peço licença e ouso trazer esses verbos no presente para pensar a agência quilombola.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) acionou pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 742 pretendendo garantir os preceitos fundamentais da vida e saúde nos territórios quilombolas, que estão sendo inviabilizados por ações e omissões do poder público federal no contexto pandêmico.

Até o início deste texto, o Brasil oficialmente registrava mais 4,7 milhões de casos da covid-19 confirmados e desses, a marca é de quase 142 mil mortes[4]. Nos territórios quilombolas já foram registrados 165 óbitos e 4.541 casos confirmados, de acordo com informações do Observatório da Covid-19 nos Quilombos - ação autônoma da CONAQ com o apoio do Instituto Socioambiental[5]. Nesta rotina pandêmica entre os gestos de luto e desprezo as vidas perdidas, o país ruma à naturalização de mais um evento genocida.

Esse signo de mortes, que está contido nos discursos e práticas institucionais da arqueologia do Estado brasileiro, pode nos revelar que o colonialismo é mais do que um resquício. Trata-se do modus operandi estatal encoberto pelo verniz de legalidade e democracia que convive com a morte negra.

Tanto é assim, que o discurso mais entoado por representantes dos poderes constituídos neste Estado é “as instituições democráticas funcionam normalmente”[6]. O que se aparenta como reação que busca minimizar os “arroubos autoritários”[7], se apresenta como violência que normaliza a morte e o terror.

Contudo, a desesperança tem sido irrompida pelas agências indígenas e quilombolas, que no front das lutas contra a omissão estatal, movimentam a esfera pública e a sociedade civil para reduzir os impactos da pandemia em suas vidas e territórios. As organizações e movimentos que se manifestam a partir dessas duas matrizes são, na verdade, protagonistas da história deste país, muito embora, a cena enredada nos discursos oficiosos não os reconheça.

Neste contexto de crises – econômica, sanitária, política e saúde –, mais uma vez, à frente da luta por direitos, indígenas e quilombolas têm reivindicado os seus projetos de civilização, em defesa do próprio modo de vida. São essas litigâncias que têm disputado o sentido do Direito e o poder de nomear[8] – algo que é próprio da codificação jurídica passa a ser provocado pela inscrição da matriz antirracista. Assim, a maior expressão do enfrentamento ao racismo tem sido a sobrevivência. Por isso a necessidade de interpelarmos a cultura jurídica hegemônica deste Estado, que ainda é permeada por signos racistas.

A ADPF nº 742 é um documento histórico na agência quilombola, porque a instância máxima do Poder Judiciário tem em mãos uma petição que narra dimensões silenciadas no passado e que impactam o presente. Na ação, os quilombos recuperam suas contribuições para o Estado Constitucional pactuado em 1988 e reivindicam a posição dos quilombos como sujeitos constitucionais, ditando que “o Brasil é quilombola!”[9]. Presentes em mais de 1,6 (30%) mil municípios brasileiros, a petição verbaliza o impacto territorial e demográfico dos quilombos no presente, pois os quilombos existem!

São mais de 6 mil comunidades identificadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dado recentemente divulgado na base territorial para o próximo Censo Demográfico – por conta da pandemia da covid-19 o estudo foi adiado para 2021. Esta é, também, a primeira vez que o estudo demográfico oficial apresentará em seu questionário a autoidentificação quilombola.

A reivindicação da presença quilombola na petição inicial da ADPF nº 742 tem significado importante para o enfrentamento do racismo institucional, porque mesmo se reconhecendo e se inscrevendo na história do pacto político-jurídico de 1988[10] como integrantes da nação, as quilombolas experimentam, ao longo dessas três décadas, constantes violações de humanidade e de direitos. Isso porque, práticas protagonizadas pelo poder público têm reduzido ou restringido as conquistas constitucionais antirracista das comunidades quilombolas em articulações e disputas junto aos movimentos sociais na Constituinte de 1987/1988.

São exemplos de descuidos estatais para com as comunidades quilombolas: i) a mora de 13 anos do governo federal para edição da norma regulamentadora do art. 68 do ADCT resultou no Decreto nº 3.912/2001, contudo, esse restringiu inconstitucionalmente o alcance do direito fundamental  a territorialidade com a tese do marco temporal[11], pois exigia que as comunidades comprovassem a ocupação das terras de 1888 a 1988; ii) o questionamento da constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, a nova regulamentação do art. 68 do ADCT, foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.239 proposta pelo PFL, atual Democratas, em um processo que durou 14 anos, obstruiu regularizações e provocou insegurança jurídica; iii) a omissão do poder público federal para dar efetividade ao art. 68 ADCT resultou em apenas 5,34%  de titulação dos territórios quilombolas existentes no país[12]; iv) e o desmantelamento do sistema que monitorava o Plano Brasil Quilombola, conjunto de políticas públicas imprescindíveis para as garantias constitucionais aos modos de fazer, criar e viver quilombola (art. 68 do ADCT e art. 216, II).

Esses dados, restritos ao âmbito federal e à promoção de políticas que dessem efetividade aos direitos fundamentais quilombolas, atestam a descaracterização de uma das particularidades destas normas, qual seja: a aplicação imediata. Por isso, além da denúncia quanto às violências sofridas pelos quilombos no passado, a ADPF aponta essa prática como algo contínuo, presentificado.

A ausência de um plano contingencial ao novo coronavírus nos territórios quilombolas, bem como de um monitoramento dos casos de infectados e mortos, conformam a política da morte, anunciada no início do texto. Um exemplo de codificação legal que prova a institucionalização do deixar-fazer morrer está nos vetos do Presidente da República no Projeto de Lei nº 1142[13] – instrumento criado pelo Poder Legislativo para viabilizar o Plano Emergencial de enfrentamento à covid-19 para atender, dentre outros grupos, as comunidades quilombolas.

Não contar as perdas, não prestar assistência médica, não prevenir os contágios e não reduzir a vulnerabilidade socioeconômica são alguns dos fatos que explicitam o racismo institucional e, por isso, a necessidade de se dizer o óbvio: é importante afirmar a existência quilombola e a sua condição de sujeitos de direito.

Nessa ação os quilombolas também recuperam a presença dos quilombos no texto constitucional e o fazem para repercutir um sentido de constitucionalismo que seja adequado à história quilombola. Me recordo dos dizeres de Beatriz Nascimento, quando ela advertia que o quilombo “é um lapso que se coloca no conhecimento dos brasileiros do seu passado”. Os quilombolas enfrentam esse hiato agora e refletem na teoria e na prática constitucional a potencialidade normativa de sua história!

A história, como um preâmbulo da Constituição, é passado que enraíza os sentidos orientadores do projeto constitucional, especialmente na interpretação que hoje é dada aos direitos fundamentais. Novamente, “O Brasil é quilombola!”, pois é território amefricano[14] forjado nas lutas da população negra pelo sobreviver. Compreender isso no presente é refletir a denúncia da democracia racial, discurso que legitima os mitos racistas no sistema normativo, atuando como dispositivo que impede a efetividade dos direitos quilombolas, a exemplo, da representação do quilombo como experiência do passado.

É também produzir uma historicidade constitucional a partir dos quilombos. As suas existências foram materializadas por práticas de liberdade, igualdade e cidadania como condições fundamentais para defesa dos seus territórios autônomos. É exatamente neste momento de crise, que afeta desproporcionalmente os quilombolas, que afirmamos e denunciamos a omissão do Governo Federal como assunção do genocídio antinegro.

Assim, a ADPF nº 742 é uma convocação dos quilombolas à luta pela Constituição Federal de 1988. Defender os direitos fundamentais dos quilombos é proteger o Estado Constitucional em sua inteireza, pois ele não pode admitir distinções racista. Por isso, “vidas quilombolas importam”! Na provocação ao STF, os quilombos justamente viabilizam a experiência radical do constitucionalismo, ao revigorar a Constituição de 1988 em favor do projeto da vida negra. É no presente a esperança de que o Estado Constitucional não seja apenas utopia, mas, ao contrário, como um quilombo, viabilize a vida.

 

Notas e Referências

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO QUILOMBOLA IVO FONSECA. Vulnerabilidade Quilombola na Covid-19 – um estudo na base de informações do IBGE. Relatório Técnico. Brasília, 2020.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. União do Coletivos Pan-Africanistas – UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual - possibilidades nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI, 2015.

SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo de luta política: a experi­ência de ‘educação diferenciada’ do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília. Brasília, 2012.

[1] Agradeço a leitura atenta da pesquisadora Inara Flora Cipriano Firmino.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5kZV_vsrOrM&ab_channel=GilbertoGil-Topic.

[3] “Quilombo, o Eldorado Negro”. Disponível em: https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/quilombo/.

[4] Informação divulgada no dia 26 de setembro de 2020 pelo consórcio de veículos de imprensa composto pelo G1, O Globo, Extra, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e UOL. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/09/27/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-27-de-setembro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml.

[5] Diante da ausência de informações o monitoramento da CONAQ procurar suprir dados epidemiológicos nos territórios quilombolas. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/.

[6] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/03/maia-diz-que-cabe-as-instituicoes-democraticas-impor-ordem-legal-ao-grupo-que-confunde-politica-com-terror.ghtml.

[7] Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/arroubos-de-bolsonaro-testam-democracia-limite-entre-poderes-afirmam-cientistas-politicos-24485246.

[8] SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI, 2015.

[9] Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/campanha-o-brasil-e-quilombola-nenhum-quilombo-a-menos/.

[10] SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo de luta política: a experi­ência de ‘educação diferenciada’ do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília. Brasília, 2012.

[11] O aludido Decreto, dispunha no Parágrafo único do art. 1º a seguinte redação: “Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3912.htm.

[12] Informações do relatório Vulnerabilidade Quilombola na Covid-19 – um estudo na base de informações do IBGE, produzido pelo projeto de extensão Centro Documentação Quilombola Ivo Fonseca, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

[13] Lei Ordinária 14.021, de 7 de julho de 2020. Os vetos foram parcialmente superados pelo Congresso Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14021.htm

[14] GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em pri­meira pessoa. União do Coletivos Pan-Africanistas – UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

 

Foto: Walisson Braga/CONAQ)

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